domingo, 18 de dezembro de 2016

Doutor, o Arthur é o cão da triste figura


Certo dia, ao desembarcar na parada de ônibus a alguns quarteirões de casa, eis que surge um mamífero quadrúpede (da família dos caninos, Doutor) e passou a me seguir. Acho que me confundiu com algum velhinho que ele aguardava desembarcar do ônibus, pensei. O vira-latas me acompanhou até em casa. No seu olhar percebi a postura de quem dava as cartas, como se dissesse EU é que escolho dividir tua moradia, desde que EU decida o que é melhor.
À medida que o Arthur foi ficando, Doutor, remoo a seguinte dúvida: como ele estava mais acostumado com as ruas do que em casa, devo “prendê-lo” para evitar que corra o risco de ser atropelado pelo movimento louco da cidade, ou domesticá-lo, dando-lhe  todas as regalias dos pet shops, roubando-lhe a antiga rotina? Conhecidos me disseram que o Arthur quase sempre acompanha os velhinhos, não apenas até as paradas de ônibus, mas também quando se dirigem aos postos de saúde, escolas, asilos. Diante de tantas virtudes, é claro que me sinto culpado por cultivar tão poucas qualidades. Sim, Doutor, em vez de fazer algo para melhorar o mundo, fico horas na internet, invado sites pornôs e me masturbo. Enquanto o cão da triste figura vai pras ruas sempre disposto a acompanhar os desamparados, eu só tenho olhos para as garotas, seus cabelos, cintura, bumbum, seu jeito de andar, ansioso para atrair sua atenção. O Senhor acha que desisti de acreditar na humanidade e não passo de um gigantesco verme?
A liberdade do Arthur é um dado importante, o Senhor tem razão. Tenho muito a aprender com ele. Um escritor precisa conhecer a vida como ela é, ir pras ruas, alimentar-se do fluxo. Mas fico angustiado. Esses dias o Arthur sumiu por quarenta e oito horas. Bebi demais, Doutor, liguei para dezenas de pessoas, até o Cara! apareceu pra dar palpite. Não, não quis postar fotos do bichinho no facebook, quis preservar sua identidade. Vamos deixar para outros humanos a mania de exporem seus bebês e crianças na internet. Perderam o senso do ridículo. Aliás, Doutor, essas mulas não fazem a mínima ideia do que é ser ridículo.
Ah, sim, ainda não descrevi o Arthur. É preto, de porte mais pequeno do que médio, e tem uma cara séria de quem sempre anda desconfiado. Deve ser porque ele está boa parte do tempo batendo de frente com os perigos desse mundo, Doutor. Escrevi um conto prontamente aceito por uma revista de circulação nacional com o título “Arthur, o cão da triste figura”. Uma narrativa lírica que tenta mostrar que a beleza é relativa (de menor importância) diante da gangorra entre defeitos e qualidades de alguém. O que é ser bonito ou feio? Ainda bem que os cães não dispõem de juízo estético. Não perdem tempo com isso. Simplesmente nos escolhem e acolhem. E amam. Dizia também no conto que Arthur encarna o espírito dos cães que aparecem na literatura, como em Marley e a cadela Baleia, de Vidas secas
Há um termômetro que ajuda a compreender minha relação com o vira-latas. Tomo consciência de que devo desestressar quando não lhe dou atenção e carinho, quando estou mal-humorado, nessas horas caminho por aí, do jeito que ele faz, para encontrar com amigos, relaxar e beber umas cervejas.
O Arthur evidencia como anda meu carma: se estou sentado próximo ao seu tapete, ele se enrosca e deita sobre meus pés e nossas energias fluem de um para o outro. Então, Doutor, minha sensibilidade retorna, e decido dar-lhe uma boa educação musical. A música clássica, principalmente Tchaikovsky e Chopin, deixa-o mais relaxado, percebo pelo movimento do rabo e das orelhas, ainda mais se for depois que ele volta de suas missões voluntárias pela cidade.
As virtudes do Arthur, Doutor, me levam a pensar sobre meus defeitos. Os cuidados que temos um para o outro me tornam um homem melhor. Por isso sonho que ainda vou dar certo com alguma mulher. O que o Senhor acha, Doutor?
Formou-se uma dúvida. A preocupação do Arthur com os velhinhos, mendigos e desamparados pelas avenidas da cidade e seu trânsito agressivo, não dá mostras de que ele não é um simples vira-latas, mas sim um anjo?


(Diário de B. B. Palermo)

quinta-feira, 15 de dezembro de 2016

Doutor, cansei do ano do barulho


Na avenida do barulho preciso ter nervos de aço. Os carros não deslizam nem desfilam. São bolas de fogo, Doutor. Artéria principal, se estás a pé ou de bicicleta não és ninguém. Vais te esgueirar pelas calçadas e evitar que uma máquina te fuzile com seu para-choque. Se és neguinho de vila ou chinelão, se não tens carro ou potente som, aconselho-te a cruzar bem longe da avenida do barulho. É pegar ou largar. Se os engarrafamentos se esparramam pra direção oeste, vou pro norte ou sul. Posso escolher: afastar-me das freadas, buzinadas, cantadas de pneus, som alto e monóxido de carbono. Fugir dessa bagunça e voltar a brincar, como andar de bicicleta pela primeira vez.
Então me pergunto, Doutor, o que posso esperar pro Ano Novo? Ano que vem vai ser pra valer. Vou com tudo. Vai nascer um novo homem. 2018 vai ser um ano de ouro (aliás, Doutor, eu quis dizer 2017). Estou desmontando ideias fixas e pavimentando uma original ciclovia, em vez das avenidas pra chegar lá. Dormir cedo, reduzir pela metade o consumo de combustível (eu quis dizer álcool, Doutor). Escrever mais e melhor. Aguçar mais e mais os sentidos ao sair por aí. A escolha dos amigos vai ser pela qualidade, não pela quantidade. Quanto mais emancipado estiver do racismo, sexismo e homofobia, mais chances tem de ser meu amigo. E que tenha sensibilidade para tentar ouvir e compreender uma mulher.
Quero resolver pormenores da minha vida, Doutor. Não vou deixar pedra sobre pedra. Mesmo que não consiga evitar que amores escorram como água entre os dedos. Se não redobrar os esforços, eu sei, ano que vem muito vai ser do mesmo, o que espero das garotas e elas de nosotros, as decepções quase sempre se equivalem.
Já estou recebendo felicitações de feliz Ano Novo de algumas leitoras. Uma delas, de uma região distante do país, disse que adora minhas histórias. Com seu português bem peculiar ela me desejou tudo de melhor, e finalizou: “Boa sorte suseso”. Responda, Doutor, de zero a cem, quais são as minhas chances de futuramente ser um escritor número um?


