quinta-feira, 29 de janeiro de 2009

IMIGRANTE E PASSAGEIRO - canto a Ijuí






A janela do ônibus
é o espelho, olho e o braço
para as ruas, casas e passeios
estenderem a mão.

A janela mostra
tantas coisas
para quem deseja ver!

Em Ijuí há ruazinhas
de muitos desconhecidas
e casas antigas
que foram abandonadas
pelos fantasmas...
Eles dizem que há mistérios
que assoviam no amanhecer!



Como é possível
ser passageiro
que tudo olha
e nada vê?

Vizinhos se ignoram
e constroem
torres de babel.
Nas horas de folga
não relaxam e derramam
seu olhar cítrico
a quem ousa comer
a fruta no pé!



Como é possível
ser passageiro
que se perde
no labirinto
do presente?

Da janela do ônibus,
no início da manhã,
meu Irmão vem cochichar:
- Quem, em Ijuí,
acorda mais cedo?
Para alguns é o leiteiro
para outros o jornaleiro...
Mas ele sabe que não é nenhum dos dois...

São os galos e os passarinhos!

Que não confiam na mecânica
dos relógios de parede
e prestam, com sua garganta,
sonoros serviços
à comunidade!

Seus primeiros cantos assustam.
Mas, aos poucos,
seguimos o caminho.

Nessas viagens,
a trabalho e a passeio,
freamos as batidas
do coração!



A cidade nos pertence
e invade os sentidos
sem marcar hora e lugar!
A cidade salpica nossa vida
como chuva torrencial!

Os solavancos das ruas
são as pedras no caminho
que desviam nossos olhos
de tantos outros espinhos.

Na parada ou no ônibus
há todo tipo de gente,
cores, idades, gestos diferentes...

Burburinhos da catraca...
Quem sabe o que a vida
tira ou empresta?
Deficientes e gestantes,
velhos e crianças,
e suas manobras na roleta!

Ao lado da janela do ônibus,
o guri, desconfiado,
ousa perguntar:
- O que faço, nesta hora, neste lugar?
E no mesmo instante, responde:
- O que importa é que vejo!

O tio cochila na sacada
alheio aos burburinhos
a mãe retorna ao lar
com a criança dormindo!

Trocas, despedidas nas esquinas
beijos, abraços, acenos.
Cada qual se liberta ou se ajusta
à rotina conquistada...


A criança da vila distante
concentrada em seu brinquedo
lambuza-se na terra, alheia aos perigos...

Às vezes nos distraímos e esquecemos
que mais cidades existem
e têm seus riscos!

Há os itinerários do ônibus
Centro – Glória – Boa vista
e nossa sina de estrangeiros.




Nada pode mudar
nossa geografia
nada vai apagar nosso rastro...
Obras, exemplos, sorrisos,
abraços, gestos, acenos...

A maquiagem da cidade
é construção mal acabada:
o reboco das paredes
e o piso das calçadas
parecem pedintes
que estendem o chapéu!

Minha cidade tem dinossauros
que dizem ser quebra-molas
e tem bichos do mato
que dizem ser motoristas!
E muitos correm, tropeçam,
se iludem a trapacear a vida!

Tem vândalos e boêmios
e namorados nas praças
tem pedestres distraídos
nas faixas de segurança!

E na segunda parte da vida
colhemos a alma desgastada
e o extrato de dilemas
são os atos e palavras!
Nos tornamos poetas
para prestar contas
a Deus...
Confusos esquecemos
que o sentido pra vida
nos aguarda nas esquinas.
Perdemos de vista
a saída do curral!

Tem namorados nas praças
vândalos e boêmios
tem faixas de segurança
e pedestres distraídos!...

Hoje o mapa da cidade
não reservou lugar
para a paisagem
de tempos atrás!


A cidade inchou e cercou
lavouras e potreiros...
Mas não estancou
de nossa alma
O sangue de colonos!

E assim marcamos encontros
nos armazéns e casas coloniais
e nos empanturramos de queijo,
polenta, chope e vinho...
trapaceamos as contas
de nossos ancestrais!

Alguns sítios e terrenos resistem
com seus pomares e milharais
e a cidade encurrala
cavalos, vacas e bois!


