sexta-feira, 6 de novembro de 2020

Naquele tempo eu era a voz do povo

 

Início dos anos 80,

mamãe queria que eu frequentasse

o grupo de jovens da Igreja Católica.

Lá seria inevitável conhecer uma garotinha cheia de qualidades,

virgem,

lá eu potencializaria minhas virtudes

e botaria as manguinhas de fora,

dúzias de talentos florescendo.

Mamãe estava preocupada,

eu era um adolescente solitário.

bah, cara, pensa só o que ela devia imaginar

quando eu demorava horas no banheiro ou no quarto.

Eu e meus amigos corajosos e aventureiros

queríamos andar pelados às 3 da manhã no centro da Fredy City,

e encher de ira o Santo Antônio, padroeiro da paróquia,

que nos observava do alto de uma torre da igreja matriz.

Não tinha maturidade pra saber que traquinagens de madrugada

não me dariam um bom emprego, e havia outros riscos,

eu publicava poemas ingênuos e sujos nas edições de domingo

de um jornal de quinta, chamado "A voz do povo".

Cara, na minha cabeça eu escrevia coisas legais,

e se a patota da City dava a mínima pras minhas colunas dominicais

era porque eles ainda não tinham chegado lá,

tu sabe, não tinham alcançado o nível mais elevado

da percepção estética.

Para agradar mamãe e para chamar a atenção da população,

eu viajava nos poemas, não passava a ideia de que era

um (quase) seminarista punheteiro cheio de espinhas no rosto,

e sempre me confessando e me arrependendo

às vésperas da Semana Santa.

Meu, eu tinha certeza de que escrevia coisas irônicas,

ou de duplo sentido,

uma poesia inovadora,

banhando de luz, humor e liberdade

as manhãs de domingo de minha modesta cidade.

Acho que escrevia uma espécie de autoajuda,

bem antes dessa coisa virar moda pelo mundo:

"Procuro uma alma gêmea,

eu quero casar,

eu quero filhos brilhantes,

eu quero transbordar de orgulho

vivendo em perfeita harmonia

com esses seres de luz.

Mãos nos bolsos

acariciando

o dinheiro

fruto de meu suor,

as canções que vou assobiar

serão as minhas canções

mais originais".

 

Sim, cara, eu sonhava.

Fazia muito barulho, competia com o sino da catedral,

com o apito de trem no frigorífico,

que liberava milhares de trabalhadores ao meio dia,

de segunda a sábado.

Eu competia também com a hora da Ave Maria,

às 18 horas, na rádio local.

Eu era corajoso, cara, conseguia fazer poemas sem rimar

falando dos buracos das ruas da cidade,

das suas escapadas, bebedeiras e dos sustos que davam

nos motoristas distraídos.

Ah, velho, eu também falava de um mundo em mudança

enquanto bois iam para o abate,

falava, com sinceridade, que botava fé nas pessoas,

enquanto cães e gatos conversavam com Deus

dando piruetas nas esquinas.

 

(B. B. Palermo)


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