sexta-feira, 16 de agosto de 2024

O preço que se paga


 


Cara, às vezes sinto algo estranho

e que dá uma aflição.

É assim: eu posso, quero e até leio bons livros,

e sei o quanto isso é importante para minha alma

e sensibilidade e imaginação e etc. e tals.

Livros esses que meus familiares e seus pais

e os pais de seus pais nunca leram.

Estão perdoados, sempre estiveram ocupados

em “ganhar” a vida.

Parece que exageraram em apostar todas as fichas

em outras vidas, melhores do que a

que tiveram por aqui.

Não consigo adiar pra amanhã o mel e o fel

que desfruto neste cotidiano.

Cada vez mais me convenço

de que um dia (aleatório) vou dormir

e não mais acordar.

Velho, vai ser um belo sono (eterno), hein?

 

(B. B. Palermo)

quinta-feira, 15 de agosto de 2024

Escreveu hoje?



 

À tardinha, quando chego no Alvorada,

o Eder sempre pergunta:

- Escreveu hoje?

A semana enrolando e amanhã já é sexta

e já passa da metade do mês e eu escrevendo

por** nenhuma e levando uns esporros

do meu amigo do bar. Decidi mentir:

- Bah, véio, hoje foi o dia mais produtivo de agosto!

Matei a pau, tive uns insights e tá vindo aí meu primeiro romance!

O Eder abriu aquele sorriso de torcedor colorado

cheio de esperança e foi até o freezer:

- Maravilha, Cadelão! Esta cerveja é por conta da casa!

 

(B. B. Palermo)


quinta-feira, 8 de agosto de 2024

Almocei meu pai

 

Na adolescência,
almocei meu pai.
Hoje, poeta porque bebo,
ou bebo porque poeta,
sinto cada vez mais a sua falta.
Já se passaram 37 anos que ele partiu
pra nunca mais.
Ele almoça e janta e prepara o café da manhã
e me dá sábios conselhos.
Dança em minha memória
e é o meu melhor
amigo.
Mas não esqueço das surras
patrocinadas
pelo cinto de suas calças
toda vez que fui dedurado
por mamãe.
(B. B. Palermo)

terça-feira, 30 de julho de 2024

Caminhando na chuva sem me molhar


 

Apresentação

 

Sábias agudezas...

Refinamentos...

‒ Não!

Nada disso encontrarás aqui.

Um poema não é para te distraíres

Como com essas imagens mutantes de caleidoscópios.

[...]

Um poema que não te ajude a viver

E não saiba preparar-te para a morte

Não tem sentido: é um pobre chocalho de palavras.


(Projeto de Prefácio ‒ Mário Quintana)

 

Nem agudezas, nem refinamentos encontrarás aqui. Nem temas meramente trazidos para a distração nas imagens caleidoscópicas colhidas pela óptica de Palermo em pequenos fragmentos coloridos. Por seus espelhos articulados, Palermo produz imagens refletidas do universo em que habita e de onde extrai a matéria-prima de sua prosa poética. É na beleza de seu lugar que o poeta encontra razões pra cantar, seja pra festejar, seja pra protestar.

É das intervenções e vivências próprias e, também, do insuperável e inseparável Beiço, do Porko, do Dr. Biza, da Janete, da Janusa, do Damo do Cachorrinho, do Manetta, do Zé, do Cabezón, do Marcão e de outros tantos que produz reflexões sobre o seu aqui e agora ‒ o espaço-tempo atual em que vive. É de sua escassa economia e das contas, inclusive, no bar em atraso, da indubitável hiper hipocondria revelada numa ‘picada’ de taturana, da vaca de presépio a que é reduzido pelo megalomaníaco Dr. Biza e da observação da vida como ela é que ele conclui que a vida é curta demais pra ser pequena.

E ser pequena significa não poder ser desperdiçada em coisas sem relevância. Daí talvez seu viés um tanto escatológico, sem reduzir-se a isso como personagem, quem sabe como estratégia de ‘ligar o f*da-se’ (numa alusão ao conhecido título de Mark Manson), para advertir sobre a necessária mudança de hábito no tratamento da realidade e dos limites do homem e da natureza. Talvez daí um tanto de mistério e misticismo no conto que dá título ao livro ‒Caminhando na chuva sem me molhar ‒, suscitando um quê de realismo mágico e de um novo modo de lidar com nossas adversidades, indiferenças e vulnerabilidades.