As crianças florescem
como a espiga bonecando,
na escola, nos pátios, na calçada,
sedentas do sol e da chuva de verão!

E o guri se ilumina
com a diversidade de
loiras morenas meninas
imagens gestos fantasias
toques olhares quermesses
colégios festas de São João!

Essa é a minha cidade
que sempre vem sussurrar:
o canto precisa continuar
porque delira incompleto
nos vacilos de nosso olhar!

sexta-feira, 23 de janeiro de 2009

SE FOSSE VOCÊ





Que camisa escolheria para combinar com as bermudas, meias e chinelos?
Que cores usar, para ser notado, no centro, no horário comercial?

Não vale o apelo às massas, Big Brother, novelas, só você, vendedora favorita, com sua intuição fervorosa, poderá me ajudar.

Sei, tenho todo o tempo do mundo para me debater no espaço vago do provador, enquanto, do alto, o ventilador rosna pra mim, igual um cão policial.

Você não sabe, mas posso estar traumatizado com o novo milênio e suas imagens violentas, sexo, fome, riqueza, luxuria.

Descobri, para meu desespero, que o ventilador sopra, de cima para baixo, projéteis quentes mal-encarados.

Só você pode dizer que cores combinam com uma estação de excessos, sul com sol, sudeste com chuvas, norte destemperado...

Você sabe, o clima anda indeciso e eu me deixo contagiar.

Ponhas-te no meu lugar e verás como falta sentido ao calendário. Programamos viagens de mentirinha nos feriados, para curtir as promessas desfeitas, e os pecados morrem de vergonha diante de nossas culpas.

Se fosse você, com que cara responderia ao telefonema do cobrador?

Como seria teu aceno aos vizinhos, depois dos arrotos ensandecidos da noite que passou?

Você também programa viagens exóticas nas férias, já sabendo que vai bolar “simples e boas” desculpas para justificar por que ficou por aqui?

Ah, se fosse você...

No meu lugar, você passaria a tarde nas lojas, quebraria o tédio das vendedoras, pra despertar seu ódio com a indecisão de tuas escolhas. Deixa eu ver aquele vestido, Puxa, mas que lindo esse detalhe! Nenhuma amiga minha tem igual!

Ficaria horas no provador e diria, para desespero da pobre que te atende, Puxa, hoje sim ganhei a tarde!

No meu lugar, depois de olhar mil coisas, você descartaria boa parte das picuinhas, voltaria para casa com meia dúzia de sacolas, que vão se juntar a centenas de outras, socadas nas prateleiras.

À noite, se engajaria no mutirão de salvação do planeta, enviando mensagens que entopem caixas de e-mails, preocupada que estás com a consciência ambiental...

Se fosse você, simplesmente diria: Agora, sim, é pra valer!

quinta-feira, 22 de janeiro de 2009

AMIGAS DOS ESPELHOS




Felizes são as roupas
dos guarda-roupas
que são amigas
das portas
que têm
espelho
do lado
de dentro.

A camisa
vaidosa
toda
manhã
se olha
se enfeita
suspira
de amor
e murmura,
assim:
“Eu me amo
eu me adoro
eu não consigo
viver sem mim!”

E o espelho
do armário
que mora
do lado
de fora
da porta
reclama,
solitário,
delira
e sussurra,
assim:
“Eu me escabelo
e me esfarelo
em mil cacos
porque
ninguém
quando
passa
me chama
me abraça
só me deixa assim
numa espera
sem fim!”

quarta-feira, 21 de janeiro de 2009

OFICINAS LITERÁRIAS





Durante quatro sextas-feiras, do mês de outubro, tivemos oficinas literárias no SESC/Ijuí com o escritor Porto Alegrense Luis Dill. O jovem escritor desponta no cenário nacional com vários livros publicados, principalmente para o público adolescente.

No ano de 2008 venceu o Açorianos de Literatura na categoria CONTOS.

Os que se esforçam no ardoroso desafio da escrita sabem a importância que essas oficinas têm. Uma delas, por exemplo, é superar o medo da crítica do palestrante, e de outros participantes, com relação ao seu texto.

