quarta-feira, 4 de março de 2020

Maridos jovens e velhos - Nelson Rodrigues



(...) Ontem vou dobrar a esquina da rua Irineu Marinho quando uma voz me chama: - "Nelson, Nelson!". Viro-me e dou de cara com um gordo, desses que têm uma papada maior do que a de Dumas pai. Não sei se sou famoso. Mas admitindo que o seja, tenho um tipo de ralação inefável: - o "desconhecido íntimo". São sujeitos que eu nunca vi e que me tratam com uma intimidade jucunda e fulminante. Pois o gordo citado já abria para mim riso total.
Antes de me estender a mão enxugou-a num vasto lenço, explicando: - "Suo muito nas mãos". De minha parte tive bastante descaro e o tratei como a um amigo de infância. E ele me perguntava: - "Não se lembra mais de mim?". Há um suspense e o desconhecido íntimo insiste: - "Vê bem". Palavra de honra, eu não me lembrava. Ao longo de minha vida tenho tido vários amigos gordos. Mas não conseguia me lembrar nem daquela papada, nem daquelas bochechas. Na minha frente ele continuava a enxugar as mãos de um suor talvez imaginário.
E, súbito, exausto do suspense, o outro dá o berro: - "Eu sou o Neves!". Sim, era um Neves radiante de o ser. O Neves, o Neves! E o simples nome deflagrou em mim todo um maravilhoso fluxo de memória. Na minha infância profunda o Neves fora meu vizinho. Muitas vezes pulara eu o muro para ir roubar carambolas no seu quintal. Disse-lhe: - "Se me lembro!". E, já varado de nostalgia, suspirei: - "Bom tempo, bom tempo".
(...)
Foi uma conversa, entre nós dois, que se arrastou por hora, hora e meia. Falta-me espaço para contar todas as verdades eternas que dissemos um ao outro. Mas estava ficando tarde e quis me despedir. Foi aí que, mudando o tom, o Neves exala um gemido. Baixando a voz, começa: - "Preciso de uma opinião, um palpite". Novo gemido. - "É o seguinte: tenho uma filha linda, linda. Dezoito anos, aluna da PUC, um crânio. Mais inteligente do que eu, do que a mãe, do que os tios. Um portento. A garota estava noiva de um rapaz de vinte anos". Faz uma pausa e puxa um cigarro. Ou por outra: - o Neves não fuma. Não puxa o cigarro e diz trêmulo: - "Com data marcada para o casamento, minha filha se apaixona, e sabe por quem?".
Disse, por entre lágrimas: - "Por um velho". E como ele chorava na via pública ao meu lado, tive uma vergonha brusca e desalmada daquele pranto de gordo. Não sei por que, talvez injustamente, sempre achei que a lágrima do magro constrange menos. Apelei: - "Não faça isso!". Olhava para os lados, esbaforido, como se o homem que chora fosse, por isso, obsceno: - "Filha única! Filha única!". Arrisquei a pergunta: - "Mas é tão velho assim?". Disse: - "Quarenta anos!".
O Neves estaria disposto a aceitar que a menina deixasse um jovem por outro jovem. E repetia, desatinado: - "Mas, por um velho! Um velho!". Digo-lhe: - "Calma, calma!". Pula, furioso: - "Você diz calma porque a filha não é sua. Nós somos calmíssimos com as filhas dos outros. Queria ver se fosse contigo. Responde: não é uma tragédia?" Fui taxativo: - "Tragédia nenhuma! Pelo contrário: sorte para sua filha, sorte para você, para a sua mulher, para a sociedade brasileira. Você e o Brasil estão de parabéns". Aterrado, balbucia: - "Que piada é essa?".
Tive de jurar-lhe que não fazia nenhuma piada. Estava falando com uma seriedade total. Expliquei o que acho: - a esposa pode ter qualquer idade e não importa. Mas o marido não pode ser jovem. É trágica a união do homem e da mulher da mesma idade. Falei da minha experiência pessoal. Aos vinte anos eu não sabia como se cumprimenta uma mulher, como se diz "bom dia" a uma mulher, como se olha, ou sorri para uma mulher, como se protege e como se salva uma mulher. Claro que, aos dezessete, vinte anos, o sujeito tem uma plenitude de bárbaro. Mas é uma vitalidade cega, feroz, destrutiva. Quando marido e mulher são jovens a convivência é o próprio inferno. Nunca se improvisou um marido. Marido é métier, é tempo, é virtuosismo, sabedoria, lúcida paciência.
O Neves repetia, fora de si: - "Mas o cara tem quarenta anos!". Parecia-lhe que, aos quarenta anos, o homem é de uma velhice infinita, milenar. Achei graça no seu terror. Disse-lhe que, a partir dos quarenta, o homem já pode ser marido. Aprendeu fazendo sofrer outras mulheres, dilacerando outras mulheres. Ao passo que, aos vinte, com a sua feroz vitalidade sem alma, ele pode ser tudo, menos marido. Não tem nem alma, porque a alma vem depois, vem com o tempo. Neves ouvia, atônito. Por fim, admitiu: - "Realmente, aos vinte anos eu era uma boa besta". E pergunta, quase convertido: - "Quer dizer que não é uma desgraça?". Só faltei jurar: - "Uma sorte grande" (...).