Nas trinta narrativas componentes da obra, ordenadas em sua desordem normal, Palermo dá voz e vez à sua pequena guarnição, talvez para não reduzir sua força a um exército de um homem só. Talvez sua maior qualidade seja o modo esquisito com que provoca arrepios naqueles que têm medo do novo, do diferente, do que incomoda o sossego. Talvez por isso, perdoamos-lhe alguns desvios (como o uso por vezes exagerado de alguns palavrões), até porque de perto ninguém é normal, mas que não vão além do mundo das palavras. Se, no Cosmos, a Lua gira em torno da Terra, a Terra em torno do Sol, o Sol em torno de outros astros ou galáxias, no universo da linguagem as palavras giram em torno das palavras, que giram em torno de outras palavras, num sem-fim de rotações e translações.

O perigo maior de Palermo talvez resida em ser, justamente, um poeta ‒ esses estranhos seres que têm, mais do que sangue, o coração nos olhos. Isso o impossibilita a ser ‒ apenas ‒ um ingênuo maldito. Isso o torna capaz de conversar com Deus e o Diabo em qualquer chão, de ir dos píncaros às profundezas, do sublime às sublimações e, de repente, dos pensamentos às ações. E mais: faz isso tudo com boas pitadas de ironia, de humor, de amor. Seja em busca de sentido para um mundo absurdo, seja denunciando o absurdo de um mundo sem sentido, Palermo provoca o leitor a refletir sobre a condição humana.

Parodiando Saint-Exupéry em “Carta ao General X”, quem sabe Palermo denuncie que “não é possível viver-se só de geladeiras, política, orçamentos e palavras cruzadas, não é mesmo? Não é possível! Não é possível viver-se sem poesia, sem cor e sem amor. [...] Nada mais resta do que a voz do robô da propaganda. 8 bilhões de homens, nos tempos de hoje, não escutam mais do que o robô, não entendem mais do que o robô e estão se transformando em robôs”. 

E talvez o nosso poeta traga novidades em sua próxima aparição: promete passar uma temporada em Palermo, para “tentar compreender de onde venho e por que sou assim, meio doido”. É esperar para ver.

Carlos Silveira

Ijuí, janeiro de 2024.

sexta-feira, 26 de julho de 2024

Algo acontece em Marte

 

As frases perambulavam na cabeça

como outdoors nas esquinas,

e eu ainda acredito que a linha do horizonte, no final do dia,

vai me apresentar “mamãe” – a mulher da minha vida.

 

O marido investigava os consertos

que o cara do posto de combustíveis fazia no caminhonetão,

e ela sentada, séria, gostosa e contemplativa e de Ray-ban,

parecendo me observar, sentado num boteco,

a uns 10 metros.

Triste, eu duvidava de que ela tinha curiosidade,

embora eis-me aqui, quadrúpede em extinção,

maluco que viciou em escapulir do zoológico.

Eu a perdoo por não saber que ando por dentro das coisas

– além da fumaça do óleo diesel e do Glifosato e do 24d

que regam as terras desse Marte do Noroeste do RS.

 

Fitava-me, e parecia pensar:

- Como me livrar do MALA,

como sobreviver a um casamento sem emoção,

mas que garante dinheiro e status.

Coloquei-me no seu lugar:

sentir-me o pior por desejar alguma liberdade,

por não me adaptar a uma relação a dois.

 

No final das contas, ela só estava distraída 

focada em algo prático:

ao chegar em casa, colocar as roupas pra lavar,

dar um OI pras flores do jardim

e comidinha pros seus pets!

 

(B. B. Palermo)


domingo, 14 de julho de 2024

Tempestade

 

Suas fotos, nuns lábios carnudos

e cabelos de fogo,

botaram tudo abaixo

e desafiaram o meu mundo,

e então saquei que localizei

a minha tempestade!

Não importa se ela sabe que eu existo,

que escrevo histórias e poemas ridículos,

que sou politizado ou alienado – não importa.

Perdido, estou viciando num cometa

que me locupleta,

musa de lábios e cabelos

de fogo!

 

(B. B. Palermo)


quarta-feira, 3 de julho de 2024

Milagres

 

Tudo é possível e permitido e assombroso

e me sinto vivo,

identificando outras notas musicais e etílicas

até vislumbrar, vejam bem, o milagre:

boa parte da vida acelerando feito doido

e agora, patético, bebo

com moderação.

Os postes de iluminação já não despencam

e não me assustam, e juntos – eu, o lixeiro,

os andarilhos e os cães – amanhecemos

comuns.