Nesses encontros reforça-se a convicção de que escrever é um ato de corrigir, corrigir e recomeçar, sem a crença de que seu texto está definitivamente pronto. A escrita se resume em tentativas (ensaios) que, algumas vezes, nos satisfazem, outras vezes não. Embora o olhar do leitor é o que mais importa.

Dentre muitas, algumas dicas para os que se aventuram na escrita:

- Levar em conta a participação do leitor. Não dar-lhe o texto mastigado.
- ser um grande crítico de seu próprio trabalho.
- quanto ao binômio inspiração/transpiração, diz Tchecov: “A escrita é que gera inspiração”. Ou como afirma o próprio Dill: “É preciso pensar muito sobre o que se está escrevendo”.
- Outro item fundamental: na narrativa, evitar o uso de clichês e lugares comuns.

domingo, 18 de janeiro de 2009

MARIA


filme - Pequena Miss Sunschine


As esquinas são democráticas. Observam os encontros, com sua discrição habitual. Aqueles motoristas apressados nada vêem, para eles é pequeno demais o intervalo de um sinal verde e outro. Ou se distraem, pressionados pelo horário, ou aguardam, prestam atenção na música que toca, e espiam os visinhos.

Olhares que se trocam. Lance de sorte, acaso, uma “força” maior. Por toda a parte o normal é a morte, a guerra, os nascimentos, o Big-bang.

Burburinhos no palco, canhões de luzes coloridas se espalham. Maria desperta de seu vaivém. Nenhuma sombra de amor nos seus dedos, cobrança demais no trabalho, status que a sugam unhas e dentes.

Clube, piscina, academia, cabeleireiro. Sinal vermelho, e Maria põe-se a pensar, e seu olhar me percebe ao seu lado. Os encontros não podem se aquietar nos burburinhos das esquinas. Uma caneta no porta-luvas. Até que enfim ela se presta para salvar o amor!

Te conheço de algum lugar! Olhos brilham e se movimentam como canhões de luz. As cortinas do vidro do carro se abaixam. Vislumbra-se a paisagem do “por que não?”.

Maria vacila, pondera, põe-se a trabalhar sua razão. Anotou meu telefone na palma da mão. Aquele lugar onde a cartomante, certo dia, percorreu a linha de sua vida e previu vida longa cheia de saúde paz e amor.

Minutos depois se reconforta no seu canto, na cadeira macia e no ar condicionado do escritório. Maria se inquieta e pondera: Metido, quis de imediato meu telefone! Não passa de um Don Juan!

Sinais verdes, amarelos e vermelhos tantas vezes se revezam, e as luzes dos canhões dos olhos do pretendente ficam para trás.

Cotidiano seguro, trabalho, amigos, status, assim a vida segue de bom tamanho.

sexta-feira, 16 de janeiro de 2009

FOTOGRAFIA





Olho tua foto.
Nossos olhares
se reencontram
no tempo.

Qualquer novo gesto
e as águas dos oceanos
venceriam fortalezas
só para vê-la.

Olho tua foto
e
na
morada
mente.

Uma peça faz falta
no quebra-cabeças
de meus sentimentos.

terça-feira, 13 de janeiro de 2009

DÚVIDA




Não sei se foi a Lara
ou se foi a Laura
que saçaricou os lábios
pertinho do banco
da praça...

Tento me lembrar
e minha testa
transpira
só de pensar
que ela passou
e eu fiquei a ver
pombos,
bandos
de pombos
grisalhos
zeladores
da praça...


Sol de quarenta graus
gritaria e adrenalina
fiquei com alergia
dos pombos
e do jacarandá
em flor...

Perdi a bússola
sai da rota
na areia
no escorregador!

Agora estou em casa
e a testa transpira
e não fico quieto
deito e levanto no sofá
tento porque tento
me lembrar
se ela se chama Lara
ou Laura
que me deu um Oi
derretido
pertinho
do banco
da praça!

segunda-feira, 12 de janeiro de 2009

PAULO HENRIQUES BRITTO - Macau




Carioca, é professor e tradutor, e ganhou com o livro MACAU, em 2004, o prêmio Portugal Telecom de Literatura. “Ancorado no cais raso da subjetividade, o poeta procura reter a fragilidade do mundo com a ponta dos dedos”.