Do livro O óbvio ululante. Companhia Das Letras.

Cadelão e seus amigos e suas mães loucas

Gente, esse cara é muito louco!

https://www.youtube.com/watch?v=hkE8WpNf21A&t=64s

Cervejinha e barzinho: Por que o brasileiro ama falar no diminutivo


Para um país tão famoso por suas grandes coisas, o Brasil pode, de uma maneira engraçada, ser considerado a terra dos diminutivos; praticamente nenhuma palavra está imune à diminuição.

Eu estava no Brasil havia menos de 24 horas quando me revelaram um segredinho. Em um barzinho, quando o sol se punha, um novo amiguinho brasileiro que conheci no meu hostel no Rio de Janeiro tinha uma garrafa gelada de cerveja Antarctica na mão.

Conversando sobre a noite que teríamos pela frente, ele nos serviu a bebida e me disse: "Se você quiser falar com uma garota hoje à noite, não a chame para tomar uma cerveja; pergunte se ela gostaria de uma cervejinha. Ela vai adorar se você usar essa palavra".
E foi assim que fui apresentado à fofa, porém complicada conversinha brasileira.
Não falo daqueles papinhos gentis sobre o tempo, mas do hábito que os brasileiros têm de usar diminutivos para dar um charme às suas frases, adicionando o sufixo inho/inha ou zinho/zinha.
Para muitos brasileiros, é como se uma montanha de diminutivos mudasse o sabor de suas palavras nesse processo.

Lembrança da infância

A meteorologista Carine Malagolini, de São Paulo, diz que os diminutivos são uma forma de conversa infantil que os brasileiros nunca deixaram para trás.
"Usamos muitos diminutivos e muitas vezes sem perceber. Eu acho que o uso deles veio da infância, porque nós ouvíamos e conversávamos assim com nossos pais. Por exemplo, eles perguntavam 'Você quer uma bananinha?'", diz.
Literalmente, os inhos e inhas fazem as coisas serem menores, efetivamente suavizando uma palavra, tornando-a fofa e gentil. E enquanto em inglês diminutivos são vistos como algo infantil (gatinho, cãozinho, mamãezinha), todo mundo no Brasil, de políticos a médicos, utiliza-os sem qualquer indício de ironia.
Para um país tão famoso por suas grandes coisas - a Amazônia, o Cristo Redentor e o Carnaval - o Brasil pode, de uma forma engraçada, ser considerado a terra dos diminutivos.

Praticamente nenhuma palavra está imune à diminuição.


Contexto é importante

Mas logo descobri que os diminutivos podem acrescentar todo tipo de significado oculto que pode fugir à percepção de um estrangeiro.
Contexto é tudo nessa dança linguística. Como meu novo amigo brasileiro depois me explicou, usar "cervejinha" em vez de "cerveja" implicava um convite inocente e amistoso, sem nenhuma intenção de se embebedar até tarde da noite e tudo o que isso envolve. "Genial", pensei. "Um sufixo pode dizer tudo isso?"

O linguista da Universidade de Brasília Marcos Bagno explica: "O diminutivo em 'inho' e 'inha', além de indicar o tamanho pequeno de algo, traz uma sensação de bondade e afeição - muito característicos do espírito brasileiro".

A advogada Suzana Vaz, do Rio de Janeiro, é uma das muitas brasileiras que adoram usar diminutivos. Antes de falarmos deste hábito linguístico, ela admitiu que nunca tinha realmente notado o quanto ela os usava. E explicou que "pessoas doces geralmente falam assim".
"Então, quer dizer que você é doce ou que os brasileiros são em geral?", perguntei.
"Os brasileiros são mais calorosos, amorosos. Eles gostam de contato, do corpo a corpo. Eles são vivazes. Falar no diminutivo é uma forma de carinho na maior parte do tempo, é a suavidade na fala ", disse ela.

Esperar um minutinho é uma eternidade


O engraçado dos diminutivos no Brasil é que eles muitas vezes suavizam tanto o significado das palavras que acabam dando a elas um sentido oposto.