(Diário de B. B. Palermo) 

sexta-feira, 9 de dezembro de 2016

Viagem ao fim da noite - Céline


Leitura da semana

Viagem ao Fim da Noite é um livro difícil de definir. Não é um romance comum, com início, meio e fim. Praticamente não tem personagens fixos, nem grandes façanhas. Mesmo assim, Céline despeja uma dose tão grande de humanidade pelas páginas que é impossível não se interessar pelas desventuras do protagonista Ferdinand Bardamu.
Alter-ego de Céline, Bardamu é fraco, egoísta, mentiroso e covarde. Mas também consegue ser bondoso e gentil, conforme a situação. Não passa de um ser humano, produto de seu meio. Tudo começa quando ele se alista no exercito francês, em plena Primeira Guerra Mundial. No front, descobre o horror da guerra. Milhões de mortos por algo que não faz sentido algum, e mais tantos outros ansiosos para enfrentar o mesmo destino. Mas principalmente, ele sente de perto a loucura de viver o tempo todo sob a iminência da morte.
Já nesse começo, dá pra perceber facilmente o estilo característico e genial do Céline. Tudo bem, a linguagem simples, cheia de gírias e palavrões não é mais tão revolucionária quanto foi lá em 1932, quando o livro foi publicado. Mas o modo como ele reflete sobre a condição humana, encaixando passagens poéticas belíssimas no meio de toda essa imundice, continua inigualável até hoje.
Com o fim da guerra, Bardamu segue sua jornada, buscando apenas sobreviver com alguma dignidade. Não, na verdade ele já abandona a dignidade nas primeiras páginas. Ferido e enojado da França, ele parte para as colônias africanas, apenas pra chegar lá e presenciar as pessoas definhando e perdendo sua humanidade no meio da selva. Na primeira oportunidade, foge para os Estados Unidos, só para ser esmagado pela solidão das linhas de montagem. De volta a França, ele tenta a sorte como médico em um subúrbio pobre e acaba como funcionário de um manicômio. Tudo isso apenas com a companhia de Robinson, uma espécie de contraponto ao protagonista. Um ser sem fé alguma na humanidade e que só age em benefício próprio, que coincidentemente aparece em quase todos os lugares que Bardamu chega.
Em cada novo lugar, Bardamu encontra um absurdo maior que o anterior. A peste, a fome, a guerra, o egoísmo, a fragilidade humana, é tudo tão ultrajante que em certo ponto ele quase desiste de levantar da cama, de lutar e não chegar a lugar algum. Em cada uma de suas viagens, ele chega aos limites da existência. Expõe a podridão do homem, realmente nos levando ao limite. Ao fim da noite. O livro é isso, um retrato da loucura. Não (Apenas) de Bardamu, mas de toda uma sociedade. E tudo ainda é relatado de forma tão habilmente sarcástica que fica difícil não rir de algumas situações. Talvez como um mecanismo de auto-defesa, é rir pra não se desesperar. Coisa que só o Bukowski e o Kurt Vonnegut chegaram perto, mas em graus diferentes.
É impossível dizer mais sobre o livro sem falar sobre seu autor. Céline e seus personagens se confundem. Ele próprio era veterano de guerra, presenciou a situação da África e foi funcionário da Ford nos Estados Unidos. Com seu livro de estreia publicado, se tornou celebridade instantânea. Amado pela esquerda e pela direita, mas ainda odiando ambos. Com uma narrativa dinâmica e conclusões quase filosóficas, Céline se tornou o primeiro escritor marginal de que se tem noticias e praticamente moldou a literatura do resto do século.
Mesmo assim, continuava deslocado do resto da humanidade. Há anos sofrendo com as sequelas das batalhas da Primeira Guerra Mundial, começa o caminho rumo a decadência e a perda da sanidade quando publica artigos anti-semitas denunciando uma conspiração mundial com os judeus como protagonistas. Até aí, muitos franceses pensavam a mesma coisa na época. O que o fez cair em desgraça foi apoiar abertamente a ocupação nazista na França durante a Segunda Guerra.
Ao fim do conflito, Céline serviu de bode expiatorio para todo um omisso povo francês. Foi preso, passou anos no exílio, morreu sozinho, doente e miserável. Com o passar do tempo, sua obra se tornou cada vez mais ostracizada. Outro erro terrível, humanidade. Não digo que deveríamos fechar os olhos para seus erros, como falaria Henry Miller. Mas nunca ignorar uma obra prima que influenciou de Jack Kerouac aos Doors, por causa das escolhas de um reles ser humano. Genial, sim, mas humano. Que foi um dos primeiros a enxergar (Talvez apenas precedido por Dostoiévski) o caminho sem volta que a sociedade estava tomando, e os efeitos terríveis que isso provocaria no espirito humano. Pena que ninguém lhe deu ouvidos nessa parte.

Do site http://www.baconfrito.com/viagem-ao-fim-da-noite-louis-ferdinand-celine.html

domingo, 27 de novembro de 2016

Pré-verdade - Paulo Gleich


No último dia 16, o dicionário de língua inglesa Oxford divulgou a palavra do ano 2016 : "post-truth" ou, em português, "pós-verdade". Sua definição, segundo os editores, é "relativo a ou que denota circunstâncias nas quais fatos objetivos são menos influenciadores na formação da opinião pública do que apelos à emoção ou à crença pessoal".
A escolha da palavra se deveu ao incremento de seu uso durante o ano, especialmente após as votações que definiram a saída do Reino Unido da União Europeia (o Brexit) e a eleição de Donald Trump para a presidência dos Estados Unidos.
Ao explicar sua etimologia, os editores destacam que o "pós" não se refere a um evento temporal – como em pós-guerra –, mas indica um contexto em que aquilo a que se refere tornou-se algo irrelevante, fora de uso. Com isso, pós-verdade indica um contexto em que a verdade passa a ser pouco importante, em detrimento de crenças ou afetos. 
A escolha da palavra reflete algo que viemos acompanhando há algum tempo, em escalada, nas redes sociais. Nos últimos anos, questões sociais e políticas vêm tomando conta dessa arena virtual, em alguns casos ampliando os debates e reflexões – mas, em maior escala, empobrecendo essa discussão, com sua miríade de memes, frases de efeito e imagens e notícias falsas. Mesmo dentro da minha "bolha" (como vem sendo descrito o conteúdo ao qual temos acesso pelas redes sociais, dando a impressão de que são representativos da totalidade da população), esses conteúdos aparecem com bastante frequência – a ponto de, em algum momento, eu ter parado de alertar quem os divulga de que se trata de fatos inverídicos. Alertas para checar a veracidade dos conteúdos compartilhados têm se provado inócuos, dando vitória à difusão de verdades, semiverdades e mentiras como se fosse tudo a mesma coisa. Parece, de fato, que a pós-verdade venceu; fatos importam menos que convicções.
Em termos psíquicos, a pós-verdade é uma pré-verdade: uma forma primitiva do psiquismo de se relacionar com a realidade. Freud a descreveu nos bebês: inicialmente, suas sensações e percepções são dispersas, não há diferença entre dentro e fora, sujeito e outro. A primeira diferença é sensorial: o que é percebido como bom é atribuído a si próprio, o que é ruim ao fora, ao outro. Com base nesse mecanismo vai se construindo a noção de realidade, considerando-se "verdadeiro" apenas o que é bom, que condiz consigo mesmo. Posteriormente, essas fronteiras vão se dissolvendo: é possível reconhecer que o mal também nos habita, e que a realidade externa é mais complexa e independente de nossos desejos e ações. O componente afetivo, porém, sempre está presente em alguma medida na construção da verdade.
Na dita era da pós-verdade, porém, o peso maior recai sobre esse aspecto emocional, a ponto de ser, cada vez mais, o único que conta: se me parece bom, se está de acordo com minhas crenças, então é verdadeiro. A diferença disso em relação a uma verdade propriamente subjetiva é a desimplicação: não há necessidade de sustentar as consequências em relação ao que se afirma. Que políticos – de todos os lados do espectro ideológico – o façam já é grave; que chancelemos essa prática como normal através de nossos atos, porém, é nos lançarmos em uma aventura perigosa, com consequências cuja gravidade talvez nem possamos estimar.

