Seria um dia normal.
Mas a neblina veio do mar às três da tarde.
E quando acordei da sesta, pouco antes das três, não havia café, nem leite, nem açúcar. As paredes descascavam devagar, como lagartas devorando borboletas.
Um vizinho - aquele viciado em crack, TikTok e Coca-Cola - gritava do pátio:
- A professora desaparecida foi encontrada… dentro de um freezer!
O cheiro de morte libertou-se das minhas narinas e tomou conta do quarto.
Abri a janela, acendi um galhinho de alecrim.
A fumaça se misturou à neblina - modesta oferenda contra o invisível.
No celular, mais tragédias.
Uma garota cortou os pulsos e, enquanto o SAMU tentava reanimá-la,
o vídeo dela corria no Instagram -
rostos comentando com emojis e corações.
Na rua, uns malucos me olharam de um jeito torto.
O meu eu paranoico “viu” que apontavam o dedo.
- Você é o culpado!
De repente, o mundo se ergueu contra mim:
fuzis, foices, martelos, chaves de fenda descomunais,
robôs de linha de montagem da Volkswagen marchando em sincronia.
Fechei a janela, fiz as malas
decidido a mudar pra uma praia do Nordeste
no próximo inverno do A. Texas.
Silêncio.
Guardei o jornal.
O cheiro de alecrim persistia.
Na barbearia, o espelho me olhou de volta.
Por um instante, juro que vi outro homem -
mais calmo, mais velho, mais cansado -
tentando parecer normal.
(B. B. Palermo)