Como quando minha namorada brasileira me pediu para "esperar só um minutinho" enquanto ela se arrumava. Depois de esperar mais 15 desses alegados pequenos minutos, perguntei como ela poderia dizer um "minuto" como "um minutinho" com a consciência tranquila.
"Mas isso faz com que esses minutos passem mais rápido", ela me assegurou com um sorriso amoroso, o diminutivo saindo de sua língua como se pudesse dobrar o tecido do espaço e do próprio tempo.
Da mesma forma, uma vez fui convidado para uma festa em uma "casinha". Algum tempo depois, meu Uber estacionava em frente a uma mansão de quatro andares com uma piscina.
"Bela 'casinha'", eu disse ao dono. "Ah, sim", ele riu. "Isso não significa que a casa é pequena, significa que é um lugar aconchegante onde você deve se sentir confortável e bem-vindo."
E no verdadeiro estilo brasileiro, em meio a uma noite de risadas e dança com um bando de estranhos, me senti em casa.

E apesar do que eu disse anteriormente, a chamada "cervejinha" normalmente se transforma em uma mesa cheia de garrafas vazias no fim da noite.


Com exemplos como esses se acumulando, comecei a entender o fato de que usar diminutivos no Brasil pode ser tanto uma maneira divertida de falar quanto literal.


O professor de português Jean Fonseca, da escola de idiomas Caminhos, nota que há casos de diminutivos que se transformaram em outras palavras.

Camisa é a palavra para a peça de roupa em português, então, camisinha naturalmente levaria você a acreditar que é uma camisa menor. Errado. No Brasil, camisinha é, na verdade, o nome popular do preservativo para o sexo. "[O nome camisinha] foi usado como uma estratégia para popularizar o preservativo entre as pessoas", fala Fonseca.
"O nome original de 'preservativo' foi apelidado de 'camisa de Vênus' por causa da deusa romana do amor. E aí se tornou 'camisinha'.

Poder de mudar as coisas

Mas os diminutivos no Brasil também têm seu lado subversivo. Tal é o seu poder que eles podem fazer algo ruim soar como algo bom, algo rude soar como algo agradável e algo chato soar como algo divertido.
Em nenhum lugar eu notei brasileiros tirarem mais proveito disso do que com apelidos.
Descobri isso quando visitei a pequena cidade costeira de Rio das Ostras, a algumas horas de carro do Rio. É um lugar onde gringos loiros como eu não são tão comuns, me transformando um pouco em uma novidade.
Enquanto conversava com uma moradora local sob as árvores frondosas de um quiosque à beira-mar devorando pastéis de carne deliciosamente crocantes, ela disse que sempre quis conhecer seu próprio Gasparzinho. "Um o quê?", perguntei, incapaz de decifrar prontamente esse diminutivo.
Ela pegou o celular, foi até as imagens do Google e tirou uma foto de Gasparznho, o fantasma do desenho infantil. Eu comecei a rir.
Ser chamado de branco fantasmagórico pode não ser o maior elogio para um australiano, mas era mais fácil aceitar isso quando falado dessa maneira.
Diminutivos também podem ser pejorativos, dependendo do nível de maldade na língua.

Como o linguista Bagno me disse: "Também pode ser uma maneira de menosprezar uma pessoa", observando que os alunos se referem a um professor de quem não gostam como "professorzinho".


Os brasileiros também usam diminutivos para se safar, como uma maneira indireta de dizer algo não totalmente lisonjeiro.

O exemplo mais famoso disso é o bonitinho/a.
No começo, imaginei que isso era um elogio e, dependendo da situação, pode mesmo ser. Mas no léxico brasileiro também é transformado para se referir a alguém que talvez não seja o mais bonito da sala, mas que tenha seu próprio charme.
Pode ser o jeito que uma mulher diz "ele é um cara legal, mas eu não estou interessada", ou "bonitinho, mas mais como irmão".

Um dos escritores contemporâneos mais famosos do Brasil, Luís Fernando Veríssimo, resumiu toda essa situação confusa em seu ensaio "Diminutivos", quando escreveu sobre a "obsessão de seu país de reduzir tudo à menor dimensão, seja café, cinema ou vida".

"O diminutivo é uma maneira afetuosa e cautelosa de usar a linguagem. Carinhoso porque costumamos usá-lo para designar o que é agradável, aquelas coisas tão afáveis que se deixam diminuir sem perder o sentido. E cauteloso porque também o usamos para desarmar certas palavras que, em sua forma original, são muito ameaçadoras", escreveu.

O que eu aprendi durante o meu tempo no Brasil é que você não pode levar esses diminutivos ao pé da letra, literalmente, mas deve usá-los à vontade.

Quando faz isso, está realmente no caminho certo para falar como um brasileiro.

