Eram cinco e trinta da
manhã e eu caminhava por uma avenida de São Borja, em direção à estação
Rodoviária. Hospedara-me numa espelunca. É que decidi pagar uma diária menor
pra beber mais cervejas. Raciocinei que, exausto por passar o dia visitando
lugares turísticos da cidade, como o museu Getúlio Vargas e os barzinhos e
prainha na beira do rio Uruguai, teria um sono pesado e não seria necessário
muito conforto.
A primeira parte do
sono até que foi legal, apesar dos pernilongos. As três e meia acordei com uma
tosse estranha de um maluco, num outro quarto. Acho que a criatura estava com uma
bronquite das brabas. Aquela tosse fatídica durou até os primeiros cantos dos
galos, lá pelas cinco da manhã. Decidi levantar, tomar um banho e embarcar no
ônibus das seis e trinta.
O cara do hotel falou
que eu devia caminhar umas três quadras na direção oeste e depois dobrar à
esquerda e seguir sempre em frente, na avenida, até encontrar a Estação
Rodoviária. Era uma madrugada agradável, e o dia quase clareava. Eu contava os
quarteirões, só para ter uma ideia do caminho a percorrer. Eis que se aproxima
um sujeito de bicicleta. Vestia bermuda, camiseta e chinelos. Pelos movimentos
ondulantes da bicicleta saquei que ele voltava de alguma festa, bar ou jogatina.
Alheio aos perigos desse mundo, perguntei a ele se a Rodoviária ficava naquela
direção. Ele fez um gesto com a mão e disse que era só percorrer mais quatro
quadras. O cara desceu da bicicleta e se aproximou. Gelei. Veio à mente o que
disse dona Margarida, a benzedeira: Sempre que você perceber algum perigo em
algum lugar, saia logo dali. Mas ele apenas pediu umas moedas pra comprar uma
garrafa de cachaça. Moedas eu tinha de montão na mochila. Alcancei-lhe um
punhado, dizendo: Mas tu tá bebendo a essa hora, maluco?
Lembro que, em cada
esquina, os bueiros emitiam um barulho e um bafo que me pareceu incomum. Faziam
a sua parte, enquanto a cidade repousava. Eu me perguntava Pra onde vai tanto
esgoto, meu Deus Nosso Senhor?
Olhei para o céu, mais
a leste, e lá estava, radiante, a Estrela da Manhã. Do firmamento, a estrela me
protegia. Ou eu é que estava impressionado pela conversa que tive com dona
Margarida, uma das tantas benzedeiras da cidade.
Desejei visitar dona
Margarida depois de ler uma reportagem de um jornal de Porto Alegre, num
caderno de domingo. Preciso de um emprego, dinheiro, um grande amor, e uma
força me atraía para São Borja, sua terra natal. A casa, num bairro que abriga
o cemitério municipal, onde estão os restos mortais do Brizola e joão Goulart,
se esconde em meio à vegetação. Ao chegar, saía de lá um sujeito que me pareceu
transtornado. Disse-lhe que viajei com o intuito de conhecê-la, e ela foi
bastante simpática. Convidou-me para entrar e de cara senti uns arrepios, algo
totalmente diferente do que senti até então.
Ela riu de meu pouco
jeito com a mochila e moletom que carregava, não sabia onde largar as coisas,
mas se esforçou para que eu ficasse à vontade no interior do seu templo.
Mostrou-me as paredes abarrotadas de presentes que ganhou dos clientes, pediu
que virasse na direção da parede, de frente para o retrato do seu mestre, que
concentrasse nos pedidos, e começou a benzedura. Tentei concentrar e aquilo não
acabava nunca, captei meia dúzia de desejos, até me senti culpado por ser tão egoísta,
pedindo uma lista enorme de coisas. Ao mesmo tempo, prestava atenção na
quantidade de divindades que Margarida evocava.
A seguir pedi-lhe pra
ler meu futuro, dando as cartas. Eu só pensava em superar de vez meus fracassos
no amor e juntar uma grana.