Zero Hora, 26 e 27 de novembro de 2016

domingo, 20 de novembro de 2016

Velho, mas vivíssimo e enamorado por uma menina


A casa renascia de suas cinzas e eu navegava no amor de Delgadina com uma intensidade e uma felicidade que jamais conheci em minha vida anterior. Graças a ela enfrentei pela primeira vez meu ser natural enquanto transcorriam meus noventa anos. Descobri que minha obsessão por cada coisa em seu lugar, cada assunto em seu tempo, cada palavra em seu estilo, não era o prêmio merecido de uma mente em ordem, mas, pelo contrário, todo um sistema de simulação inventado por mim para ocultar  a desordem da minha natureza. Descobri que não sou disciplinado por virtude, e sim como reação contra  a minha negligência; que pareço generoso para encobrir minha mesquinhez, que me faço passar por prudente quando na verdade sou desconfiado e sempre penso o pior, que sou conciliador para não sucumbir às minhas cóleras reprimidas, que só sou pontual para que ninguém saiba como pouco me importa o tempo alheio. Descobri, enfim, que o amor não é um estado de alma e sim um signo do zodíaco.
Virei outro. Tratei de reler os clássicos que me mandaram ler na adolescência, e não aguentei. Mergulhei nas letras românticas que tanto repudiei quando minha mãe quis me forçar a ler e gostar, e através delas tomei consciência de que a força invencível que impulsionou o mundo não foram os amores felizes e sim os contrariados. 

Gabriel García Márquez. Memórias de minhas putas tristes. Ed. Record.

segunda-feira, 14 de novembro de 2016

Doutor, estava rodeado de ceguinhos


Estava rodeado de pessoas, Doutor, todas com óculos escuros, pareciam ceguinhos e falavam ao mesmo tempo, como numa torre de Babel. Falavam, falavam, cada qual apegado à sua verdade. Não sei se isso aconteceu mesmo ou se foi um sonho. Parecia uma reunião, mas não era. Parecia um comício, mas não era. Parecia uma sala cheia de alunos, mas eu não era aluno. Parecia uma sala de aula, mas havia velhos, crianças e jovens, e eu não era um professor. Foi apenas um sonho, Doutor? Tem alguma verdade ou relação com a realidade?
Foi quando subi numa mesa ou caixote e tomei a palavra. Batia na tecla de que a vida não se resume em receitas e despesas, cálculos, etc. etc. Que o que permanece são as amizades, que a nossa memória retém mais são os momentos que envolvem emoções junto com os outros. Como é difícil traduzir em palavras o que senti, Doutor, o que marcou minha alma parece mais intenso do que consigo dizer aqui pro Senhor. Já dizia Fernando Pessoa que o poeta não consegue expressar em palavras o que ele realmente sente.
Mas voltemos ao aglomerado onde tomei a palavra e disse intensamente minhas inverdades. Tudo o que eu precisava naquele momento era contar uma história que empolgasse a multidão de cegos. Contava pra eles o que me vinha, sem ter planejado antes. Era um atleta de um pequeno clube de um pequeno lugar, habitado por pessoas simples. Apenas o presidente do clube era rico e por isso pagava alguns jogadores. O papel do dono era possibilitar os encontros das pessoas, garantir a estrutura para que todos vivessem satisfeitos. A comunidade dava conta do resto, com suas festas, danças, jogos, paqueras, conquistas, perdas e danos e celebrações religiosas. O dinheiro que alguém acumulou era apenas uma ferramenta, um coadjuvante. Então, Doutor, quando a plateia cega estava empolgada e pedia mais e mais histórias, eu comecei a falar das garotas do lugar. Dizia que, mesmo que pudesse namorar com a garota mais bonita, porque era o ídolo do clube, sempre ficava um vazio. Quanto mais garotas por perto, mais eu ansiava por outra que estava em falta. Então lembrei da Sherazade a qual, com suas mil e uma histórias de heróis e vilões, de fadas e monstros, humanizou o rei cheio de ódio. Inventei pra multidão cega, dizendo que foi Sherazade que me narrou as histórias todas, que me conquistou e venceu meu vazio, preencheu o amor que me faltava. Caprichei no repertório e foi incrível, Doutor, com o passar das histórias que contava os óculos iam caindo, e as pessoas deixavam de ser ceguinhas.


(Diário de B. B. Palermo)

sábado, 5 de novembro de 2016

Harmada - João Gilberto Noll


Leitura desta semana.

A narrativa Harmada, publicada em 1993, está entre as mais importantes da literatura brasileira contemporânea. Ela mostra a vida de um ex-ator de sucesso que vaga sem rumo por um país inominado da América Latina, e anseia por chegar à capital, Harmada. O país, claro, é uma paródia do Brasil, sua sociedade e seus costumes. 

Para provar a si mesmo e a quem está lendo o seu estado de "além- liberdade”, o protagonista se esbalda em lama horrivelmente fétida e participa de orgias sexuais ao lado de outros atores. Após andar à deriva, passa a viver num asilo de mendigos. Lá encontra Cris, filha de alguém por quem tivera uma paixão fulgurante e fugaz. Com ela, sonha em retornar a Harmada, mas se vê retido por uma paralisia. Consola-o o projeto de montar um espetáculo de teatro. 

A história constitui uma nítida transmutação por que passou a obra de João Gilberto Noll. Há grandes diferenças, por exemplo, com A Fúria do Corpo (1981), em que ser social oprimido pelas forças coercitivas da sociedade contemporânea almeja uma liberdade total e plena. Já em Harmada o narrador, crendo-se livre dessas tais "pressões externas”, busca um não-sei-quê além da liberdade. Afora isso, e também ao contrário de suas narrativas predecessoras, em que os personagens vagam a esmo, aqui se parece divisar ao longe um norte, uma esperança ainda que utópica, representada por Harmada. 

