segunda-feira, 17 de junho de 2024

Nada a ver, menino!

 

Nada a ver, menino!

 

Baratas, sobreviventes neste planeta há 6 milhões de anos,

passeiam pela sala cantarolando um samba do “Demônios da garoa”. É a “Saudosa maloca”.

Eis a mensagem, nas entrelinhas:

se o sol, dia desses, cuspir seu fogo

um pouco mais forte,

minha vida será escuridão, e não estarei preparado

como essas irmãs.

 

Dias normais. Serpentes se aproximam e se afastam,

e fica a vontade de chegar de voadora

nos vitrais das instituições.

O de sempre se enrola em minhas pernas e sobe

e sobe e me abraça, então aposto no Bicho

os números da Cobra e sou desdenhado

pela deusa sorte:

“Nada a ver, menino!”.

Apesar de circular por aí como um sobrevivente pagando promessas,

sei que amanhã será incrível.

Farei concurso pra servidor municipal – serviços gerais,

zelador do cemitério ou jardineiro,

ou porteiro de alguma creche.

Homem digno, vida digna, despertado pela música do rádio-relógio.

A barba está feita,

o chuveiro ainda esquenta,

os amigos estão tranquilos e ronronam feito pumas

em seus leitos.

Fui bom aluno no catecismo e nunca passei de um 6 em matemática.

Foi divino: na adolescência, tive uma professora jovem, loira, linda e tímida que sacou que eu gostava de literatura e então me emprestava livros que pareciam incríveis praquele garoto.

Ela é a responsável por não ter abortado

meus primeiros poemas querubins.

Esses dias juntei pastas e envelopes e caixas

com anotações e poemas e rabiscos de histórias

que me pareciam importantes.

Queimei tudo, junto com os boletins escolares.

O que vale é o milagre de ter sobrevivido

à travessia desses pequenos riachos

infestados por feras escrotas.

Não me perdoo por permanecer tanto tempo em filas

na infância e adolescência,

até na hora da comunhão, ao receber o corpo

e o sangue de Cristo.

Boa parte do passado ecoa de um jeito absurdo,

com o guindaste da vida eterna.

Ainda hoje tenho medo.

Em algumas noites durmo com a luz acesa

e o edredom disfarçando a cabeça

e os sonhos.

 

(B. B. Palermo)


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