- E se eu me apaixonar
por uma garota bem mais jovem, Dona Margarida?
- Meu filho, amor não
tem idade... não tem idade.
- Sabe, fiz muitas
cagadas com as mulheres. Tive muitas histórias, mas passageiras.
- Você já sofreu muito
nessa vida. Hora de sossegar... de sossegar.
Ao dar as cartas,
Margarida dedilhava o roteiro de acontecimentos presentes e futuros de pessoas
que me eram próximas. Tudo girava em torno do dinheiro, poder, saúde ou doença
ou morte, amor, paixão ou traição. Aquelas coisas que fazem nosso coração bater
mais forte ou mais fraco, compassado ou não, com vontade ou confiança, ou com
medo e desânimo. Não conhecia algumas expressões que ela usou, mas que significavam
algo como pessoas "fuxiqueiras" ou de "duas caras" ou
traiçoeiras, e que eu devia manter distância. Dona Margarida me mostrou outros
aspectos de como as pessoas convivem e se relacionam.
Mais pessoas aguardavam
pra serem atendidas pela benzedeira. Hora de ir para o centro da cidade. Estava
feliz com o encontro e tive uma fome danada. Pedi então para um taxista me
levar até o Passo, bairro que fica às margens do rio Uruguai, lugar turístico e
cheio de barzinhos, famosos pelo peixe frito.
Naquele horário, poucos
bares estavam abertos. Havia um senhor sentado diante de uma espelunca. Seu
olhar arisco, não se deixava enquadrar. Parecia querer decifrar minhas
intenções, para além de comer peixe frito e tomar umas cervejas. Depois de
preparar a comida e me servir, ficou o tempo todo enviando áudios pelo WhatsApp.
Seus papos giravam em
torno dos peixes graúdos que pescou, seu peso e o lucro obtido. As cheias de
todo ano que invadiam sua residência e que rendiam fartas pescarias. Pescava
dourados e pintados no quintal de sua casa.
Garganteava também da
criação e abate de ovelhas, galinhas e outros bichos. Seus olhos se iluminaram
quando pedi se conhecia algum hotel que permitisse o pernoite de alguma garota. Naquele momento estavam no bar
também alguns de seus amigos, e pareciam muito confidentes entre si.
bastou perguntar das
garotas e ele mostrou, pelo celular, a foto de uma pequena de dezoito anos, que
era sua garçonete. Falei Puxa, que ninfetinha, e... em poucos minutos ela
apareceu no bar.
Merda. Me vi diante de
um imenso dilema. Meu senso de justiça me impele a pagar bem as garotas,
considero fundamental a distribuição de renda, nem que eu passe fome, mas não
suportaria que o cretino do bar, gigolô mercantilista de margem de rio, ficasse
com a metade do valor do programa. Economizei na diária, tomei água de
torneira, pra poder pagar uma boa gorjeta pra aquele safado.
Baixou uma nostalgia
dos tempos românticos, onde os bichos eram mais respeitados - tinham algum
valor, além do econômico e de sua adequação a determinados pratos e comilanças.
Então era assim. Além das ovelhas e peixes e galinhas, o filho da puta negociava
uma loirinha de dezoito anos, com um bebê para criar. Ele disse que o programa
custava trezentos reais. Saquei que a metade, no mínimo, ficaria com ele.
Perguntei pro atendente
do bar da rodoviária se a água da torneira era boa pra se beber e ele respondeu
que na semana passada foram encontrados dois corpos no reservatório, mas que no
mais ela era boa. Corri pro banheiro e até pensei em vomitar. Mas uma
iluminação me disse que eu adquiri mais vida bebendo os mortos.
Fui o último a embarcar,
e o motorista, que olhou minha passagem, deve ter notado como eu estava pálido
e suando frio. À noite sempre reservo um copo d'água ao lado da cama, e vou
bebendo a cada vez que acordo pra ir ao banheiro.
(B. B. Palermo)