segunda-feira, 28 de outubro de 2019

A culpa disso tudo é do Steve Jobs


Recebo uma carta do Cabezón. Digo carta no sentido tradicional. É, na verdade, um e-mail. De início ele me cumprimenta por estar vivo, depois diz como se sente. Confuso... Não sabe se está no inferno ou no purgatório. Mas garante que está numa sala de espera. E espera há séculos.
"Cadelão, você passa a vida se empanturrando de coisas. Hábitos que se repetem, bebidas e comidas, medos e covardias". Foi assim que ele iniciou. "Depois tu fica morrendo, fica burocrático, aí vira crente, ou se joga da ponte, ou se filia numa igreja. Paga pra manter uma dependência psíquica ao discurso do pastor ou do padre".
Pensei, Meu, parece que o cara me vê como um atendente de CVV. Disse que leva uma vida de merda e, de tantas que aprontou, está agora no inferno... ou no purgatório. "Aqui, nessa espera de séculos por algo diferente, estou aprendendo sobre o que é esperança. Nunca liguei pra isso em toda minha vida, só queria trepar, comer, beber, dormir... trabalhar, pra acumular dinheiro e... frustrações e carências. Aqui nessa sala de espera não tenho escolha. Antes eu podia cuidar da mente e do corpo. Podia ler bons livros, ouvir boa música. Podia escolher boas companhias. Mas escolhi a farra, os vícios. Tu sabe que tem outras escolhas, mas vai pelo caminho mais fácil".
Caralho, que viagem... O maluco idealiza o hospício que sempre o enjaulou e agora está desesperado, dizendo fazer estágio (interminável) no inferno. "Cadelão, o tempo não passa e tô sendo massacrado pelas lembranças... Boa parte foi bola fora. Aqui não há bons livros, nem boa música, nem bons papos, nem boas companhias. Só fico remoendo as merdas que fiz. Curtia aquela churumela sertaneja romântica, e o lazer se resumia em porres e fudeção e seringa nas veias. Velho, as lamúrias românticas entopem meus ouvidos e corrompem os sentimentos e me afastam da verdade. Isso, do pensamento racional, quando tu raciocina sem a interferência da vontade. Aquele desejo picuinha de ter poder sobre uma mulher e ao mesmo tempo ser dependente da paranoia sentimental dela".
Fico remoendo as coisas que ele escreveu, penso se mereço tanta confiança pra ouvir seus desabafos delirantes. Ele continua: "Tô na sala de espera do inferno e sei que mereço estar aqui. Aqui não tenho desculpas, aqui não tem essa de acordar de ressaca e mandar mensagem pro patrão dizendo que estou com febre. Não culpe o mundo pelas escolhas bestas que tu fez".
Em seguida ele me parece mais dramático: "Tu procura ajuda quando o desespero já se instalou, quando vê está sobre a ponte, ideia fixa na queda, acreditando que o voo é a salvação, que é o único remédio, sendo que esqueceu de outros que tu não quis fitar dentro do olho".
Em seguida Cabezón dá mostras de que anda puto ao observar como se comportam uns tipinhos por aí. "Meu, a cadela já passou dos 50, mas diz que tem 35, e tenta ampliar o ângulo do sorriso com uma dezena de dentes postiços enfileirados, que chamam de 'chapa' ou 'ponte'. E como procuram companhia nos sites de namoro! As fotos só mostram o rosto, a lua é sempre cheia. Por que será, hein Cadelão, que elas não mostram todo o corpo? Isso, as curvas e as retas, as planícies e os penhascos..."
Agora eu percebo onde de fato Cabezón quer chegar. Ele diz: "O culpado disso tudo é o Jobs, o espertinho que inventou o smartphone. As pessoas poderiam usar o tempo livre pra relaxar, meditar, se auto-conhecer, mas não, agora elas têm a internet e o aparelhinho. Agora qualquer bucéfalo está conectado com o mundo, produzindo e distribuindo suas merdas. Esse inferno vai ser longo, meu brother, ah vai! Droga de internet, droga de conexão, droga de aparelho que o Jobs inventou. Cara, li que um sujeito se masturbou dentro de um carro de aplicativo. A motorista procurou um posto policial mais próximo e registrou a ocorrência. O cara foi autuado por 'perturbação da tranquilidade'. O filho da puta conseguiu perturbar a tranquilidade da garota motorista e da cidade com sua punheta. Puta que pariu, esse rato escroto podia bater a punheta sossegado no fundo de sua toca... Eita tarado fodido!".
Em seguida o maluco complementa: "Aposto que ele queria virar notícia. E eu, um pobre diabo distraído, dei de cara com essa notícia por causa do aparelhinho. Logo logo eu arrebento essa porra contra a parede e saio pelo mundo. Isso, vou levar uma vida simples na curtição da natureza. Ainda vou criar uma nova geração de Hippies. Ah se vou!  Me aguarde, meu brother".

(B. B. Palermo)

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