A obra não se pauta por um movimento linear. Pelo contrário, os fios do enredo se emaranham e abdica-se do uso freqüente do ponto, imprimindo um ritmo mais intenso, quase alucinante, ao texto. Já se aproximou a escrita de Noll dos estados esquizofrênicos. Conforme analisa o jornalista e crítico José Castello, o protagonista se "afoga num pântano lingüístico: como entre os esquizofrênicos, seu espírito está fendido e os pensamentos o asfixiam. Harmada, a capital, vem ampará-lo nessa vagueação”. Outro fator peculiar à prosa de Noll está no fato de a narrativa ostentar elementos que lembram aos leitores visões cinematográficas no desenrolar das tramas, numa descrição vívida de sensações, cores, sentimentos e sons. 

João Gilberto Noll nasceu em Porto Alegre, em 1946. Em 1967, entrou para o curso de letras da Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS). Dois anos depois, abandonou o curso e mudou-se para o Rio de Janeiro, onde trabalhou para o jornal Última Hora. Em 1970, publicou seu primeiro conto, Roda de Fogo, numa coletânea elaborada pelo escritor e poeta gaúcho Carlos José Appel. Mudou-se para São Paulo e começou a trabalhar como revisor. Em 1975, de volta ao Rio, começou a lecionar na Pontifícia Universidade Católica, no curso de comunicação social. 

Em 1980, um ano depois de concluir seu curso, publicou seu primeiro livro, O Cego e a Dançarina. Lançou ainda, entre outros, Hotel Atlântico (1989), O Quieto Animal da Esquina (1991), Berkeley em Bellagio (2002) e Lorde (2004). Obteve três prêmios Jabuti. Suas obras, muitas das quais adaptadas para o cinema e o teatro, foram traduzidas e estudadas nos Estados Unidos e na Inglaterra.


http://educarparacrescer.abril.com.br/leitura/harmada-403577.shtml

quarta-feira, 26 de outubro de 2016

Doutor, é hora de recomeçar


Não sei mais se sou desajeitado ou se as roupas encolheram. Meu esforço é hercúleo pra colocar o moletom. É como se fosse vestir os trapos de todo mundo. Sou pego de surpresa, como se fosse visita que não aguardava. Agora estou nu e a insegurança machuca as maças do rosto. Não consigo disfarçar. Sou criança inocente. Não sei se tenho amigos ou apenas conhecidos, Doutor. Eles cresceram muito enquanto fiquei pequeno. No final da festa eles são gigantes que se agacham pra me abraçar e beijar. Quando vou crescer, quando vou me conhecer, quando vou me encontrar?
As garotas que eu quis me olham indiferentes. Talvez seja hora de traçar novo rumo, Doutor. Sim. Hoje despertei e vi muito desejo no ar. Quando acordei havia uma certeza impregnando meu quarto: chega de passar de livro em livro como ave migratória. Basta de colocar nas mãos dos outros o meu destino. Basta de fazer check-in e mostrar o percurso diário de bar em bar. Se a inspiração me falta, vou me autoflagelar lavando a louça com a água a cem graus. Quando as mãos arderem voltarei à vida. Como um colecionador de borboletas vou correr atrás de alguma ideia. Mesmo que esta não passe de beija-flor que fica passando passando e logo desaparece pra se deleitar noutro jardim.


 (Diário de B. B. Palermo)

segunda-feira, 24 de outubro de 2016

Pergunte ao pó - John Fante


Descobri "Pergunte ao pó" lendo Charles Bukowski, o qual escreve o prefácio deste belo livro. A seguir frases tiradas de "Pergunte ao pó".


Aquelas garotas maravilhosas, tão feliz quando você agia como um cavalheiro, e tudo aquilo simplesmente para tocar nelas e carregar a memória para meu quarto, onde o pó se acumulava sobre minha máquina de escrever e Pedro, o camundongo, se sentava no seu buraco, os olhos negros me observando através daquele tempo de sonho e divagação.

Certo, uma prece: por motivos sentimentais. Deus Todo-Poderoso, lamento ser agora um ateu, mas o Senhor leu Nietzsche? Ah, que livro!

Quando voltei ao meu quarto, joguei-me na cama e chorei um choro sentido. Deixei que as lágrimas corressem de cada parte de mim, e quando não podia mais chorar, me senti bem de novo. Sentia-me verdadeiro e limpo.

Ficamos deitados um longo tempo e eu estava preocupado, com medo e sem paixão. Algo como uma flor cinzenta cresceu entre nós, um pensamento que tomou forma e falou do abismo que nos separava. Eu não sabia o que era. Senti que ela esperava.

O amor não era tudo. As mulheres não eram tudo. Um escritor precisa conservar suas energias.

Não conseguia falar mais. Ele havia arrancado meu coração. Porcaria! Todas aquelas nuanças, aquele diálogo soberbo, aquele lirismo brilhante – e chamar aquilo de porcaria. Melhor fechar os ouvidos e ir para algum lugar onde nenhuma palavra fosse pronunciada. Porcaria!

Fui até o final do corredor, até o patamar da escada de incêndio, e ali me soltei, chorando e incapaz de me conter, porque Deus era um canalha tão sujo, um pulha desprezível, é o que Ele era por fazer aquilo com aquela mulher. Desça dos céus, seu Deus, venha até que que vou socar seu rosto por toda a cidade de Los Angeles, seu moleque miserável e imperdoável.

Fiquei sentado com os dentes cerrados, olhando para um quarto como dez milhões de quartos da Califórnia, um pouco de madeira aqui, um pouco de pano ali, os móveis com teias de aranha no teto e poeira nos cantos, seu quarto e o quarto de todo mundo, Los Angeles, Long Beach, San Diego, algumas placas de gesso e estuque para manter o sol do lado de fora.

O mundo era pó e ao pó voltaria.

Tudo o que era bom em mim me emocionou naquele momento, tudo o que eu esperava do profundo e obscuro significado da minha existência. Aqui estava a placidez interminável e muda da natureza, indiferente à grande cidade; aqui estava o deserto abaixo dessas ruas, ao redor dessas ruas, esperando que a cidade morresse para cobri-la com a areia eterna uma vez mais.

Tornava-me um estranho dentro de mim, era como todas aquelas noites calmas e os altos eucaliptos, as estrelas do deserto, aquela terra e aquele céu, aquele nevoeiro lá fora, e eu viera para cá com nenhum propósito exceto o de ser um mero escritor, ganhar dinheiro, ser reconhecido e toda aquela baboseira. Ela era muito melhor do que eu, tã mais honesta que fiquei enojado de mim mesmo e não podia enfrentar seus olhos cálidos.

Não fiz perguntas. Tudo o que eu queria saber estava escrito em frases torturadas através da desolação do seu rosto.

