sexta-feira, 9 de novembro de 2018

A princesa e o pirata – Rachel de Queiroz



FOI só alguns dias depois do fatal piquenique em Paquetá que eles dois apareceram. A maré trouxe primeiro o corpo da moça, logo identificado por causa do maiô de sarongue, todo de flores amarelas. O dele apareceu mais tarde, a uns cem metros de distância. Coitado, nem então ficaram juntos. Identificar não o identificaram propriamente, que não dava para isso, tal o estrago feito pelos peixes. Mas se quase de par com o corpo dela outro corpo aparecia, tinha que ser o dele, pois não? No fim das contas, não se dera pela falta de mais ninguém, só daquele casal.

A primeira vez que a viu foi no baile da primavera, no seu clube de subúrbio. Estavam elegendo a rainha do mês de maio, ela corria na frente do páreo. Afinal, se rainha não saiu, por causa de uma dúzia de votos, saiu contudo princesa, teve seu trono de veludo ao lado do trono maior, também ganhou brinde e também foi coroada. Ele teve a honra de ser o seu par na hora da valsa real, que foi, como sempre, o Danúbio Azul. E quando a sentiu nos braços, apertou-a como coisa sua e lhe disse no ouvido:
- Pode você só ter chegado a princesa, e nem isso carecia de ser: para mim há de ser sempre uma rainha...
Ela porém o afastou de si, não zangada, mas dengosa, se ofendendo:
- Não atraca, seu pirata, que isto aqui não é cais do porto.
Talvez falasse assim, linguagem marítima, em homenagem à farda que ele vestia: a túnica cor de sangue, a calça branca engomada, e o casquete matador, posto de lado no cabelo repartido, com as fitinhas pretas tremulando no ar, aos rodopios da valsa. E nem o par da rainha, o presidente do clube, tinha um décimo sequer do airoso aprumo do par da princesa, - tudo de acordo com a ordenança militar: barriga para dentro, peito saliente e olhar terrível.

Com tudo isso, não foi dessa vez que a começou a amar e seu cativo se tornou, como se a ela pertencesse de tinta e papel.
Foi no outro dia em que estava sentado à toa no banco da praça e viu descendo do bonde um par de sapatos desses que chamam de ballet, e umas pernas de garrafa, e o joelho redondo, e a barra da saia estampada. Só então levantou os olhos, viu-lhe a face e o lenço do cabelo, viu os olhos e viu-lhe os brincos de arrecadas à portuguesa. E a boca tão pintada, que parecia uma flor de papel pregada no meio do rosto, e o pescoço delgado saindo do laço da gola, e a cinturinha fina apertada no cinto de oleado. Por fim, deixou de a olhar assim, pedaço por pedaço, reconhecendo aquela cintura onde pusera a mão, os olhos e o cabelo: fitou-a em conjunto e logo recordou quem era. Quem seria senão a princesa do mês de maio?
E ao reconhecê-la assim, foi como um cachorro de rua que encontra a dona e não quer mais se apartar dela. Chegou para perto e se entregou. Disse tudo, ofereceu tudo. Princesa tão perigosa há muitos anos não havia. Por ela diz-que dois malandros já se pegaram a navalha, um chofer se suicidou com formicida, um pai de família largou a família, três noivos deixaram as noivas, cinco estudantes sentaram na praça e sete funcionários públicos deram desfalque.
- E eu – que poderá fazer o triste de mim, princesa, que sou apenas um pobre naval apaixonado? Me matar não posso, porque do vosso amor já morri. Matar outros – mas antes que deles eu chegue perto, sei que o vosso olhar os matou. Sentar praça já sentei; dar desfalque – como seria, se a mim não confiam nada? Largar família – ai de mim, princesa, que me criei enjeitado, nunca tive esposa ou noiva; vós é que sereis minha gente e meus amores, pai e mãe que nunca tive, filhos, sobrinhos e netos! Princesa, deixe que eu amarre o cordãozinho do vosso sapato. Deixe que eu deite no chão para você pisar. Maltrata, princesa, maltrata, que estás maltratando o que é teu!
Assim falava o naval apaixonado. A princesa, se o escutava, fingia que estava longe. E a bem dizer fez tudo que ele mandava e depois fez muito mais: pisou, judiou, escarneceu, desprezou – embora só moralmente, com o sorriso desdenhoso e a palavra de pouco caso dita na ponta do beiço.
Como seu, só o aceitava para maltratar, com outros saía, com outros dançava. Ele porém não a largava, sempre a acompanhando, sempre a alguns passos no seu rastro, e se não o comparo com uma sombra é porque sombra não sofre e o pobre sofria muito.

Afinal sucedeu o piquenique em Paquetá. Nem uma vez ela o olhou durante a hora e meia da barca. Nem uma vez lhe falou entre embarque e desembarque, e o passeio de bicicleta e depois o banho de mar. Mas foi na hora do banho de mar que ele sumiu de repente e voltou minutos depois remando numa canoa. Passou bordejando por ela, que boiava na flor da água como uma alga amarela no seu maiô de cetim. Como se brincasse, ofereceu carona. E ela, num capricho, aceitou. Quase virou o bote ao subir nele. Ele ficou na popa onde estava e não a tocou sequer, procurando ajudar. Depois puxou pelo remo, e a pequena embarcação se escondeu por trás da Pedra da Moreninha.
O que se passou naquele barco só Deus saberá. Os companheiros foram dar pela falta dos dois quando desceram da barca da Cantareira. E assim mesmo pensaram que o par tinha se sumido de propósito no meio da multidão.
O homem do restaurante em Paquetá é que estranhou o seu bote aparecer emborcado. E como se disse no princípio, só depois de vários dias é que os peixes e a maré devolveram os dois banhistas.

(Do livro Quatro vozes. Editora Record.).

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