Quando estou mais pra lá do que pra cá, me passa na cabeça de que sou um
cara sensitivo. Aí, dispenso a bebida por alguns dias, faço meditação e bebo
litros e litros de água.
Duas semanas atrás aconteceu algo que me deixou mais perplexo do que
assustado. Daí desconfiar dessa estranha sensitividade.
Uma amiga da Ninfa dos lindos olhos suicidou-se. O fato me chocou, não
por conhecê-la pessoalmente, mas por compartilhar as dores e o luto do meu
amor.
A garota trabalhava num escritório que fica na avenida que atravessa a
cidade de norte a sul. Soube da tragédia através de uma postagem no Facebook,
compartilhada pela Ninfa. Final de tarde, a notícia baqueou meu peito, tanto
que providenciei papel e caneta e corri até o bar mais próximo. As mãos tremiam
quando escrevia isto:
“Não sei quem está numa melhor. Eu aqui, me
entorpecendo de cerveja, ou ela dormindo a algumas horas no caixão, pra nunca
mais acordar. Eu, com medos e incertezas, ela despedindo-se do contato com as
manhãs, noites de insônia e lua cheia./ Os comerciais de TV mostram jovens brancos, alegres, sarados e
saudáveis. A felicidade, na tela, se expande com sorriso fácil. / Pouco sei de suas vidas, se visitam farmácias, se
perdem o sono de madrugada. Não levo a sério o mundo que me vendem, até porque
as coisas que me pedem pra comprar, como entorpecentes, não garantem mais do
que meia hora de euforia. / A
garota morreu. Tantas vezes passei em frente ao seu trabalho com a
esperança de ser notado por ela, jogando na sorte de que seu olhar me
encontrasse.
nunca saquei (como poderia adivinhar?) que seu
sorriso e atenção não resumem a essência de uma pessoa, nem tudo que se agita
no seu mundo interior. / Agora
sei que existe muito mais vida nos silêncios de uma princesa. / Sei que abrir mão da vida talvez não seja um ato de
coragem. Mas estou apegado às verdades do senso comum. É mais fácil rastejar na
trilha segura do cotidiano do que pensar nos fios tênues que nos sustentam
sobre o abismo. / E
acreditamos que a angústia, a tristeza e os gestos desesperados só acontecem
com os outros. / Muitos me
convidam para viajar, conhecer outros povos, estudar outras línguas. Estou
convencido de que não devo estacionar neste lugar. / Mas hoje, ao saber de sua partida, acendeu esta luz: o
mais importante, mais do que tudo, é buscar conhecer meu mundo interior”.
Escutem só o que me deixou perplexo. Semana
passada, depois que o primeiro bar fechou, em torno de uma da madrugada, eu e
alguns amigos fomos beber e jogar sinuca num desses points que funcionam a
noite toda. Acontece que eu tinha bebido muito e, lá pelas quatro da manhã,
senti uma necessidade de voltar para casa, como se acendesse um alerta. Fiz de
conta que ia ao banheiro e me aventurei sozinho pela avenida deserta no rumo de
casa.
A garota enforcou-se numa construção abandonada ao
lado do prédio onde trabalhava. Ao passar por ali ouvi um estouro, como se
fosse uma bomba. Apavorado, perguntei a mim mesmo:
– Caralho, o que foi isso? De onde saiu esse
estrondo?
Apressei o passo e me dei conta de que a embriaguez
havia passado. Perguntava-me:
– Será que existem mesmo espíritos?
Contei o ocorrido à Ninfa dos lindos olhos, e ela
disse:
– Sim! Você é sensitivo!
Será que me impressiono porque não sou mais garoto?
Desde que fiz algumas leituras, principalmente de Nietzsche e Sartre, me
considerava um niilista. Sim, se o cara morreu, tudo acabou. Agora que me
aproximo do limbo, que já estou me acostumando com a ideia de ser um jovem
velho, bêbado e escroto, vejo meu coração derreter como manteiga. Ou isso tem
relação com a minha facilidade em idealizar o amor e captar as emoções, que
sempre andam “à flor da pele”?
Hum... veio-me a lembrança de minha infância e
adolescência e os mandamentos da igreja católica. Caramba, gurizada, por que
essa tábua de valores – como se fosse a cruz que Cristo carregou – me acompanha
até hoje? Ou quem sabe pago, com altos juros, os “deslizes” que cometi com
namoradas quando tinha uns vinte anos?
Não... Não chegam a ser fantasmas de arrepiar os pelos.
Creio que não valeria à pena contar. Tudo bem, vou narrar-lhes assim bem por
alto. Perto da casa onde nasci e cresci, um vilarejo de famílias trabalhadoras,
dóceis e obedientes, há uma gruta que faz companhia a uma linda cachoeira. A
paróquia da cidade, muito católica, nomeou pra essa gruta uma Santa Padroeira –
a Santa Bárbara. Todas as vezes que minhas namoradas vinham visitar meus
familiares eu as levava para conhecerem a gruta, um dos poucos lugares
turísticos da região. Além do encantamento com a beleza do lugar, e após contar
um pouco a história daquela gruta, inclusive algumas lendas quando a região era
habitada por indígenas, eu me esforçava para que rolasse aquele clima... Vocês
sabem...
Está bem, vou abrir o jogo: transávamos diante de
uma legião de estátuas, santas e santos, de velas acesas por pagadores de
promessas, e sob o olhar sereno e complacente da santa padroeira. Quando eu
levava as namoradas para conhecerem a gruta, realizava tudo quanto pedi na
adolescência, após descobrir as maravilhas que o sexo proporciona.
Foram dezenas de novenas e pedidos realizados
diante da santa.
Os adultos, submissos e crentes, pediam para que
chovesse depois de seca, ou pediam uma farta colheita, ou boas vendas no
comércio. Meus pedidos eram menos edificantes, orbitavam em torno de
genitálias, bundas e peitos. Mas me digam, qual o pecado de se viver a
juventude “como se não houvesse amanhã”, e aproveitar o dia (carpe diem)
como se fossemos (e éramos) uns punheteiros meio “poetas mortos”?
(B. B. Palermo)