Saí para uma caminhada pelas ruas. Meus Deus, aqui estava eu de novo, perambulando pela cidade. Olhei os rostos ao meu redor e sabia que o meu era como o deles. Rostos drenados de sangue, rostos tensos, preocupados, perdidos. Rostos como flores arrancadas de suas raízes e enfiadas num vaso bonito, as cores se esvaindo rapidamente. Eu tinha que sair daquela cidade.
Edição: Pergunte ao Pó, Editora José Olympio, 2015

quinta-feira, 20 de outubro de 2016

Doutor, para mudarmos nosso olhar precisamos ser crianças


O que acontece com a gente se parece com o que acontece com os outros, disse Bukowski. Eu acrescentaria, Doutor: para que tudo o que acontece ao redor deixe de ser imagem e repetição do mesmo, é necessário reaprender a olhar. Sábado de manhã caminhava numa avenida e cruzei por uma jovem garota negra com duas crianças, uma de uns sete anos e outra no colo da mãe, com uns três, quatro anos. A que estava no colo da mãe parecia ter um olhar triste, e ficou me encarando, e isso me chocou. Enquanto a mãe seguia em frente, a criança virou o pescoço para ficar mais tempo me observando. O que chamou sua atenção? Doutor, é estranho como uma cena corriqueira possa ter me impressionado. Minha alma neste dia não foi mais a mesma. Fiquei pensando, após aquela cena: a BELEZA (Deus?) não combina com coisas espalhafatosas, pirotécnicas. Agora necessito contar ao Senhor aquela vivência, pois creio que pouco adianta sentir algo belo, que me deixou triste, e não compartilhar com os outros. É por isso que escrevo. Quero apanhar e eternizar o que é passageiro. Aquele olhar tão cheio de mistério, talvez impossível de decifrar, sintetiza os olhares de todas as crianças, de qualquer cantinho do planeta. Fiquei pensando, Doutor, o que posso carregar para a eternidade, o que devo despir e deixar pelo caminho nesta vida breve? Terei uma alma? Sinto isso nas pessoas e coisas que me rodeiam aqui e agora. Sim, naquele olhar da criança eu vi sua alma! No seu olhar refletiu-se minha infância, de brinquedos, árvores, córregos, o canto dos pássaros, a música que sai da vida dos animais. Eu vivi aquele olhar! E esse olhar me fez pensar sobre o quanto sou arrogante, pretensioso, acorrentado a coisas fugazes. E o mais incrível é que, ao refletir sobre isso, me senti mais leve.
O Senhor pode pensar que exagero quando olho com tal intensidade ao meu redor. Mas não dizem que os olhos são o espelho da alma? Rubem Alves afirma que, “se os olhos forem bons, o mundo será belo. Se os olhos forem maus, o mundo será sinistro”. Complementaria dizendo que a demarcação entre paraíso e inferno começa de várias fraquezas humanas, e uma delas é a inveja. Inveja inveja inveja... e esta nasce de um jeito (torto?) de olhar. Não será uma das razões para o mundo andar tão mal? Para mim, a inveja e outros sentimentos chamados de “pecados capitais” ganham vida quando deixamos de ser crianças e entramos no mundo adulto. Época em que, também, distorcemos, envenenamos e engessamos nosso olhar.
(Diário de B. B. Palermo)


quarta-feira, 12 de outubro de 2016

Um sonho de simplicidade - Rubem Braga


Então, de repente, no meio dessa desarrumação feroz da vida urbana, dá na gente um sonho de simplicidade. Será um sonho vão? Detenho-me um instante, entre duas providências a tomar, para me fazer essa pergunta. Por que fumar tantos cigarros? Eles não me dão prazer algum; apenas me fazem falta. São uma necessidade que inventei. Por que beber uísque, por que procurar a voz de mulher na penumbra ou amigos no bar para dizer coisas vãs, brilhar um pouco, saber intrigas?
Uma vez, entrando numa loja para comprar uma gravata, tive de repente um ataque de pudor, me surpreendendo assim, a escolher um pano colorido para amarrar ao pescoço.
A vida poderia ser mais simples. Precisamos de uma casa, comida, uma simples mulher, que mais? Que se possa andar limpo e não ter fome, nem sede, nem frio. Para que beber tanta coisa gelada? Antes eu tomava água fresca da talha, e a água era boa. E quando precisava de um pouco de evasão, meu trago de cachaça.
Que restaurante ou boate me deu o prazer que tive na choupana daquele velho caboclo no Acre? A gente tinha ido pescar no rio, de noite. Puxamos a rede afundando os pés na lama, na noite escura, e isso era bom. Quando ficamos bem cansados, meio molhados, com frio, subimos a barranca, no meio do mato, e chagamos à choça de um velho seringueiro. Ele acendeu um fogo, esquentamos um pouco junto do fogo, depois me deitei numa grande rede branca – foi um carinho ao longo de todos os músculos cansados. E então ele me deu um pedaço de peixe moqueado e meia caneca de cachaça. Que prazer em comer aquele peixe, que calor bom em tomar aquela cachaça e ficar algum tempo a conversar, entre grilos e vozes distantes de animais noturnos.
Seria possível deixar essa eterna inquietação das madrugadas urbanas, inaugurar de repente uma vida de acordar bem cedo? Outro dia vi uma linda mulher, e senti um entusiasmo grande, uma vontade de conhecer mais aquela bela estrangeira: conversamos muito, essa primeira conversa longa em que a gente vai jogando um baralho meio marcado, e anda devagar, como a patrulha que faz um reconhecimento. Mas por que, para que, essa eterna curiosidade, essa fome de outros corpos e outras almas?
Mas para instaurar uma vida mais simples e sábia, então seria preciso ganhar a vida de outro jeito, não assim, nesse comércio de pequenas pilhas de palavras, esse ofício absurdo e vão de dizer coisas, dizer coisas… Seria preciso fazer algo de sólido e de singelo; tirar areia do rio, cortar lenha, lavrar a terra, algo de útil e concreto, que me fatigasse o corpo, mas deixasse a alma sossegada e limpa.
Todo mundo, com certeza, tem de repente um sonho assim. É apenas um instante. O telefone toca. Um momento! Tiramos um lápis do bolso para tomar nota de um nome, um número… Para que tomar nota? Não precisamos tomar nota de nada, precisamos apenas viver – sem nome, nem número, fortes, doces, distraídos, bons, como os bois, as mangueiras e o ribeirão.
Março de 1953

terça-feira, 11 de outubro de 2016

As flores de plástico


Na sala de espera, as flores de plástico eternizam. Sem a ansiedade do corpo que aguarda exames e palpites. Apenas existem. Livres como toda matéria que, ao passar do tempo, resiste. Sem dores, desculpas e culpas. Sem noção de finito e infinito. Pena não saberem da perenidade da vida. É uma pena. Seriam sensíveis, pois perceberiam o quanto a vida madura é falível e a angústia é certa com a morte a espreitar.