Diz a CONTRACAPA DO LIVRO:
A subjetividade é um porto de onde não é fácil se desprender, mesmo para aqueles que se lançam à descoberta de novas paragens – tais como Macau, lugar ao mesmo tempo estrangeiro e familiar. O trabalho poético de Paulo Henriques Brito, indissociável do ritmo diário, obedece menos à inspiração, mais à oficina e ao suor. Essa necessidade orgânica do ato criativo denota um impulso de, por meio da subjetividade, arranhar a opacidade das coisas, atendendo ao incômodo – mas inescapável – impulso de endereçar ao mundo uma carta íntima.

TRÊS EPIFANIAS TRIVIAIS (II)

As coisas que te cercam, até onde
alcança a tua vista, tão passivas
em sua opacidade, que te impedem
de enxergar o (inexistente) horizonte,
que justamente por não serem vivas
se prestam para tudo, e nunca pedem

nem mesmo uma migalha de atenção,
essas coisas que você usa e esquece
assim que larga na primeira mesa –
pois bem: elas vão ficar. Você, não.
Tudo que pensa passa. Permanece
a alvenaria do mundo, o que pesa.

O mais é enchimento, e se consome.
As tais Formas eternas, Idéias,
e a mente que as inventa, acabam em pó,
e delas ficam, quando muito, os nomes.
Muita louça ainda resta de Pompéia,
mas lábios que as tocaram, nem um só.

As testemunhas cegas da existência,
sempre a te olhar sem que você se importe,
vão assistir sem compaixão nem ânsia,
com a mais absoluta indiferença,
quando chegar a hora, a tua morte.
(Não que isso tenha a mínima importância.)

domingo, 11 de janeiro de 2009

ELA (III)





Cabelos negros e lisos e boca carnuda. O guarda-pó não me distrai de sua beleza. Meus sapatos, instintivamente, ficam apertados.

Pés crescem livres pelo campo. No dia da Primeira Comunhão, era doloroso calçar os sapatos. A missa, até a altura do sermão, era a experiência da eternidade sem prazer. Dedão latejando, unha encravada, bolhas nos pés.

Páscoa. Ressurreição. Vendaval de lembranças no caminho da infância e adolescência. Boca carnuda e cabelos negros e lisos. Seios despontando como rosas vermelhas em meio às pedras do quintal.

Distraio-me olhando para o teto da Igreja. Vivo todos os passos do calvário de Jesus. A traição do Judas, a companhia consoladora de Nossa Senhora e Maria Madalena.

Ela tem cabelos negros e lisos e boca carnuda. Nas laterais da Igreja, vitrais fitam-me e despejam personagens bíblicos pra dentro de minha alma. Sussurram bom comportamento. Serei indigno se não suportar a fila do confessionário. Padre, me apaixonei. Fiz coisas feias. Briguei com meus irmãos e colegas de aula. Desobedeci meus pais... Reze dez ave-marias e cinco Pai nossos. Vá em paz e que Deus te acompanhe.

Anestesiado, diante do altar, não sinto meus sapatos apertados. O dedão parou de latejar. Minhas orações tentam abafar cabelos negros e lisos e boca carnuda. Segredos que não confessei minutos antes. Eis o meu tormento.

De tanto repetir as mesmas preces, ajoelhar e entoar os velhos cânticos, fechei as comportas para transbordar o lago da resignação. A paixão enredou-se no hábito, ainda não fez a curva do caminho.

Finalmente, ela libera seu olhar. Os pés latejam. Cabelos negros e lisos e boca carnuda são bolhas nos pés. Cão a morder o próprio rabo. A paixão, que se perdeu por aí, prisioneira do hábito, se digladia.

Não há teto e vitrais. O calvário de Jesus se esqueceu nas curvas do passado. No mercadinho, minha paixão quer me salvar. Mas os pés latejam. Preciso encontrar o paraíso. Superar a primeira confissão.

sexta-feira, 9 de janeiro de 2009

ELA (II)


Arte - Romero Britto


Dessa vez vou jogar no ataque. Vou aprender sobre o amor do mesmo jeito que os técnicos de futebol aprimoram suas táticas.