E se você estiver no Brasil procurando praticar esse tipo de conversinha fofa, mas complicada, lembre-se do primeiro passo: peça a eles para fazerem isso com uma cervejinha. Praticamente ninguém no Brasil dirá não a isso.
Lost in Translation é uma série da BBC Travel que explora encontros com idiomas e como eles são refletidos em um lugar, em pessoas e na cultura.

Diminutivos - Luís Fernando Veríssimo




Sempre pensei que ninguém batia o brasileiro no uso do diminutivo, essa nossa mania de reduzir tudo à mínima dimensão, seja um cafezinho, um cineminha ou uma vidinha. Só o que varia é a inflexão da voz. Se alguém diz, por exemplo, "Ô vidinha", você sabe que ele está se referindo a uma vida com todas as mordomias. Nem é uma vida, é um comercial de cigarro com longa metragem. Um vidão. Mas se disser "Ah vidinha..." o coitado está se queixando dela, e com toda a razão. Há anos que o seu único divertimento é tirar sapatos e fazer xixi. Mas nos dois casos o diminutivo é usado com o mesmo carinho.
 O francês tem o seu "tout petit peu", que não é um diminutivo, é um exagero. Um "pouco todo pequeno" é muita explicação para tão pouco. Os mexicanos usam o "poco", o "poquito" e - menos ainda que o "poquito" - o "poquetím". Mas ninguém bate o brasileiro.
 Era o que eu pensava até o dia, na Itália, em que ouvi alguém dizer que alguma coisa duraria um "mezzoretto". Não sei se a grafia é essa mesma, mas um povo que consegue, numa palavra, reduzir uma meia hora de tamanho - e você não tem nenhuma dúvida de que um "mezzoretto" dura os mesmos trinta minutos de uma meia hora convencional, mas passa muito mais depressa - é invencível em matéria de diminutivo.
 O diminutivo é uma maneira ao mesmo tempo afetuosa e precavida de usar a linguagem. Afetuosa porque geralmente o usamos para designar o que é agradável, aquelas coisas tão afáveis que se deixam diminuir sem perder o sentido. E precavida porque também o usamos para desarmar certas palavras que, na sua forma original, são ameaçadoras demais.
 "Operação", por exemplo. É uma palavra assustadora. Pior do que "intervenção cirúrgica", porque promete uma intervenção muito mais radical nos intestinos. Uma operação certamente durará horas e os resultados são incertos. Suas chances de sobreviver a uma operação... sei não. Melhor se preparar para o pior.
 Já uma operaçãozinha é uma mera formalidade. Anestesia local e duas aspirinas depois. Uma coisa tão banal que quase dispensa a presença do paciente.
 - Alô, doutor? Olha, aquele meu quisto no braço direito que nós íamos tirar hoje? A operaçãozinha?
 - Sim.
 - Não vou poder ir, mas o Asdrúbal vai no meu lugar.
 - O Asdrúbal?
 - Meu assistente direto aqui na firma. Homem de confiança.
 - Mas ele vai fazer a operaçãozinha por você?
 - Ele é o meu braço direito, doutor.
 Se alguém disser que precisa ter uma conversa com você, cuidado. É coisa da maior importância. Os próprios destinos do Pacto do Atlântico podem estar em jogo. Uma conversa é sempre com hora marcada.
 Já uma conversinha raramente passa do nível da mais cândida inconsequencia. E geralmente é fofoca. A hora para uma conversinha é sempre qualquer hora dessas.
 Num jogo você arrisca tudo, até a hora. Num joguinho aceita-se até o cheque frio.
 Entre ter um caso e ter um casinho a diferença, às vezes, é a tragédia passional.
 No Brasil, usa-se o diminutivo principalmente em relação à comida. Nada nos desperta sentimentos tão carinhosos quanto uma boa comidinha.
 - Mais um feijãozinho?
 O feijãozinho passou dois dias borbulhando num daqueles caldeirões de antropófagos com capacidade para três missionários. Leva porcos inteiros, todos os miúdos e temperos conhecidos e, parece, um missionário. Mas a dona de casa o trata como um mingau de todos os dias.
 - Mais um feijãozinho?
 - Um pouquinho.
 - E uma farofinha?
 - Ao lado do arrozinho?
 - Isso.
 - E quem sabe mais uma cervejinha?
 - Obrigadinho.
 O diminutivo é também uma forma de disfarçar o nosso entusiasmo pelas grandes porções. E tem um efeito psicológico inegável. Você pode passar horas tomando "cervejinha" em cima de "cervejinha" sem nenhum dos efeitos que sofreria depois de apenas duas cervejas.
 - E agora, um docinho.
 E surge um tacho de ambrosia que é um porta-aviões.

O PATIFE tá enrolando de novo

Quando fui acertar a conta no bar, pendurada nos últimos dias, o bolicheiro não encontrou, no caderno, o meu nome. Ao repassar a longa l...