(Tiradas do Teco, o poeta sonhador) 

Dicas para ter uma vida interessante


1 - Comprar equipamentos de ginástica, de massagens, estocar chás, remédios para aumentar a disposição diante de uma vida agitada. Inscrever-se em academias, comprar pacotes de TV, de filmes, de esportes. Matricular-se em cursinhos de línguas, comprar pacotes de viagens até estourar o cartão de crédito e o tempo livre.
2 - Estressar-se com os que pensam diferente de você, que seguem outra ideologia ou que simplesmente não ligam para ideologias. Implicar com tudo o que nos rodeia, por sugarem nossas forças através desse bombardeio de informações.
3 - Pensar durante todo o tempo a respeito das dificuldades que o teu amor tem em ser igualzinho a você. Dedicar horas tentando ajustá-lo à tua visão de mundo. A cada frustração, sofrer, sofrer e perguntar por quê? Por quê?
4 -  Dar a mínima para artes, literatura, poesia e filosofia. Acreditar piamente que e o sentido de tudo está nos negócios, e que sem os negócios nada de importante temos para falar, ouvir, curtir.
5 - Evitar tudo o que envolva saudade. Coisas da infância e adolescência, brinquedos e colegas, paixões e namoros. Deletar da memória histórias lidas ou ouvidas, de contos de heróis e vilões, mocinhos e bandidos. Bloquear as lembranças de namoros ou quase namoros na adolescência, alegres ou sofridos. Evitar o sentimento do que disse Camões: "A grande dor das coisas que passaram".
6 - Fugir das coisas simples, das pessoas simples, da vida simples. Fazer do trabalho uma batalha diária para acumular dinheiro e se rodear de objetos que impressionem todo mundo.
7 - Fazer muito pouco ou até o contrário do que foi dito aqui.

sexta-feira, 7 de outubro de 2016

Alunos do IFF de Santo Augusto/RS




Para o esclarecimento da população, nós da organização estudantil do Instituto Federal Farroupilha vamos expor de maneira simples os motivos da mobilização que estamos promovendo, para que todos entendam. Nossa mobilização é contra medidas tomadas em relação ao futuro da educação, que nos últimos meses estão se provando um retrocesso de cerca de 52 anos. Em especial, protestamos contra a PEC 241, que será votada no dia 10/10/2016 na Câmara dos Deputados Federais, que tem como objetivo estagnar investimentos em saúde, educação e outras áreas fundamentais. Quando falamos que lutamos por um ensino público e de qualidade, não estamos dizendo que o ensino do IF é desqualificado ou ainda reclamando de nossos professores. Pelo contrário, por estudarmos em uma instituição de qualidade acadêmica e com ótimos professores, que temos visão para lutar não apenas pelo que nos afeta diretamente, mas também por ações que prejudicam a todos os cidadãos, pois somos impulsionados a pensar e nos colocar no logar do outro. E sim, como estudantes não podemos aceitar que a educação e outras áreas fundamentais paguem a conta de uma crise que está evoluindo a décadas. Acreditamos que há medidas que possam ser tomadas que não afetam a população brasileira. Há lugares onde é possível cortar custos e onde ninguém comenta em cortar... Nós estudantes somos representantes de nossas famílias, amigos e povo brasileiro, independente de partido político e base ideológica. Esclarecendo, por fim, que a organização e iniciativa de realizar a manifestação partiu exclusivamente dos ALUNOS do campus. Os professores e a direção foram avisados de nossa mobilização e se mostraram favoráveis ao ato. Os mesmos não interferiram no desenvolvimento e tomada de decisões. As decisões foram tomadas por uma organização estudantil formada por ALUNOS, que se sentiram tocados pela atual situação do país. Portanto, a mobilização e quaisquer prováveis repercussões são de total responsabilidade dos ALUNOS.

quinta-feira, 6 de outubro de 2016

Um conto mínimo - Heloisa Seixas


Há alguns anos, um avião japonês sofreu uma pane a dez mil metros de altura. Todo o sistema entrou em curto e os motores simplesmente pararam de funcionar. O avião começou a cair. Mas não se descontrolou, não deu reviravoltas no ar, nem se partiu em pedaços ou pegou fogo. E isso foi o mais terrível. Simplesmente começou a cair – lentamente.
Descia quase flanando, com suavidade, embora mergulhasse de forma inexorável rumo ao choque com o chão. E, enquanto isso, todos a bordo viviam, durante vários minutos, a angústia da morte próxima. Se não me engano, foram vinte minutos. Vinte minutos de espera até a explosão final.
O que faziam, o que será que pensavam? Alguns com certeza entraram em pânico, outros, paralisados de medo, na certa rezaram. Outros, ainda, bêbados de terror, devem ter falado alto e até cantado.
Mas depois, quando tudo estava terminado, uma surpresa: as equipes de resgate encontraram, entre os destroços calcinados, pedaços de cadernetas e até guardanapos com anotações de vários passageiros, que tentaram registrar aqueles minutos terríveis ou deixar uma última mensagem, como se fossem náufragos, condenados e sem esperança, numa ilha deserta.
Na época, li com arrepio o noticiário sobre o assunto, e até hoje sinto um frio na espinha quando penso no que podem ter sido aqueles momentos finais. Lembro-me também que o impulso daquelas pessoas – de, diante da morte, procurar deixar alguma coisa escrita – foi comparado ao dos artistas da humanidade: escritores, pintores, músicos, todos os que tentam, através da arte, deixar marcas de sua passagem sobre a terra, na esperança, quase sempre vã, de driblar a finitude da vida.
É a pura verdade. Somos todos – não só artistas, mas todos nós – como aqueles japoneses desesperados. Vivemos tentando deixar nossas pegadas, apressados entre o início e o fim da viagem, sem saber ao certo o que acontecerá. E a vida passa num sopro, uma rajada, não dura mais do que alguns minutos diante do arco da eternidade.
A vida é um conto mínimo.
(Do livro Contos mínimos. Editora Best Seller)

Myrna pergunta: sua alma é imortal? - Nelson Rodrigues

O texto sugere que Nelson Rodrigues acredita na alma imortal. Assim sendo, levaremos para a "nova" vida nossos sentimentos essenciais e, sobretudo, um sentimento essencialíssimo, como é o amoroso.
para Nelson Rodrigues, nossa personalidade, nosso "eu" único e inconfundível, são os nossos sentimentos. Se por algum motivo perdêssemos os nossos sentimentos, seríamos como um Frankenstein. Disso ele conclui que, "na hipótese de ser a alma imortal, são imortais, também, certos sentimentos".
Porém, diz ele que "na terra sentimos coisas que não interessam, que não exprimem o nosso 'eu' profundo e eterno, coisas, enfim, que podemos abandonar (...). É justo, assim, que cheguemos à outra 'vida' despojados dessas coisas de superfície. Mas no amor, não (...). O homem que, na passagem da vida para a morte, perdesse o amor, teria perdido, também, sua alma".
Até que ponto Nelson Rodrigues fala "sério" ou está blefando, já que Myrna é sua criação, sua ficção, seu pseudônimo?

(Do livro Não se pode amar e ser feliz ao mesmo tempo - consultório sentimental. Companhia das letras)

quarta-feira, 5 de outubro de 2016

Nuvens - Álvaro de Campos



No dia triste o meu coração mais triste que o dia... 
Obrigações morais e civis? 
Complexidade de deveres, de consequências? 
Não, nada... 
O dia triste, a pouca vontade para tudo... 
Nada... 

