quinta-feira, 14 de março de 2019

Carne de segunda



Preparo uma carne de segunda, agulha, que o açougueiro jurou que é macia.
Penso várias coisas. Que estilo adotar nas histórias que escrevo para que alguma editora tenha interesse. Na lista de compras neste início de mês, como os panos de prato pra substituir os que estão encardidos e furados. Nas toalhas de banho que, obviamente, vão ocupar o lugar das velhas, as quais desempenharão agora o papel de tapetes diante da porta que dá para o pátio. Em renovar o estoque de preservativos, creio que alguns estão vencidos ou por vencer. Em separar os livros que prometi doar pra uma campanha que vai presentear, às vésperas da páscoa, moradores de periferia. Preciso também separar as camisas e calças que não uso há décadas, e mesmo assim guardo no roupeiro. Ah, e sempre me cobro e reincido a respeito dos desodorantes que compro. Aqueles baratos custam muito, mancham as camisetas sob as axilas, nesses meses de temperatura elevada e então aparecem, além das manchinhas, aqueles furinhos.
Prometi dar algumas roupas ao lixeiro que toda semana passa na minha rua. Ele é tão hilário quanto eu. Empurra sua carrocinha, sendo que carrega, dependurada numa tela lateral, uma garrafa de refri contendo cachaça. Gosta de uma prosa. Quando soube que li uma quantidade razoável de livros de filosofia, disse-me que leu o "Mundo de Sofia" no Casarão. Ao confessar que não sabia que o Casarão era a Penitenciária Modulada, ele riu de minha cara. Dependendo da semana, esse lixeiro bebum e ex-drogado é meu papo mais produtivo.
Procuro uma maneira pra amaciar a carne de segunda emborrachada. batem à porta. Não esperava ninguém. É a Marga. Vejo de cara que Ela tem necessidade de falar. Traz novidades. Aprendeu com o Dr. Biza, um naturopata de fundo de quintal, técnicas para interpretar seus sonhos.
-Cadelão, a gente precisa aprender a se conhecer. Os sonhos trazem muita informação a respeito do nosso ser.
- Hum... não duvido. Conhecer o que, por exemplo?
- Ah, nossos medos, por que fugimos ou desistimos de nossos sonhos.
Observo o cozido, penso em desligar o fogo e me concentrar noutro fogo, por isso dou uma averiguada nos líquidos disponíveis na geladeira, e volto a dar atenção à garota. Ela está narrando um sonho que teve e como interpretou.
- Os sonhos usam imagens poderosas. Mas precisamos decifrar. Assim que você acorda, precisa anotar tudo. Anteontem sonhei que buscava algo, por um caminho desconhecido. Aí surgiu a imagem de uma árvore muito alta. Havia um tesouro na copa mais alta, que não lembro o que era, e que eu desejava muito. Ventava, balançando todos os galhos, aí eu me encostei no tronco e olhei pra cima e morri de medo. Desisti de subir...
- Hum...
- Olha só, eu interpretei assim a mensagem que o subconsciente me enviou: o vento foi a desculpa que eu achei pra não arriscar correr atrás do meu tesouro, isto é, os meus sonhos. Esse é um dos meus medos, o medo de bater de frente com os obstáculos.
Pensei: "Ela poderia se agarrar no tronco e escalar, com tudo, saltando de galho em galho. Isso é tão simples de decifrar. Ela tem fixação pelo caralho, de pular de um caralho pra outro".
- Não dramatize, Marga. Todos temos algum tipo de medo, e isso nos ajuda a sobreviver nesse mundo louco.
- Sabe, tem outra imagem, acho que no mesmo sonho. Eu agora estava num lugar alto, olhava pra baixo e não sabia como descer. Assim que desci, encontrei esparramadas minhas roupas sujas, que recolhi numa mochila, acho que dessas de viagem. Do jeito como o Dr. Biza me ensinou, eu deixava um rastro, não de roupa suja, mas de coisas que eu fazia e que me envergonhavam, me dando um enorme sentimento de culpa.
"Hum" - pensei - "Imagino o que passa com ela. Depois das preliminares e antes das primeiras estocadas, antes de engolir o cacete, ela pede pra que o cara coloque a camisinha. Faz isso comigo e com todos os outros. Pede, timidamente, pra que vistam o medonho e é claro que todos nós enrolamos e fica por isso mesmo".
- Marga, todos nós deixamos um rastro de sujeira por onde passamos. A diferença é que, enquanto alguns não ligam pra isso, outros se sentem os piores. Tem sujeitos que se matam por menos até.
Várias coisas me vinham à cabeça. Pensei: "Imagina como um psicanalista dos bem cretinos lidaria com a fragilidade dessa criatura. Ou escolheria transar com ela e romper a relação analista/paciente, ou continuaria sugando mais e mais grana, durante anos, em sessões intermináveis. Adivinhem o que o bostinha escolheria... Óbvio que é a segunda opção".
- Gosto de ouvir os teus papos. Me inspiram e abrem meu apetite.
Servi outro drinque da geladeira, me aproximei dela no sofá, lambi a ponta de sua orelha, soprei meu bafo morno e ela estremeceu e conduziu minha mão para o meio das suas coxas. A agulha emborrachada que espere, até porque depois meu apetite virá com tudo.
(B. B. Palermo)

O PATIFE tá enrolando de novo

Quando fui acertar a conta no bar, pendurada nos últimos dias, o bolicheiro não encontrou, no caderno, o meu nome. Ao repassar a longa l...