quinta-feira, 12 de setembro de 2019

Caminhando na chuva sem se molhar


- Os passarinhos tão bem louco lá fora. Tá nublado, mas tá uma luz do dia massa - Laha falava enquanto revirava a bolsa em busca de um espelho. Conferiu a tintura nova no cabelo, a inflamação por conta do piercing no nariz e a tatuagem no pescoço.

- Por que a luz tá massa?
- Porque as nuvens estão apavorantes, mas debaixo delas, na rua, tá mais claro. Parece que realçou o verde das árvores e da grama - bocejou, consultando as unhas - Ontem eu bebi e dirigi antes de dormir. Aí cheguei na aula meio tonta, de manhã, porque bebi e logo deitei.
- Você dirigiu?                                                                                                                     
- Dirigi no Euro truck simulator.
- Ah tá. Acho que você bebeu suco de laranja com agrotóxico hehehe.
- Sai daí, seu debochado! Que livro é esse?
- Do Kardec. Segundo Ele, o homem bêbado é alguém decadente, e está na mira de Deus. E a queda para o vício é influência dos maus espíritos. Viu só, não bebo porque quero, são aquelas pestinhas que fazem minha cabeça.
- Pestinhas?
- Isso, espíritos pouco evoluídos.
- Fala sério.
- Sim. Os amigos invisíveis estão por toda parte. Por isso acabei no CAPS.
- Meu Deus! Cabezón, CAPS não é lugar pra quem faz transações espirituais. Na real, quem anda sóbrio nesse hospital? Você conhece alguém? Eu vivo imersa em sonhos e traumas e fantasias. Será que também consigo um lugar no CAPS?
- Você não vai se tratar com aquele tarado, Ele vai te passar a lábia!
- Tu é muito louco. O Doutor é racional, Ele te dá remédio pra tu não viajar... Pra não ir bêbado pra terapia e ameaçar Ele com uma garrafa.
- Ele é do mal.
- Tá... Entendi... Tu ameaçou o Doutor com uma garrafa porque Ele é um espírito do mal.
- Descobri na primeira consulta. Ele me olhava daquele jeito e me pedia pra falar.
- Fale mais sobre os porra desses espíritos petulantes... Então eles te obrigam a beber?
- Ahan. Não devemos fazer as coisas quando estamos contrariados.
- Tu fez algum pacto com o diabo? Já sei, fez vários. Agora só um pacto maior pode desfazer isso.
- Estou sob proteção divina. Sério. Claro que tenho que dar minha contrapartida.
- Hum...
- Descobri o poder da minha energia mental. Lembra da tarde que tu foi tomar sorvete com as amigas no bar do Telmo? Eu fui na feira buscar ovos. No caminho desandou um temporal. Estava sem guarda-chuva. Conectei minha mente na do divino. Fiz uma breve oração e a chuva parou. 
Cara, me explica isso!
- Mano! Você tá muito louco!
- Louco não, inspirado.
- Meu bem, ou é o pó que te vendem que é muito estranho. Tu vai dizer: As pessoas são normais, o problema é a qualidade da droga. Ou a dosagem. Mas me conta, que oração poderosa foi essa?
- Não posso falar. É um segredo que só compartilho com meu Anjo da Guarda.
- Pensei que EU fosse a tua Anja... Meu, me explica, tu nunca se atrasou ou faltou às consultas. Que eu saiba, tu sempre estava na sala de espera meia hora antes. Por que então a garrafa pra cima do "tarado"?
- Aquele demônio é cheio de lábia.
- Ah tá. Ele dá em cima dos pacientes.
- Tu não vai chegar perto desse caco de gente!
- Meu bem, tu esqueceu a origem da porra do meu nome? Laha-bia. Lahabiel é um anjo que tem poder contra espíritos maus. Então, pela minha origem eu tenho poder sobre esses espíritos.
- Para! Não fala difícil, que eu tenho um buraco na cabeça. 
Escuta só... tá chovendo lá fora. Tu sabia que eu posso caminhar na chuva sem me molhar?
- Sabe quem anda na chuva sem se molhar? A mulher do sol. Ela também encanta bois, dobrando-lhes os chifres. Caralho! Viu só como eu sou esperta? Eu leio, meu bem. Conheço mitos e lendas. E tu, seu tapado, em vez de ficar por aí se chapando e enchendo a cara, poderia estudar um pouco mais sobre história e mitologia.
- A chuva... A chuva voltou. Juro, eu consigo fazer a chuva parar...
- Cara, olhe pela janela, não é chuva, estão lavando a calçada com uma mangueira.
- Psiu... Me deixe relaxar e meditar... Em dois minutos vai começar a chover.
- Que massa. Aguenta um pouquinho, eu vou chamar os médicos e enfermeiras pra assistirem.

(B. B. Palermo)

* Esta história nasceu de um bate-papo com amigos, no bar do TELMO.



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Quando fui acertar a conta no bar, pendurada nos últimos dias, o bolicheiro não encontrou, no caderno, o meu nome. Ao repassar a longa l...