Vejam bem, garotos, o mundo de possibilidades

que se abre; ou, talvez, seja o começo do fim.

Temos as missas nas manhãs de domingo

e os passes no centro espírita,

até para justificar e acariciar

as recaídas.


Não estou sozinho.

Nuvens acenam quando se expandem no céu.

Gaivotas e outros bichos voam em círculos

anunciando a boa nova:

o que será? O que será?

Já não levo tanto a sério

a história (requentada?)

do Fernão Capelo Gaivota,

de voar mais e mais

alto,

treinando até a perfeição.

O milagre foi manter-se vivo

até aqui.

 

(B. B. Palermo)


domingo, 30 de junho de 2024

Ela é uma estrategista

 

A guria me alimenta como se eu fosse desnutrido,

mas se ela soubesse o que passa na minha cabeça

perceberia que não sou verbo nem adjetivo.

Eu sou substantivo!

Alcança a cueca virada,

empurra o chimarrão com chá de erva-doce

e fala entusiasmada das roscas com sabor calabresa

que trouxe do mercado.

Pergunta, feliz:

- Gostou da minha rosca, meu bem?

Embretado, dou de ombros:

- Amei...

Estratégica, quer me distrair do bar e dos “falsos” amigos.

Seus papos e insinuações a respeito da decadência dos valores

que imperam no A. Texas, tenho certeza, são pura retórica.

Por Deus! Ela ainda acredita na minha salvação!

Tive um estalo (fodam-se, não é mania de perseguição!):

desconfio que ela deseja ser mais uma viúva do Texas

e vai tomar para si a minha fortuna...

Elas, as viúvas e não viúvas, têm o clube,

jogos de vôlei,

aulas de dança e teatro,

crochê, tricô, ioga, meditação

e musculação.

Eu tenho o bar e a parceria de alguns desajustados

e o campeonato de futebol pela TV que anda uma bos**

(o time que escolhi pra torcer não ganha de ninguém!).

Sinto um vazio, vocês sabem, uma falta de amanhã,

e não suporto jogos de bocha e canastra no clube.

Lá, os velhinhos se aproximam

como uns sacos vazios

e me escolhem pra ouvir suas histórias,

falando, falando e repetindo

seu glamoroso passado:

muito trabalho,

muita disciplina

e arte

nenhuma.

 

(B. B. Palermo)


sábado, 29 de junho de 2024

Aprenda comigo, seu babélico!

 

Não abrace conclusões precipitadas,

não seja escravo das emoções,

como o fanático no futebol ou na política.

Exercite a moleira para não se aprisionar

na maçaroca dos teus pensamentos desaforados 

que te arrancam as calças

nas horas inesperadas.

Não te autoflagele, seu ridículo,

ria de ti mesmo numa gritaria delirante

e deslizante, como o são alguns ataques

de riso.

Corra até Iemanjá e tome emprestadas

uma dúzia de velas e dedilhe tuas preces e

acenda a fogueira dos sonhos até

emocionar o universo.

Aprenda comigo.

Meu olhar fez dúzias de oficinas

com os carentes de olhos, os que conhecem

todos os truques dos sentidos,

e com eles notei que nossos olhos foram desfocados

e corrompidos pelas leis e sistemas.

Aprenda comigo

(o imbecil, o babaca!),

e serás cristalino pois és um esperto

que tem um Lattes de fazer inveja,

pena que o povo não sabe o que é isso.

Também aprendo contigo, já que nos

parecemos:

quando nos olhamos diante do espelho

gememos com o que vemos

e que nos observa

do outro lado

 

da rua.

 

(B. B. Palermo)




segunda-feira, 17 de junho de 2024

Nada a ver, menino!

 

Nada a ver, menino!

 

Baratas, sobreviventes neste planeta há 6 milhões de anos,

passeiam pela sala cantarolando um samba do “Demônios da garoa”. É a “Saudosa maloca”.

Eis a mensagem, nas entrelinhas:

se o sol, dia desses, cuspir seu fogo

um pouco mais forte,

minha vida será escuridão, e não estarei preparado

como essas irmãs.

 

Dias normais. Serpentes se aproximam e se afastam,

e fica a vontade de chegar de voadora

nos vitrais das instituições.

O de sempre se enrola em minhas pernas e sobe

e sobe e me abraça, então aposto no Bicho

os números da Cobra e sou desdenhado

pela deusa sorte:

“Nada a ver, menino!”.

Apesar de circular por aí como um sobrevivente pagando promessas,

sei que amanhã será incrível.

