domingo, 18 de dezembro de 2016

Doutor, o Arthur é o cão da triste figura


Certo dia, ao desembarcar na parada de ônibus a alguns quarteirões de casa, eis que surge um mamífero quadrúpede (da família dos caninos, Doutor) e passou a me seguir. Acho que me confundiu com algum velhinho que ele aguardava desembarcar do ônibus, pensei. O vira-latas me acompanhou até em casa. No seu olhar percebi a postura de quem dava as cartas, como se dissesse EU é que escolho dividir tua moradia, desde que EU decida o que é melhor.
À medida que o Arthur foi ficando, Doutor, remoo a seguinte dúvida: como ele estava mais acostumado com as ruas do que em casa, devo “prendê-lo” para evitar que corra o risco de ser atropelado pelo movimento louco da cidade, ou domesticá-lo, dando-lhe  todas as regalias dos pet shops, roubando-lhe a antiga rotina? Conhecidos me disseram que o Arthur quase sempre acompanha os velhinhos, não apenas até as paradas de ônibus, mas também quando se dirigem aos postos de saúde, escolas, asilos. Diante de tantas virtudes, é claro que me sinto culpado por cultivar tão poucas qualidades. Sim, Doutor, em vez de fazer algo para melhorar o mundo, fico horas na internet, invado sites pornôs e me masturbo. Enquanto o cão da triste figura vai pras ruas sempre disposto a acompanhar os desamparados, eu só tenho olhos para as garotas, seus cabelos, cintura, bumbum, seu jeito de andar, ansioso para atrair sua atenção. O Senhor acha que desisti de acreditar na humanidade e não passo de um gigantesco verme?
A liberdade do Arthur é um dado importante, o Senhor tem razão. Tenho muito a aprender com ele. Um escritor precisa conhecer a vida como ela é, ir pras ruas, alimentar-se do fluxo. Mas fico angustiado. Esses dias o Arthur sumiu por quarenta e oito horas. Bebi demais, Doutor, liguei para dezenas de pessoas, até o Cara! apareceu pra dar palpite. Não, não quis postar fotos do bichinho no facebook, quis preservar sua identidade. Vamos deixar para outros humanos a mania de exporem seus bebês e crianças na internet. Perderam o senso do ridículo. Aliás, Doutor, essas mulas não fazem a mínima ideia do que é ser ridículo.
Ah, sim, ainda não descrevi o Arthur. É preto, de porte mais pequeno do que médio, e tem uma cara séria de quem sempre anda desconfiado. Deve ser porque ele está boa parte do tempo batendo de frente com os perigos desse mundo, Doutor. Escrevi um conto prontamente aceito por uma revista de circulação nacional com o título “Arthur, o cão da triste figura”. Uma narrativa lírica que tenta mostrar que a beleza é relativa (de menor importância) diante da gangorra entre defeitos e qualidades de alguém. O que é ser bonito ou feio? Ainda bem que os cães não dispõem de juízo estético. Não perdem tempo com isso. Simplesmente nos escolhem e acolhem. E amam. Dizia também no conto que Arthur encarna o espírito dos cães que aparecem na literatura, como em Marley e a cadela Baleia, de Vidas secas
Há um termômetro que ajuda a compreender minha relação com o vira-latas. Tomo consciência de que devo desestressar quando não lhe dou atenção e carinho, quando estou mal-humorado, nessas horas caminho por aí, do jeito que ele faz, para encontrar com amigos, relaxar e beber umas cervejas.
O Arthur evidencia como anda meu carma: se estou sentado próximo ao seu tapete, ele se enrosca e deita sobre meus pés e nossas energias fluem de um para o outro. Então, Doutor, minha sensibilidade retorna, e decido dar-lhe uma boa educação musical. A música clássica, principalmente Tchaikovsky e Chopin, deixa-o mais relaxado, percebo pelo movimento do rabo e das orelhas, ainda mais se for depois que ele volta de suas missões voluntárias pela cidade.
As virtudes do Arthur, Doutor, me levam a pensar sobre meus defeitos. Os cuidados que temos um para o outro me tornam um homem melhor. Por isso sonho que ainda vou dar certo com alguma mulher. O que o Senhor acha, Doutor?
Formou-se uma dúvida. A preocupação do Arthur com os velhinhos, mendigos e desamparados pelas avenidas da cidade e seu trânsito agressivo, não dá mostras de que ele não é um simples vira-latas, mas sim um anjo?


(Diário de B. B. Palermo)

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