FOI só alguns dias
depois do fatal piquenique em Paquetá que eles dois apareceram. A maré trouxe
primeiro o corpo da moça, logo identificado por causa do maiô de sarongue, todo
de flores amarelas. O dele apareceu mais tarde, a uns cem metros de distância.
Coitado, nem então ficaram juntos. Identificar não o identificaram
propriamente, que não dava para isso, tal o estrago feito pelos peixes. Mas se
quase de par com o corpo dela outro corpo aparecia, tinha que ser o dele, pois
não? No fim das contas, não se dera pela falta de mais ninguém, só daquele
casal.
A primeira vez que a
viu foi no baile da primavera, no seu clube de subúrbio. Estavam elegendo a
rainha do mês de maio, ela corria na frente do páreo. Afinal, se rainha não
saiu, por causa de uma dúzia de votos, saiu contudo princesa, teve seu trono de
veludo ao lado do trono maior, também ganhou brinde e também foi coroada. Ele teve
a honra de ser o seu par na hora da valsa real, que foi, como sempre, o Danúbio Azul. E quando a sentiu nos
braços, apertou-a como coisa sua e lhe disse no ouvido:
- Pode você só ter
chegado a princesa, e nem isso carecia de ser: para mim há de ser sempre uma
rainha...
Ela porém o afastou de
si, não zangada, mas dengosa, se ofendendo:
- Não atraca, seu
pirata, que isto aqui não é cais do porto.
Talvez falasse assim,
linguagem marítima, em homenagem à farda que ele vestia: a túnica cor de
sangue, a calça branca engomada, e o casquete matador, posto de lado no cabelo
repartido, com as fitinhas pretas tremulando no ar, aos rodopios da valsa. E
nem o par da rainha, o presidente do clube, tinha um décimo sequer do airoso
aprumo do par da princesa, - tudo de acordo com a ordenança militar: barriga
para dentro, peito saliente e olhar terrível.
Com tudo isso, não foi
dessa vez que a começou a amar e seu cativo se tornou, como se a ela
pertencesse de tinta e papel.
Foi no outro dia em que
estava sentado à toa no banco da praça e viu descendo do bonde um par de sapatos
desses que chamam de ballet, e umas
pernas de garrafa, e o joelho redondo, e a barra da saia estampada. Só então
levantou os olhos, viu-lhe a face e o lenço do cabelo, viu os olhos e viu-lhe
os brincos de arrecadas à portuguesa. E a boca tão pintada, que parecia uma
flor de papel pregada no meio do rosto, e o pescoço delgado saindo do laço da
gola, e a cinturinha fina apertada no cinto de oleado. Por fim, deixou de a
olhar assim, pedaço por pedaço, reconhecendo aquela cintura onde pusera a mão,
os olhos e o cabelo: fitou-a em conjunto e logo recordou quem era. Quem seria
senão a princesa do mês de maio?
E ao reconhecê-la
assim, foi como um cachorro de rua que encontra a dona e não quer mais se
apartar dela. Chegou para perto e se entregou. Disse tudo, ofereceu tudo. Princesa
tão perigosa há muitos anos não havia. Por ela diz-que dois malandros já se
pegaram a navalha, um chofer se suicidou com formicida, um pai de família
largou a família, três noivos deixaram as noivas, cinco estudantes sentaram na
praça e sete funcionários públicos deram desfalque.
- E eu – que poderá
fazer o triste de mim, princesa, que sou apenas um pobre naval apaixonado? Me matar
não posso, porque do vosso amor já morri. Matar outros – mas antes que deles eu
chegue perto, sei que o vosso olhar os matou. Sentar praça já sentei; dar
desfalque – como seria, se a mim não confiam nada? Largar família – ai de mim,
princesa, que me criei enjeitado, nunca tive esposa ou noiva; vós é que sereis
minha gente e meus amores, pai e mãe que nunca tive, filhos, sobrinhos e netos!
Princesa, deixe que eu amarre o cordãozinho do vosso sapato. Deixe que eu deite
no chão para você pisar. Maltrata, princesa, maltrata, que estás maltratando o
que é teu!
Assim falava o naval
apaixonado. A princesa, se o escutava, fingia que estava longe. E a bem dizer
fez tudo que ele mandava e depois fez muito mais: pisou, judiou, escarneceu,
desprezou – embora só moralmente, com o sorriso desdenhoso e a palavra de pouco
caso dita na ponta do beiço.
Como seu, só o aceitava
para maltratar, com outros saía, com outros dançava. Ele porém não a largava,
sempre a acompanhando, sempre a alguns passos no seu rastro, e se não o comparo
com uma sombra é porque sombra não sofre e o pobre sofria muito.
Afinal sucedeu o
piquenique em Paquetá. Nem uma vez ela o olhou durante a hora e meia da barca. Nem
uma vez lhe falou entre embarque e desembarque, e o passeio de bicicleta e
depois o banho de mar. Mas foi na hora do banho de mar que ele sumiu de repente
e voltou minutos depois remando numa canoa. Passou bordejando por ela, que boiava
na flor da água como uma alga amarela no seu maiô de cetim. Como se brincasse,
ofereceu carona. E ela, num capricho, aceitou. Quase virou o bote ao subir
nele. Ele ficou na popa onde estava e não a tocou sequer, procurando ajudar. Depois
puxou pelo remo, e a pequena embarcação se escondeu por trás da Pedra da
Moreninha.
O que se passou naquele
barco só Deus saberá. Os companheiros foram dar pela falta dos dois quando
desceram da barca da Cantareira. E assim mesmo pensaram que o par tinha se sumido
de propósito no meio da multidão.
O homem do restaurante
em Paquetá é que estranhou o seu bote aparecer emborcado. E como se disse no
princípio, só depois de vários dias é que os peixes e a maré devolveram os dois
banhistas.
(Do livro Quatro vozes. Editora Record.).
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