segunda-feira, 15 de abril de 2019

Cada um tem os chatos que merece


Quando bebo com o Zé Franco Atirador, meço minhas palavras como quem pisa em ovos. Ele naufragou nas visões de mundo dos filósofos existencialistas. Se não está satisfeito com a vida que leva, óbvio que as coisas e pessoas que o cercam são fodidas. Não vê como nobre o seu dia, ao acordar as cinco horas da manhã e permanecer ativo até as nove da noite. Adormece e não sonha. Ronrona como uma pedra, devido aos tarja preta. Seu dia se resume em estar acordado e fazer tudo certinho, do trabalho às refeições e ao lazer.

Devidamente acomodados numa mesa na calçada diante do bar, à queima roupa, Ele pergunta o que tenho feito, e quais são meus planos para esse e para os anos que virão. Seja qual for minha resposta, vejo-o embriagar-se, mesmo que tenha sugado apenas uma caneca e meia de cerveja. Ele me joga um sentimento de culpa, eu me deixo afetar, como um adolescente desnorteado.
Minha conversa o aborrece.
 Sei, concordo, concateno meias-verdades, digo coisas espalhafatosas, tais como me inscrever num concurso de contos, ou de poesias, e que um dia ainda vou ser reconhecido, não importa que seja depois de morto. Não tenho idade nem estômago para levar uma vida normal, como a de um funcionário público ou vendedor ou professor ou pedreiro ou encanador.
 É o suficiente pra despencar um aguaceiro. Soca a mesa e o ar, triplica o volume de sua fúria.
- Tu tá de sacanagem!
Pra ele, meus desejos não passam de  delírios, e a lógica de meu discurso é não ter qualquer lógica. Ordena-me a leitura (é sério) da analítica de Aristóteles.
O Geni, atrás do balcão do bar, observa-nos apreensivo. Não quero confusão. O Geni é fortão, e tem a seus pés um enorme cão de guarda, um taco de beisebol.
Simplesmente murmuro:
- Você tem toda razão.
O estrago está feito. Pede a conta, não deixa que Eu contribua com algum dindim,  e volta para casa.
Meu efeito psicológico é retardado. Permaneço no bar e encho a cara. Mas, mesmo de porre, tudo reacende na minha memória, e não tem outro jeito senão ouvir blues e sugar litros de cerveja e ligar pra Janete, a cafetina veterana que me dá colo nas horas da mais completa escuridão.
Juro, nos próximos dias, vou dar um tempo a esses sujeitos que considero uns chatos. Porra, não posso delirar e muito menos sonhar. O que me resta?
Ele é mais um que se junta ao bando de que desejo me afastar. Eles têm opinião pra tudo. Eles sabem como é e como deveria ser a vida dos outros.
Desconfio que nem você, nem meus amigos, acreditam na pureza de meus princípios. Tudo bem. Nem Eu acredito.
Poderias dizer que minha vida se compara à de uma formiga, ou barata, ou de um sabiá, que a natureza permite cantar apenas na primavera. Ou, que seja, de um boi saudável. Uma vida que se resume em aguardar por horas pra conferir os números da loteria ou do jogo do bicho, com a adrenalina que parece à do bêbado ou do viciado.
Que se resume em dizer, com uma indisfarçável má-fé,  que faço meditação, que faço caminhadas diárias, que tenho uma prateleira cheinha de alimentos naturais e chás e incensos.
Que se resume em esperar a namorada, que trabalha três turnos, que se dane, eu quero é que ela venha ofegante, me chupe e me cavalgue, eu quero é pra hoje, foi pra isso que abri mão de estar sozinho no mundo, e me esforcei pra me adaptar a essa palhaçada chamada "convenções sociais".
Sim, sei, vocês diriam:
- Cadelão desvia o foco, olha pra vida e os defeitos dos outros pra disfarçar o cotidiano medíocre que o sufoca. Sua válvula de escape, os momentos de glória, se dão quando corre pro bar pra desfrutar a companhia sagrada desses chatos.
Nessa altura dos episódios, sou obrigado a concordar com vossas sábias palavras:
- Cadelão, você está no mesmo nível deles, ou seja, surfa na mesma merda.
Amigos, ontem o Beiço acendeu uma lanterna nessa escuridão. Ele disse:
- Como você me apresentou o Zé Franco Atirador, vou te apresentar o Zé Pinto Sonhador. Imagine um cara que lê as notícias e fofocas de crimes sexuais, de pedofilia, de estupros, com a mesma avidez de quem desfruta seu chocolate predileto. Um sujeito que sacia a fome sexual com tragédias de crianças e adolescentes estupradas, retalhadas e mortas. E que lê e se delicia com todos os comentários raivosos e indignados nas redes sociais, afirmando a necessidade da pena de morte, ou invocando a providência divina e seu castigo eterno implacável. E que ao mesmo tempo tem um tesão formidável e acelera as punhetas, viajando por cenários paradisíacos e ninfas incríveis de tirar o fôlego. Imagina, Cadelão, como seria o perfil da criatura no Tinder. No padrão, sua foto de perfil seria sem camisa exibindo um corpo sarado. E ele vai usar alguma estratégia para insinuar que tem um pau acima da média.
Beiço estava filosófico. Eu não considerei isso chato. Milagre. Ele prosseguiu:
- Imagine você no bar escutando por horas a conversa desses malucos. Só o suicídio nos liberta dessa gente. Vai por mim, Cadelão, é hora de pensar em como os outros te enxergam. De dentro é normal vermos em nós mesmos as mesmas coisas. Mas de fora, os outros percebem... Além de uma alma corrompida e fútil, eles sacam o envelhecimento, cada vez mais galopante, de nossa carcaça. Consola-te. Você sempre tem a opção de estar sozinho. Bukowski, por exemplo, não suportava as pessoas quando elas estavam por perto. Preferia mantê-las bem longe. Vai por ele. Vai por ti.

(B. B. Palermo)


O PATIFE tá enrolando de novo

Quando fui acertar a conta no bar, pendurada nos últimos dias, o bolicheiro não encontrou, no caderno, o meu nome. Ao repassar a longa l...