Farei concurso pra servidor municipal – serviços gerais,

zelador do cemitério ou jardineiro,

ou porteiro de alguma creche.

Homem digno, vida digna, despertado pela música do rádio-relógio.

A barba está feita,

o chuveiro ainda esquenta,

os amigos estão tranquilos e ronronam feito pumas

em seus leitos.

Fui bom aluno no catecismo e nunca passei de um 6 em matemática.

Foi divino: na adolescência, tive uma professora jovem, loira, linda e tímida que sacou que eu gostava de literatura e então me emprestava livros que pareciam incríveis praquele garoto.

Ela é a responsável por não ter abortado

meus primeiros poemas querubins.

Esses dias juntei pastas e envelopes e caixas

com anotações e poemas e rabiscos de histórias

que me pareciam importantes.

Queimei tudo, junto com os boletins escolares.

O que vale é o milagre de ter sobrevivido

à travessia desses pequenos riachos

infestados por feras escrotas.

Não me perdoo por permanecer tanto tempo em filas

na infância e adolescência,

até na hora da comunhão, ao receber o corpo

e o sangue de Cristo.

Boa parte do passado ecoa de um jeito absurdo,

com o guindaste da vida eterna.

Ainda hoje tenho medo.

Em algumas noites durmo com a luz acesa

e o edredom disfarçando a cabeça

e os sonhos.

 

(B. B. Palermo)


sábado, 15 de junho de 2024

Ela levou minha carteira

 


Anotava compulsivamente o que me vinha, quando Keila chegou.
- Meu, que papo foi aquele?
- Qual?
- Uma piranha te falou que não transava fazia muito tempo porque queria um amor e não apenas sexo.
- Han??
- Lembra o que tu falou pra ela, seu cachorro?
Tu disse que da transa pode nascer um grande amor...
Mas tu é muito galinha!
- Guria, não pude fazer nada. Ela veio atrás. As carentes leem as histórias que invento e posto nas redes sociais e pensam que sou o bambambã. Vamos relaxar com umas cevas no bar.
- Vai sozinho, perdigueiro escroto. Fareja por lá alguma piranha. Tô sabendo que tu tá de olho num traveco que nem deve ser maior de idade. Disseram que é alta, magrinha, que desfila pelas ruas num short deste tamanho. Comentam que é linda. Eu que não vou competir com um andrógino.
- Andrógino? De onde tirou essa?
- Ah, tá, e quem não sabe o que é androginia?
- Hum... Interessante. Tu conhece "O banquete", do Platão. Fui eu que te falei sobre? Nesse diálogo há uma narrativa para explicar o que é o amor, citando uns seres primitivos, os andróginos... A gente podia fazer uma live pra debater o que o Platão diz sobre o amor. Guria, é um dos ensaios mais brilhantes sobre esse desgastado tema.
- Por que desgastado?
- Por... Porque caiu num lugar comum. De tanto o "amor" ser proferido com tantos diferentes significados, virou clichê...
Quanto à minha sexualidade... Deixa de ser reaça!
Tu sabe que eu sou hetero. Não sou veado macho.
- Enrolando de novo. Conta outra...
- Sou cidadão do mundo, baby, amo rock e jazz e blues e outros ritmos. A vida é ritmo, meu bem. E o amor está em tudo. Sinta o pulsar do meu coraçãozinho, louco por você!
- Tu, sempre se achando. Pesquisei o teu Lattes, seu cafajestinho. Necas de textos publicados, faltando às aulas e, por fim, demitido por conta do alcoolismo.
- Isso tudo é passado, baby. Minha praia é a literatura. E essa história de alcoolismo já era. Fiz três anos de terapia. Tu sabe o que aconteceu no final?
- Não.
- Dei alta pro psiquiatra.
- Meu, tu fala isso tudo como se estivesse falando de outra pessoa, e não de ti mesmo!
- Meu bem, a vida é esse mix de comedia e tragédia... Sorria!
- Seu estúpido! Insensível! E o pior é que fica dizendo pra todo mundo que é poeta!
Quando fui ao banheiro, ela bateu a porta daquele jeito e se mandou.
Daí a pouco me dirigi até a estante pra apanhar a carteira e ir pro bar. Eu sempre deixo a carteira em cima dos livros.
Pqp! Era só o que me faltava... ela levou minha carteira!
(B. B. Palermo)

Ele já estava lá

  As pessoas por perto pareciam murchas, daquele jeito, de ideias, uns sonâmbulos, e cansei também de trocar confidências com os cães ...