terça-feira, 14 de abril de 2020

Ela jogou contra a parede um prato Duralex que foi do enxoval de mamãezinha



Velho, tá complicado atravessar essa quarentena. Teoricamente quero me tornar sujeito melhor, menos corrompido, mas na prática a bebida fala mais alto.
Meus amigos de um posto de combustíveis deixam-me sentar num cantinho da loja de conveniência. Pulo um cordão de isolamento e me refugiu num pequeno espaço, sento num banquinho e escondo a cerveja e o copo atrás de uns objetos e faço de conta que escrevo, compenetrado, incríveis poemas e fascinantes ensaios.
A toda hora chegam os caras da POE, sei lá se indo ou se voltando do serviço, e é impressionante, eles não notam minha presença. A concentração se vai, o foco idem, como é que é, os cretinos não vão dar crédito pro poeta? Tu acha, maluco, que pra polícia eu sou invisível?
O sol atravessa as janelas do bar e a garçonete pede se eu quero que ela feche as cortinas. Não - respondo. É um crime não aceitar a companhia desse sol de abril. Além do mais, Baby, o deus sol, que nos observa e aquece e cuida, nos dá de graça vitamina D.
Em casa o tédio anda de muletas, e os cães do bairro ficam sem graça e latem por qualquer coisa e evaporam seu repertório, e eu me pergunto por que não tenho contemplado detalhes do que me cerca com o mesmo entusiasmo de outros tempos. Não posso esquecer de exercitar os cinco sentidos e multiplicar pelo menos por 10 o uso da imaginação.
Quando um ônibus dobra a esquina e bate de frente com meus olhos, tento rabiscar uma boa frase. Então o celular me desperta, Tininha envia uma mensagem. Merda, esqueci de deixar o aparelho no silencioso, não quero agora me preocupar com ela.
Daqui do meu cantinho visualizo o monitor do computador do caixa do bar, e na tela aparece o número 111. Bingo, vou apostar no Bicho. Aí a garçonete me lembra do isolamento, as bancas de jogo também estão de quarentena.
É isso. Restou-me apenas um jogo: roleta russa, com a Tininha. Regado com bom estoque de cerveja e paciência. Confesso que ela é a parte mais dolorida desses dias. Sua quarentena lembra as TPMs, e eu também fico pilhado com sua implicância, e então é aquela tentação, como aconteceu várias outras vezes, desejo partir pra uma DR.
Muito louca. É a mudança de rotina, quase não sai pra rua, nada de festas e outros programas com suas amigas, e depois isso: Tininha agarra meu calcanhar, bah, cara, não tenho escrito porra nenhuma, quero distância do teclado do noty, sim, como se o infeliz também estivesse contaminado pelo vírus. A doidona... e seus amigos. Eles não conseguem ter vida normal sem frequentar academia. Credo, não leia suas postagens  no Facebook. É cada coisa que as criaturas se envolvem, brincadeirinhas e polêmicas na política, por não suportarem o tédio do tempo livre.
Eu me pergunto: o que as amebas e os vermes e as bactérias e os vírus estão tramando nesse exato momento? Aposto que num século vindouro qualquer eles vão foder com os humanos. Sim, cara, com certeza eles estão se aperfeiçoando, enquanto os homo sapiens babacas, em vez de valorizarem e investirem na ciência, voltam seus lindos olhos para pseudogurus e pseudoteorias. Bah, cara, e quem consegue aguentar aquelas merdas, as tais das "teorias da conspiração"?
Rapaz, os "sapiens" dedicam boa parte da sua vida a um trabalho meio que escravo, repetitivo, mecânico. Eis o epicentro de suas vidas, tanto é que nos fins de semana, nas horas de lazer, enlouquecem os vizinhos com galanteios ridículos e música horrível a todo volume. Então, quando há a necessidade de se isolar por algumas semanas, longe da correria do trabalho e do comércio, eles não suportam a diferente rotina.
Caralho, lembrei agora dos cães, que foram domesticados pelos "sapiens" ao longo dos milênios, e essa sua "evolução" fez com que aceitem a condição de ficarem amarrados ou enjaulados em canis, como se esse fosse seu destino natural. Velho, onde foi parar toda a sua potencialidade? Pense no que os bichos e nós somos, e o que poderíamos ser.

Pra finalizar, criatura, nem te conto. Descobri que a Tininha tem uns cacoetes. Quando bebe e come uns salgadinhos ela tem vontade de palitar os dentes. Eu digo "Não!" e ela responde "Grrrrrr!". Aprendi com mamãezinha que isso é feio. E tem mais: esses dias exagerei no trago (que novidade) e, juro, quando ela se dirigiu à geladeira me pareceu que manquitolava, fiquei invocado, só faltava ela ter um defeito de nascença... Meu, insinuei uma sandice qualquer. Bah, a garota ficou furiosa, apanhou um prato que estava sobre a mesa e arremessou na parede. Era um dos pratos Duralex que ganhei de mamãezinha, isso, do seu enxoval, acho que da década de 70. Meu, pra quebrar um prato daqueles tem que pegar de jeito. Maluco, o prato virou farinha. Tá vendo só o que esse vírus de bosta tá fazendo com nossos nervos?

(B. B. Palermo)

O PATIFE tá enrolando de novo

Quando fui acertar a conta no bar, pendurada nos últimos dias, o bolicheiro não encontrou, no caderno, o meu nome. Ao repassar a longa l...