Outros viajam (também viajei), outros estão ao sol 
(Também estive ao sol, ou supus que estive), 
Todos têm razão, ou vida, ou ignorância simétrica, 
Vaidade, alegria e sociabilidade, 
E emigram para voltar, ou para não voltar, 
Em navios que os transportam simplesmente. 
Não sentem o que há de morte em toda a partida, 
De mistério em toda a chegada, 
De horrível em todo o novo... 

Não sentem: por isso são deputados e financeiros, 
Dançam e são empregados no comércio, 
Vão a todos os teatros e conhecem gente... 
Não sentem: para que haveriam de sentir? 
Gado vestido dos currais dos Deuses, 
Deixá-lo passar engrinaldado para o sacrifício 
Sob o sol, alacre, vivo, contente de sentir-se... 
Deixai-o passar, mas ai, vou com ele sem grinalda 
Para o mesmo destino! 
Vou com ele sem o sol que sinto, sem a vida que tenho, 
Vou com ele sem desconhecer... 

No dia triste o meu coração mais triste que o dia... 
No dia triste todos os dias... 
No dia tão triste... 

Álvaro de Campos, in "Poemas" 
(Heterônomo de Fernando Pessoa) 

A poesia já esteve, ou ainda está na moda?



"Nos anos 70, no Brasil, a poesia estava na moda, como disse Mário Quintana. 
Nunca se viu tanta gente poetando. Ou nunca se viu tanta gente mostrando, já que fazer poemas é vício secreto próprio da adolescência, nas classes alfabetizadas. Quem, aos dezessete anos, não tinha um caderno com seus pensamentos mais recônditos e preciosos, o incomunicável caderno de autoconfidências e dos impulsos inconfessáveis?
Não duvido que é aí que a literatura começa.
Mas não é aí que ela acaba.
Cedo, lendo a gente descobre, lá fora existe, não apenas um mundo mas também uma literatura, um universo feito de palavras, frases perfeitas, enredos inesquecíveis, versos definitivos, 'performances verbais' tão vivas quanto a própria vida, e que sobrevivem à própria morte do autor.
Se nosso negócio é palavra, é nesse mar que a gente tem que entrar" (Paulo Leminski).

terça-feira, 4 de outubro de 2016

O homem das palavras - Affonso Romano de Sant'Anna


De Aurélio Buarque de Holanda, que nos deixou esta semana, guardo algumas lembranças. Todas alegres.

Uma vez, por exemplo, estávamos num congresso de escritores em Brasília. Assentados no auditório ouvíamos as doutas palavras que eram ditas no palco onde alguém proclamava as virtudes de um texto literário. A rigor, o texto em questão era a Canção do Exílio, de Gonçalves Dias, que até dez anos atrás todos os brasileiros sabiam de cor, não exatamente por causa da ditadura mais recente, mas porque era texto que aparecia em todas as antologias escolares. 

Quem tem mais de trinta anos e estudou português e não a famigerada comunicação e expressão se lembra dos primeiros versos:

Minha terra tem palmeiras

Onde canta o sabiá,

As aves, que aqui gorjeiam,

Não gorjeiam como lá.

Pois bem. Lá ia o expositor à mesa ressaltando que a grande força deste poema estava no fato de que era um texto sem qualquer adjetivo. Disse isto, conferindo tal observação ao grande Ayres da Matta Machado.

Mal se pronunciou esta frase, ouviu-se do fundo do auditório um vozeirão contestando e reclamando:

– Perdão, mas esta ideia é minha.

A plateia voltou-se estupefata. Era Mestre Aurélio, que levantando-se da poltrona e encaminhando-se desassombradamente para o palco continuou falando:

– Sim, esta ideia é minha. Tive poucas, não sei se terei outras e tenho que defendê-las.

Isto posto assumiu seu imprevisto lugar à cabeceira das ideias e fez um brilhante aparte que virou uma conferência.

Outra estorinha sobre Aurélio já é clássica. Tendo que ir à Academia, uniformizado com espada e chapéu, ficou ali na Glória aguardando táxi, até que um parou. O motorista fascinado com a sua indumentária, olhando pelo retrovisor, de repente indagou:

– Ainda que mal pergunte: sois algum reis?

A construção da frase era estranha, mas o motorista estava jogando até com a possibilidade de "folia-de-reis" tendo em vista a semelhança entre a fantasia dos acadêmicos e a do folclore. Aurélio explicou que não, falou da Academia. O chofer não entendeu muito bem. Mas quando Aurélio lhe pediu para se apressar, porque estava atrasado, o outro atalhou confiante: 

– Pode deixar, doutor, que do jeito que o senhor está vestido, nada começa antes do senhor chegar.

05/01/89

(SANT'ANNA, Affonso Romano de. Porta de colégio e outras crônicas. 2. ed. São Paulo: Ática, 1997. p. 53-56. Coleção Para Gostar de Ler. 16 Vol.)

sábado, 1 de outubro de 2016

Ah, o amor!


Parece que o amor tem uma energia que flui do universo, como a música de Boccherini. Deixemos que verta ao natural, em vez de prendê-lo num campo de concentração, onde todos estamos vigiados e recebendo uma dose mínima de afeto.
(Diário de B. B. Palermo)


Memória de minhas putas tristes - Gabriel García Marquez


Nunca me deitei com mulher alguma sem pagar, e as poucas que não eram do ofício convenci pela razão ou pela força que recebessem o dinheiro nem que fosse para jogar no lixo. Lá pelos meus vinte anos comecei a fazer um registro com o nome, a idade, o lugar, e um breve recordatório das circunstâncias e do estilo. Até os cinqüenta anos eram quinhentas e catorze mulheres com as quais eu havia estado pelo menos uma vez. Interrompi a lista quando o corpo já não dava mais para tantas e podia continuar as contas sem precisar de papel. Tinha minha ética própria. Nunca participei em farras de grupo nem em contubérnios públicos, nem compartilhei segredos nem contei uma só aventura do corpo ou da alma, pois desde jovem me dei conta de que nenhuma é impune.

(Do livro Memória de minhas putas tristes. Editora Record)

sexta-feira, 30 de setembro de 2016

O amor, ah o amor


O amor não se deixa aprisionar, por isso é uma peça estranha no  jogo da vida!

(Diário de B. B. Palermo)

quinta-feira, 29 de setembro de 2016

Algo mais sobre o amor


O amor é uma promessa que não se cumpre e só por o ignorarmos acreditamos nas suas juras, entregamo-nos a elas, como se do sentimento ou da vida se pudesse dar ou ter garantias. Indissociável do ódio, o amor o é ainda de uma outra paixão humana, a paixão tão humana da ignorância.

(Betty Milan. O que é o amor).


Visão machista do amor?

"Lá pras bandas onde eu nasci
já se falavo do amô:
todas as boca dizia
que era farso e matadô
"nas marvadage do Amô
não há cabra que não caia
quando o diabo tira a roupa,
tira o chifre e tira o rabo
pra se vestir c'uma saia"
(Catulo da Paixão Cearense)


Carpinejar


A loucura exige disciplina para não ser vista.

