Recebo uma carta do
Cabezón. Digo carta no sentido tradicional. É, na verdade, um e-mail. De início
ele me cumprimenta por estar vivo, depois diz como se sente. Confuso... Não
sabe se está no inferno ou no purgatório. Mas garante que está numa sala de
espera. E espera há séculos.
"Cadelão, você
passa a vida se empanturrando de coisas. Hábitos que se repetem, bebidas e
comidas, medos e covardias". Foi assim que ele iniciou. "Depois tu
fica morrendo, fica burocrático, aí vira crente, ou se joga da ponte, ou se filia
numa igreja. Paga pra manter uma dependência psíquica ao discurso do pastor ou
do padre".
Pensei, Meu, parece que
o cara me vê como um atendente de CVV. Disse que leva uma vida de merda e, de
tantas que aprontou, está agora no inferno... ou no purgatório. "Aqui,
nessa espera de séculos por algo diferente, estou aprendendo sobre o que é
esperança. Nunca liguei pra isso em toda minha vida, só queria trepar, comer,
beber, dormir... trabalhar, pra acumular dinheiro e... frustrações e carências.
Aqui nessa sala de espera não tenho escolha. Antes eu podia cuidar da mente e
do corpo. Podia ler bons livros, ouvir boa música. Podia escolher boas
companhias. Mas escolhi a farra, os vícios. Tu sabe que tem outras escolhas,
mas vai pelo caminho mais fácil".
Caralho, que viagem... O maluco idealiza o hospício que sempre o
enjaulou e agora está desesperado, dizendo fazer estágio (interminável) no
inferno. "Cadelão, o tempo não passa e tô sendo massacrado pelas lembranças...
Boa parte foi bola fora. Aqui não há bons livros, nem boa música, nem bons
papos, nem boas companhias. Só fico remoendo as merdas que fiz. Curtia aquela
churumela sertaneja romântica, e o lazer se resumia em porres e fudeção e seringa
nas veias. Velho, as lamúrias românticas entopem meus ouvidos e corrompem os
sentimentos e me afastam da verdade. Isso, do pensamento racional, quando tu
raciocina sem a interferência da vontade. Aquele desejo picuinha de ter poder
sobre uma mulher e ao mesmo tempo ser dependente da paranoia sentimental dela".
Fico remoendo as coisas
que ele escreveu, penso se mereço tanta confiança pra ouvir seus desabafos
delirantes. Ele continua: "Tô na sala de espera do inferno e sei que
mereço estar aqui. Aqui não tenho desculpas, aqui não tem essa de acordar de
ressaca e mandar mensagem pro patrão dizendo que estou com febre. Não culpe o
mundo pelas escolhas bestas que tu fez".
Em seguida ele me
parece mais dramático: "Tu procura ajuda quando o desespero já se
instalou, quando vê está sobre a ponte, ideia fixa na queda, acreditando que o
voo é a salvação, que é o único remédio, sendo que esqueceu de outros que tu
não quis fitar dentro do olho".
Em seguida Cabezón dá mostras
de que anda puto ao observar como se comportam uns tipinhos por aí. "Meu,
a cadela já passou dos 50, mas diz que tem 35, e tenta ampliar o ângulo do sorriso
com uma dezena de dentes postiços enfileirados, que chamam de 'chapa' ou
'ponte'. E como procuram companhia nos sites de namoro! As fotos só mostram o
rosto, a lua é sempre cheia. Por que será, hein Cadelão, que elas não mostram
todo o corpo? Isso, as curvas e as retas, as planícies e os penhascos..."
Agora eu percebo onde
de fato Cabezón quer chegar. Ele diz: "O culpado disso tudo é o Jobs, o espertinho
que inventou o smartphone. As pessoas poderiam usar o tempo livre pra relaxar,
meditar, se auto-conhecer, mas não, agora elas têm a internet e o aparelhinho.
Agora qualquer bucéfalo está conectado com o mundo, produzindo e distribuindo
suas merdas. Esse inferno vai ser longo, meu brother, ah vai! Droga de
internet, droga de conexão, droga de aparelho que o Jobs inventou. Cara, li que
um sujeito se masturbou dentro de um carro de aplicativo. A motorista procurou
um posto policial mais próximo e registrou a ocorrência. O cara foi autuado por
'perturbação da tranquilidade'. O filho da puta conseguiu perturbar a
tranquilidade da garota motorista e da cidade com sua punheta. Puta que pariu,
esse rato escroto podia bater a punheta sossegado no fundo de sua toca... Eita
tarado fodido!".
Em seguida o maluco
complementa: "Aposto que ele queria virar notícia. E eu, um pobre diabo
distraído, dei de cara com essa notícia por causa do aparelhinho. Logo logo eu
arrebento essa porra contra a parede e saio pelo mundo. Isso, vou levar uma vida
simples na curtição da natureza. Ainda vou criar uma nova geração de Hippies.
Ah se vou! Me aguarde, meu
brother".
(B. B. Palermo)