Não posso me aproximar do mercadinho sem antes me aprofundar nos mistérios e segredos da conquista amorosa.

Como o “professor” que orienta seus jogadores, na área técnica diante da casamata, darei as coordenadas que farão meu amor galgar ao paraíso. Defensores, meias, atacantes, todos vão ser soldados a serviço de minha jornada.

Meus atacantes flutuarão atrás da zaga. Os alas serão de passagem, e os meias vão atuar por dentro e, se necessário for, farei duas linhas de quatro. Ou cinco linhas de dois.

O sucesso vai depender de planejamento minucioso. Início, meio e fim. Passo a passo. Na dúvida, o corpo vai falar pela boca. Como o “professor”, ao instruir os meias e atacantes, afastarei o indicador e o dedo médio em vê para eles e, em volta desses dedos, traçarei círculos com a mão direita.

Antes de me atracar no campo de batalha, faltam os detalhes do visual. Ligo para uma Ex., hoje grande amiga. Vai ser meu auxiliar técnico. Ela diz: primeiro, você precisa disfarçar tuas olheiras! Use um creme sombreador. Você tem, sim. Um dia emprestei pra você, que não me devolveu. Você tinha um hematoma enorme no lábio inferior. Não querias ir para o trabalho com aquele chupão! Você deve ter guardado na gaveta do armário do banheiro...

As olheiras me expiam e fazem caretas de minha cara. Não seja por isso. Suo, sombreio embaixo dos olhos do jeito que posso. Vou à luta.

Sorvete de chocolate. Pra ganhar tempo, procuro nas gôndolas itens que esqueci de anotar no bilhetinho. Minhas anotações são, agora, intenções. Entrar pela porta da frente, marcar presença através de passos enérgicos.

Expressar o meu amor pelo movimento dos olhos. Porém, antes de avançar, fixo o olhar nos jornais. Capa, contracapa, manchetes. Me assusto com a notícia: o grande consumo de sorvete pode acarretar sua falta nos estabelecimentos da cidade.

Já estou pronto pra colocar meus planos em ação. Ergo os olhos, observo todos os ângulos e... Opa! Cadê minha musa?? Adoeceu?? Perdeu o emprego??

No mercadinho falta quase tudo. Sorvete de chocolate, não.

Vou aproveitar o abandono e treinar um pouco mais. Aprimorarei as táticas de futebol, com meu filho, no ply station.

quinta-feira, 8 de janeiro de 2009

ELA



Arte - Pablo Picasso


Não retornava ao mercadinho, perto de casa, fazia dias. Nem sei por quais motivos. Corro em busca de sorvete para amenizar os excessos da noite passada.

Ela ajeita os iogurtes, pano embebido no álcool. Avental branco, busca entrosamento no novo lar. Sua beleza discreta me desperta, e quase desmaio de susto.

A tarde promete chuva. Agora, armou-se temporal. Vou demorar um pouco mais, até abaixar a adrenalina. Prefiro chegar em casa encharcado.

Um cliente da casa, com seu visual esforçado, fala animadamente com o gerente. Diz da última de seu tio, de Uruguaiana. Fazia sua caminhada matinal, no calçadão da cidade e, vupt, caiu de borco no chão. Enfartou. Sessenta anos. Só bebia uma cerveja de vez em quando.

Estou na fila do caixa e, querendo chamar a atenção, entro na conversa. “O negócio é beber cerveja todos os dias, que aí se vive mais!”.

O tiro saiu pela culatra. Fiel à seriedade do posto, ela nem levanta os olhos para mim.

Mas isso não derruba minha esperança.
Voltarei amanhã.
Hoje foi sorvete de morango.
Vou fazer revezamento.
Amanhã vai ser sabor chocolate.

Desisti de ir à lotérica jogar na Mega-sena. Minha loteria é no mercadinho. Vou ser fiel às minhas loucuras. Vou mudar o itinerário.
Minhas férias estão de bom tamanho, perto de casa.

quarta-feira, 7 de janeiro de 2009

UM PREÇO A PAGAR



Arte - Paul Gauguin - 1888



Os porongos pendurados contrastavam com o telhado, chamuscado, da varanda. Meu avô mal disfarçava o mal-estar, enquanto aguardava as visitas.
Senhoras viúvas vinham em duplas, guiadas pelas sombrinhas no sol de verão. Quando chegavam, sombrinhas se fechavam, sorrisos floresciam. Vovô restava sério. Dizia para seu manto interior: Não sou oferecido!

