quarta-feira, 24 de julho de 2019

A dona do pó


A garota tirou copos e garrafas de uma mesa próxima. Uns sujeitos evaporaram fazia pouco.
- Não tem mais ninguém, né? 
- Não. Não sou ninguém.
Ela riu. Dei um longo gole e pedi outra cerveja. Minha alegria é intensa mas de tiro torto. É de quem está à margem dos grandes debates, em ciências ou artes ou política. Agarro-me ao instante, à presença da garota e seu sorriso, que não deve nada aos propagandeados congressos e simpósios e assembleias.
No meu canto, vibrando com a energia da garota, observo um sujeito que acabou de chegar, porte médio, cabelo e jeito de se mover meio estranhos. Me coço, o cara parece um suicida ou homicida ou pode estar decidido a matar a ex-mulher. Tento rosnar, como um pit bull enorme bem treinado, mas a razão cola a mão nos meus lábios e me convence de que não devo fazer nada. Ergo o copo e um clarão filosófico - que acolhe o verdadeiro sábio - me conduz ao centro do problema: como fazer para endireitar os indivíduos, já que trocar governantes não tem ajudado.
Enquanto fuço nessa porra de problema, minhocas engordam e ficam lerdas e mais samocas, como a pele e bunda e pernas e barriga e cérebro de certos homens e mulheres. Me preocupar com o indivíduo e a sociedade talvez ajude a esquecer as merdas que fiz. Mesmo que o monstrengo aqui se esconda atrás do velho clichê de que fez o que fez por amor.
Muitas e muitas vezes acordo no instante em que levaria tiros ou facadas de sujeitos desdentados e mal-encarados que são classificados como plebe. Eles dizem que estão cansados de acarinhar minhas cagadas, como o fato de ter trepado com uma garota que consideram sua. Otários, são muito valentões e pouco espertos, pois ainda acreditam que alguém seja de alguém. Nego e ganho tempo, nunca direi que ninguém é de ninguém. Porém, sempre perco o jogo. Os filhos da puta me deixam vivo e com sentimento de culpa. E sempre fazem questão de lembrar que minhas portas e janelas estão escancaradas. Basta uma turbulência do sono, numa noite qualquer, pra eles voltarem.
Desconfio que minha vida está sem propósito, como se fosse pacote de fraldas empilhado na prateleira da farmácia. Sei, sei, cus funcionam como válvulas de escape da civilização. A importância das fraldas está justificada. Quanto à minha importância pra humanidade, aí já não sei. Mas não me venham falar de suicídio.
Mastigava essas profundidades requentadas quando o Beiço sentou, com olhos e sobrancelhas e gestos e barba por fazer preocupados. Se saiu com essa:
- Sonhei que a torneira da pia destilava cerveja. Não lembro se era pilsen, ou puro malte, ou chope, lembro que o colarinho, no copo, estava do meu jeito. Pesquisei o verbete "cerveja" num livro dos sonhos. Desdobrei seus números e joguei no Bicho durante três dias, quatro vezes ao dia. Gastei uns quinhentos reais. De novo, não deu nada.
- Não desista, meu amigo. A sorte não avisa quando chega.
Conheço o Beiço há uns vinte anos. Sempre aviso, "devagar com o pó, você já perdeu algumas mulheres".
Marés sobem e marés descem, mudam as estações e o Beiço sempre recai.
Nesses dias nublados ouvi várias previsões, mas nenhuma como a Dele. A velhinha da fruteira disse: "Vai chover, minhas juntas estão doendo". Seu Amadeo, velho bebum frequentador do bar do Posto do Ganso, asseverou: "Amanhã chove com certeza. Meu joelho dói". 
Beiço não parava de coçar o nariz.
- Para de fungar, cretino!
- Cara, vai chover.
- Sim, a velhinha da fruteira e o seu Amadeo disseram que amanhã chove.
- Não, vai chover hoje.
- Bem, todos as previsões dizem que chove amanhã. Vi isso na internet.
- Capaz, Cadelão. Vai chover hoje, meu pó melou!
- Putz, maluco, teu pó é ruim.
- Capaz, é da dona do pó.
- Jesus Cristo! Ela vai melar é a tua vida!
- Nada. O marido tá preso por tráfico de entorpecentes.
- Hum... Eu não sei o que quero da vida. Mas quanto a você, eu sei...
- O quê?
- Uma bala na cara.
Ele riu com aquele seu jeito triste. Então a noite bateu à porta. Num poste, do outro lado da rua, uma lâmpada se esforçou pra acender. E logo apagou. E piscou e piscou, como se fosse cadela ansiosa pra entrar no cio. Fiquei preocupado. Pensei em como será o funeral do meu amigo. Ou o meu.

(B. B. Palermo)

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