(Do livro Caixa de sapatos. Companhia das letras)

terça-feira, 27 de setembro de 2016

Doutor, a Ninfa disse que sou sensitivo


Quando estou mais pra lá do que pra cá, Doutor, parece que nasce um cara sensitivo.  Isso me assusta, e então largo da bebida por alguns dias, faço meditação e bebo litros e litros de água, até me reencontrar (não, não, Doutor, eu não quis dizer “reencarnar”). Sempre desconfio da veracidade das informações de muitos sites que pesquiso no Google. Até que possuo algumas características de sensitividade, mas não passam de palpites, como no caso do “mistério” e do que chamam de “sobrenatural”.
Duas semanas atrás aconteceu algo que me deixou mais perplexo do que assustado, daí desconfiar dessa estranha sensibilidade. Uma amiga da Ninfa dos lindos olhos suicidou-se. O fato me chocou, não por conhecê-la pessoalmente, mas por compartilhar as dores e o luto da Ninfa. A garota trabalhava num escritório que fica na avenida que atravessa a cidade de norte a sul. Soube da tragédia através de uma postagem que a Ninfa fez no facebook. Era final de tarde e a notícia baqueou meu peito, tanto que providenciei papel e caneta e corri até o bar mais próximo. Embora não tivesse bebido e usado drogas, minhas mãos tremiam. Escrevi um poema que dizia mais ou menos assim: 
Não sei quem está numa melhor. Eu aqui, me entorpecendo de cerveja, ou ela dormindo a algumas horas no caixão, pra nunca mais acordar. Eu, com medos e incertezas, ela despedindo-se do contato com as manhãs, noites de insônia e lua cheia./ Os comerciais de TV mostram jovens brancos, alegres, sarados e saudáveis. A felicidade, na tela, se expande com sorriso fácil. / Pouco sei de suas vidas, se visitam farmácias, se perdem o sono de madrugada. Não levo a sério o mundo que me vendem, até porque as coisas que me pedem pra comprar, como entorpecentes, não garantem mais do que meia hora de euforia. / A garota morreu.  Tantas vezes passei em frente ao seu trabalho com a esperança de ser notado por ela, jogando na sorte de que seu olhar me encontrasse.
nunca saquei (como poderia adivinhar?) que seu sorriso e atenção não resumem a essência de uma pessoa, nem tudo que se agita no seu mundo interior.  / Agora sei que existe muito mais vida nos silêncios de uma princesa. / Sei que abrir mão da vida talvez não seja um ato de coragem. Mas estou apegado às verdades do senso comum. É mais fácil rastejar na trilha segura do cotidiano do que pensar nos fios tênues que nos sustentam sobre o abismo.  / E acreditamos que a angústia, a tristeza e os gestos desesperados só acontecem com os outros. / Muitos me convidam para viajar, conhecer outros povos, estudar outras línguas. Estou convencido de que não devo estacionar neste lugar. / Mas hoje, ao saber de sua partida, acendeu uma luz: o mais importante, mais do que tudo, é buscar conhecer meu mundo interior”
.


Doutor, houve muitos comentários e informações exageradas a respeito do fato. Bem, vou contar o que me deixou perplexo. Semana passada, depois que o primeiro bar fechou, em torno de uma da madrugada, eu e alguns amigos fomos beber e jogar sinuca num desses points que funcionam a noite toda. Acontece que eu tinha bebido muito e, lá pelas quatro da manhã, senti uma necessidade de voltar para casa, como se fosse um alerta ou algum “sinal de segurança”. Fiz de conta que ia ao banheiro e me aventurei sozinho pela avenida deserta rumo de casa. Doutor, a garota enforcou-se numa construção abandonada ao lado do prédio onde trabalhava. Ao passar por ali ouvi um estouro, como se fosse uma bomba. Apavorado, perguntei a mim mesmo “caralho, o que foi isso?”, “de onde saiu esse estrondo?”. Apressei o passo e me dei conta de que a embriaguez havia passado. Me perguntava: “Será que existem mesmo espíritos?” Contei o episódio à Ninfa dos lindos olhos e ela disse CA-TE-GO-RI-CA-MEN-TE que sou sensitivo.
Doutor, será que me impressiono porque não sou mais garoto? Desde que fiz algumas leituras, principalmente de Nietzsche e Sartre, me considerava um niilista. Isso, se o cara morreu, tudo acabou. Agora que me aproximo do limbo, que já estou me acostumando com a ideia de ser um jovem velho, bêbado e escroto, vejo meu coração derreter como manteiga. Ou isso tem relação com a minha facilidade em idealizar o amor e captar as emoções, que sempre andam “à flor da pele”? Hum... voltou a lembrança de minha infância e adolescência e os mandamentos da igreja católica. Caramba, Doutor, por que essa tábua de valores, como se fosse a cruz que Cristo carregou, me acompanha até hoje? Ou quem sabe pago, com altos juros, os diversos pecados que cometi com namoradas quando tinha uns vinte anos de idade? Não, Doutor, não chegam a ser fantasmas de arrepiar os pelos. Creio que não valeria à pena contar. Tudo bem, vou narrar pro senhor assim bem por alto. Perto da casa onde nasci e cresci, um vilarejo de famílias trabalhadoras, dóceis e obedientes, há uma gruta que faz companhia a uma linda cachoeira. A paróquia da cidade, muito católica, nomeou pra essa gruta uma Santa Padroeira – a Santa Bárbara. Todas as vezes que minhas namoradas vinham visitar meus familiares eu as levava para conhecerem a gruta, um dos poucos lugares turísticos da região. Além do encantamento com a beleza do lugar, e após contar um pouco a história daquela gruta, inclusive algumas lendas quando a região era habitada por indígenas, eu me esforçava para que rolasse um clima sensual. Está bem, vou abrir o jogo, Doutor: transávamos diante de uma legião de estátuas, santas e santos, de velas acesas por pagadores de promessas, e sob o olhar sereno e complacente da santa padroeira. Quando eu levava as namoradas para conhecerem a gruta realizava tudo quanto pedi na adolescência, após descobrir as maravilhas que uma pica proporciona. Foram dezenas de novenas e pedidos realizados diante da santa. Sim, os adultos, submissos e crentes, pediam para que chovesse depois de seca, ou pediam uma farta colheita, ou boas vendas no comércio. Meus pedidos eram menos grandiosos, orbitavam em torno de genitálias, bundas e peitos. Me diz, Doutor, qual o pecado de se viver a juventude “como se não houvesse amanhã”, e aproveitar o dia (carpe diem) como se fossemos (e éramos) uns punheteiros meio “poetas mortos”?


(Diário de B. B. Palermo)

Novo homem!

  Grãos de areia interditaram meus olhos nesta quarta-feira de tarde, bastou umas calcinhas no varal tomarem banho de sol e ousarem ...