Não era livre, nem quando sesteava. As cigarras compunham trilhas sonoras. Mas era desconfiado. Bastava ele reparar nos chalés, mantas, saias e bordados que, num gesto de desdém, vovô desmantelava a missão daquelas viúvas!

Hoje, as lembranças fazem parelha, no princípio urbano da tarde, com a serra do vizinho. As sangas que me banhavam agonizam em algum lugar. Aqui na cidade, nem as árvores pobres dos passeios aceitam dormir comigo sua sombra.

Há um preço a pagar, dizia vovó.

Pudera. Não decoramos o telefone de nossos amigos. De memória, há o risco de resvalarmos para o telefone da sala de viúvas solitárias.
Perdão, foi engano.

Um oceano nos separa, mas tornamos refém a pessoa do outro lado. O silêncio cortado pelo suspiro. Esperava ligação do filho amado. Na despedida, o desalmado apenas diz: Até breve. O silêncio faz ela tombar na cadeira, para logo depois recobrar o fôlego, lavar a louça e ajeitar a roupa no varal. A viúva implora: Quando vais ligar de novo? Do outro lado da linha, um Em breve!

Há um preço a pagar, dizia vovó.

O riso injustificado, o sol atrás das nuvens, temporal de promessas que dissipou e deu lugar à brisa gelada. Choveu em algum lugar.

Vovô ceva o mate. Papai observa a junta de bois, caem os bernes e carrapatos, sobre o preço da arroba. Ali perto há uma cascata, um poço fundo para aprender a nadar.

Um telefone silencioso numa sala silenciosa. Perdão, foi engano!

A viúva se oferece ao filho. Um oceano açoita o tempo do outro lado da linha. Ela é igual à sanga, que sangra em algum lugar.

Dizia vovó: Há um preço a pagar.
Saudade.

terça-feira, 6 de janeiro de 2009

FOGUETEIROS


Arte - Bavcar - fotógrafo





É preciso crer em nossa libertação de relâmpagos viciados, que alugaram o território dos neurônios.

Dizem que os flashes são indispensáveis para a auto-estima sobreviver. Assim, nos aventuramos, olhando para o céu. Assumimos o manche de nosso teco-teco, mesmo sem sair do chão.

Para meus jovens pais, os foguetórios eram especiais.
Acho que eles sabiam que, pior que carregar costumes na mochila, de um ano para outro, é o apego às nóias que virão.

Nos tempos de carência concreta, reservávamos nossos fogos para poucas festas. Santo padroeiro, casamentos, quando nosso time era campeão.
Agora, as carências são outras e complexas.

Diz a turma da auto-ajuda: vamos lavar a roupa suja com doses extras de entusiasmo. Repensar amores e aventuras, trocar os quadros da parede. O apego faz mal pra alma irrequieta.




Ser fogueteiro não é pra qualquer um.

Reinventemos o sentido da palavra “espetáculo”.

Vamos deslumbrar nossos olhos com a lua cheia, as estrelas e o pôr do sol.

Perguntemos, sem medo de nos chamuscarmos: cada foguete espocado pipoca no céu pranchaços de alegria, orgulho por tudo que realizamos, e saltos triplos na concretização da paz mundial, tolerância e solidariedade?

Fogueteiro. Assim ele era chamado. Não tinha fábrica, não foi pra frente de batalha. Sua missão era conduzir, com as mãos calejadas, relâmpagos estrondosos no céu.

Agora, fogueteiros são jovens, adultos, juvenis.

Todos estão perfilados no campo de batalha.

O estoque está pronto. Não pode restar vencido. Que venham momentos especiais em 2009!

domingo, 4 de janeiro de 2009

CANTO DE AMOR


Arte - De Chirico - Canto de amor.
Apareces altruísta
no limiar do despertar
de minhas sestas.

