Vendi minha casa e mudei pro litoral.
Comprei um pequeno apartamento, que batizei de ca-fofinho.
Foi pensado e decorado por uma italiana poderosa, a dona Ju-ju.
Toalhas de mesa floridas, diferentes tons de bordado
nos panos de prato - nenhum encardido, o que pra mim
é um milagre (só eu sei…).
Pratos, taças e xícaras coloridas com desenhos infantis.
Sei lá, deviam ser inspirados em seus netinhos.
Cortinas com detalhes delicados - e eu, sem ideia de como lavá-las.
Sabonetinhos no guarda-roupa, abajur futurista ao lado da cama.
Nunca usei forno micro-ondas, chaleira e fogão elétricos,
nem me estressei em me perguntar se me identificava
com tudo isso.
Ao visitar o apartamento, fui conduzido pelo zelador.
Deixou-me à vontade pra observar móveis, pinturas, pisos e tals.
Em 5 minutos, tive certeza de que encontrara o meu lugar.
Negócio fechado, virei amigo da italiana.
Uma senhora exótica de uns cinquenta e poucos,
sem papas na língua.
Sentia-se à vontade em me aconselhar.
Quando soube meu signo, exclamou:
- Tu é igual ao meu sobrinho.
Sempre gasta mais do que ganha.
Todo mês pede dinheiro emprestado!
Puta que o pariu.
Que mulher que acerta na mosca!
Deve acertar no Bicho toda semana.
Leu uns poemas e histórias que escrevo,
fez apontamentos, críticas - e então me convenci
de que encontrara minha Gertrude Stein.
Sério, acreditei que ela podia influenciar minha escrita,
trazendo mais e mais motivos para teclar.
Na Paris do início do século XX, Gertrude teve influência
na literatura de jovens como Hemingway.
Mas isso já é de longe uma outra história.
Ju-ju se preocupava com outras coisas.
Temia um amigo poeta que conheci em Texas Beach, o Zé.
Mão no ombro, aconselhava:
- Tudo bem, ele é poeta. Mas observa, Cadelão,
como o esquisito pisa no acelerador!
A quantidade de doses de uísque vagabundo que ele entorna todo dia.
Garoto, deixa de ser influenciável!
E o que é pior: tu anda fascinado pelo tonto do Bukowski,
e só vejo bebedeira e conversa fiada pra cima de outros bêbados.
Fiquei puto. Quem era ela pra criticar o velho mestre?
Mas calava. Dava de ombros.
A italianona semeava suas metáforas:
- Tu precisa bater o escanteio direto pra área,
nada de ficar trocando passes pra cima e pra baixo,
nessa rotina improdutiva.
Uma luzinha acendia ao escutá-la,
mas minha bateria andava mal das pernas.
Certo dia, passamos diante de uma casa de recuperação
pra dependentes químicos, e Ju-ju mandou essa:
- Tu para de fumar esses baseados com o Zé,
parece que querem despencar no abismo!
Ao ver os olhos dos caras pegando fogo nas janelas da clínica,
Ju-ju foi cirúrgica:
- Repara nesses olhares vazios.
Não embarca nessa, Cadelão. Se tu deixar,
tu escorrega no abismo e dorme preso em suas garras.
Nessas alturas eu delirava.
Não sabia se o abismo era um buraco real
ou só o efeito das loucuras bêbadas do Zé.
Devia haver alguma verdade.
Eu fracassava quando fantasiava outros “eus”.
Às vezes queria imitar o Fernando Pessoa e seus heterônimos.
Outras vezes era o Macunaíma – o herói sem caráter.
Ou então o James Bond, com suas conquistas
e ternos alinhados.
No fim, continuei sendo só eu,
Cadelão da praia, com Ju-ju no meu pé
e o Zé me chamando pro boteco.
Numa noite dessas, tive uma epifania:
sonhei que a Ju-ju entrava numa luta de MMA com o Bukowski.
Ele bêbado, ela de salto e batom vermelho.
Uma luta nos fundos de um boteco sinistro,
como se fosse apenas mais uma cena do filme “Barfly”,
roteiro escrito pelo velho safado.
No segundo round, ela deu um mata-leão filosófico e gritou:
- “Escreve sóbrio, seu porra!”
(B. B. Palermo)