Assim é bem melhor!

Antes a via às costas
as pernas leves cruzadas
o silêncio salpicado
atrás do divã.

Uma vez por semana
um desejo contraditório
me queria me expulsava
do teu consultório!

Assim é bem melhor!

Foi-se o porre e dias risonhos
veio a sombra expiar
os quilos a mais
e teu passeio em meus sonhos.
És o sonho que tolero
sem medo do desespero
e ter que lembrar
o último pesadelo.

Assim é bem melhor!

Embora todo esse escárnio
sento e relaxo
pés erguidos e descalços
conto os dias e vacilo
sobre o tempo que falta
pra voltares.
É limiar do ano
e entrego os meus planos
a promessas e dietas
alegres e egoistas
que digam aos amigos
segunda quarta e domingo
minhas verdades veladas
exprimidas sufocadas
e muitos palavrões
que ainda vou pronunciar!

Assim é bem melhor!!

quinta-feira, 1 de janeiro de 2009

A ARTE DE CONSERTAR BOLAS - E OUTROS BRINQUEDOS



Nas gavetas de um velho armário havia linha, agulha, cola e remendos. As bolas, de gomos com diversos formatos, não eram abandonadas pelos cantos, quando furavam. Ao contrário, eram tratadas com muito mais carinho. Tinham sete vidas... Mesmo que perdessem a cor e não as enxergássemos direito, quando o jogo estava empatado e a noite se aproximava.

Ao furarem, eram consertadas. Uma, duas, três vezes... Perdiam a cor, tornavam-se achatadas, mas permaneciam importantes. Cortar o barbante, localizar o furo, era arte para alguns. Quase sempre para o jogador mais “perna de pau”. Daí ele se destacar em meio à turma – como se fosse o dono da bola, sempre titular, fossem quais fossem as circunstâncias.

O momento do treino ou do jogo começar, no campo improvisado em meio à pastagem dos animais, era anunciado pelo ruído do quique da bola (pronunciávamos “pique”). Bastava alguns chutões para o alto e deixar a bola saltitar na grama, que a turma logo ia juntando.

A divisão dos times, a escolha dos jogadores, exigia uma assembléia demorada. Ninguém admitia perder. Porém, havia o consenso de se ajustar as peças no jogo, misturando os “feridas” com os “Pelés”.

Celito. Este era o seu nome. Intrigava-me sua amizade com as bolas: levava pouco jeito, maltratava-as quando jogava, porém era seu guardião na hora de consertá-las.

Nosso destino, valentes craques de futebol, estava nas suas mãos.

Naquela época falava-se muito de vocação e talento para escolher determinada profissão. Mas as escolhas não eram precoces, nem havia intensa pressão, desde a infância, para se decidir o que fazer quando adulto. A profissão de jogador de futebol profissional não estava em destaque. Todos jogavam e, na sua imaginação, eram Pelés, Zicos, Rivelinos...

O tempo tratava de remediar os delírios imaginários de craques de futebol que éramos. O que aconteceu pelo caminho, o vemos agora: a maioria casou, constituiu família, e toca os negócios, como seus pais...

O que Celito faz hoje em dia? Muitas coisas que ele fazia, quando éramos crianças, ele ainda faz: trata com afeto os objetos que convivem com ele. Aquilo que é do seu convívio cotidiano, ele abraça com cuidado.

Celito, aposentado, não senta na varanda “com a boca escancarada cheia de dentes esperando a morte chegar”. Ele conserta brinquedos estragados que foram abandonados pelas crianças.

Esses brinquedos são distribuídos, no final do ano, entre as crianças carentes dos bairros e vilas.

Lembro do verso da música do Raul Seixas que diz: “Eu devia estar contente porque eu tenho...” Não estou alegre nem triste. Estou me perguntando sobre o valor das coisas e das nossas escolhas e atos. Celito volta à memória e me faz perceber que, para além da vocação e especialização que buscamos em nossas vidas, o que mais vale é o amor e o entusiasmo que dedicamos às causas que abraçamos.

Novo homem!

  Grãos de areia interditaram meus olhos nesta quarta-feira de tarde, bastou umas calcinhas no varal tomarem banho de sol e ousarem ...