sexta-feira, 25 de maio de 2012

Critério - Luis Fernando Verissimo


Náufragos de um transatlântico, dentro de um barco salva-vidas perdido em alto-mar, tinham comido as últimas bolachas e contemplavam a antropofagia como único meio de sobrevivência.



-Mulheres primeiro - propôs um cavalheiro.


A proposta foi rebatida com veemência pelas mulheres. Mas estava posta a questão: que critério usar para decidir quem seria sacrificado primeiro para que os outros não morressem de fome?


-Primeiro os mais velhos - sugeriu um jovem.


Os mais velhos imediatamente se reuniram num protesto. Falta de respeito!


-É mesmo - disse um - somos difícies de mastigar.


-Por que não os mais jovens, sempre tão dispostos aos gestos nobres?


-Somos, teoricamente, os que têm mais tempo para viver - disse um jovem.


-E vocês precisarão da nossa força nos remos e dos nossos olhos para avistar a terra - disse outro.


-Então os mais gordos e apetitosos.


-Injustiça! - gritou um gordo. - Temos mais calorias acumuladas e, portanto, mais probabilidade de sobreviver de forma natural do que os outros.


-Os mais magros?


-Nem pensem nisso - disse um magro, em nome dos demais.


-Somos pouco nutritivos.


-Os mais contemplativos e líricos?


-E quem entreterá vocês com histórias e versos enquanto o salvamento não chega? - perguntou um poeta.


-Os mais metafísicos?


-Não esqueçam que só nós temos um canal aberto para lá - disse um metafísico, apontando para o alto - e que pode se tornar vital, se nada mais der certo.


Era um dilema.






É preciso dizer que esta discussão se dava num canto do barco salva-vidas, ocupado pelo pequeno grupo de passageiros de primeira classe do transatlântico, sob os olhares dos passageiros de segunda e terceira classes, que ocupavam todo o resto da embarcação e não diziam nada. Até que um deles perdeu a paciência e, já que a fome era grande, inquiriu:


-Cumé?


Recebeu olhares de censura da primeira classe. Mas como estavam todos, literalmente, no mesmo barco, também recebeu uma explicação.


-Estamos indecisos sobre que critério utilizar.


-Pois eu tenho um critério - disse o passageiro de segunda.


-Qual é?


-Primeiro os indecisos.


Esta proposta causou um rebuliço na primeira classe acuada. Um dos seus teóricos levantou-se e pediu:


-Não vamos ideologizar a questão, pessoal!


Em seguida levantou-se um ajudante de maquinista e pediu calma. Queria falar.


-Náufragas e náufragos - começou - Neste barco só existe uma divisão real, e é a única que conta quando a situação chega a este ponto. Não é entre velhos e jovens, gordos e magros, poetas e atletas, crentes e ateus... É entre minoria e maioria.


E, apontando para a primeira classe, gritou:


-Vamos comer a minoria!


Novo rebuliço. Protestos. Revanchismo, não! Mas a maioria avançou sobre a minoria. A primeira não era primeira em tudo? Pois seria a primeira no sacrifício.


Não podiam comer toda a primeira classe,  indiscriminadamente, no entanto. Ainda precisava haver critérios. Foi quando se lembraram de chamar o Natalino. O chefe da cozinha do transatlântico.


E o Natalino pôs-se a examinar as provisões, apertando uma perna aqui, uma costela ali, com a empáfia de quem sabia que era o único indispensável a bordo.


O fim desta pequena história admonitória é que, com toda agitação, o barco salva-vidas virou e todos, sem distinção de classes, foram devorados pelos tubarões. Que, como se sabe, não têm nenhum critério.

quarta-feira, 23 de maio de 2012

Artes marciais - L. F. Verissimo


As artes marciais do Oriente – karatê, kung-fu, etcétera – estão em grande evidencia em toda a parte, mas poucos conhecem o mais antigo sistema de defesa pessoal do mundo, o milenar Borra-dô. Introduzido no Brasil há pouco, o Borra-dô já tem uma academia montada em Porto Alegre, e foi lá que conversamos com seu diretor, o nipo-paulista Imajina Antonino Imajina – sobre o insólito método. Imajina começou com um breve relato do Borra-dô, que é a arte de evitar a briga. Seu inventor foi o monge budista Tsetsuo Tofora, conhecido como O Pulha de Osaka, que viveu até os 180 anos e desenvolveu os principais golpes e preceitos desta mistura de religião, filosofia e instrução marcial.


– O Borra-dô se divide em quatro fases, cada uma identificada com um animal – explicou-nos Imajina . - A primeira fase é a da mulher (que O Pulha classificava, como animal, entre a lesma e o tubarão), e consiste em falar sem parar diante do adversário que nos ataca.


– O que deve ser dito?


– O Pulha, nos seus Ensinamentos, nos dá alguns exemplos. “Minha mulher está gravida, minha casa queimou, eu sustento dezessete tios e o médico recomendou que não era para eu apanhar antes de se passarem 10 dias da operação no crânio!” Ou então: “E se a gente se sentasse num lugar para discutir isso civilizadamente, digamos sem ser nesta segunda-feira, a outra?” Ou, ainda: “Meu primo é general!”


– Qual é a segunda fase?


– É a da Cobra. Se o adversário se convence com nossas palavras, devemos dizer alguma coisa como “Olha atrás!” e no momento em que ele se vira dar-lhe um soco na nuca e ao mesmo tempo gritar a frase ritual “Ha, caiu!”


– E a terceira?


– A da Galinha. Quando o adversário se vira, furioso com o Golpe da Cobra, devemos berrar e pular como uma galinha assustada, de modo a confundi-lo e comprometer a seriedade da situação. Esta é a fase que requer maior concentração, e portanto é a mais difícil. Aliás, só damos o título de Mestre Borra-dô a quem conseguir imitar uma galinha histérica com perfeição. O próprio Pulha, segundo a lenda, passou 40 anos em
meditação dentro de um galinheiro budista, alimentando-se de milho e ovo cru, até conseguir dominar a fase da Galinha. Claro que, com os métodos audiovisuais modernos, nós conseguimos isto com o aluno em muito menos tempo.


– Qual é a quarta fase?


– Vou demonstrar.


E Imajina saiu correndo. Voltou pouco tempo depois para explicar:


– É a fase do Rato, a fase final, a culminância de toda a arte do Borra-dô. A Fuga. O Pulha só morreu, aos 180 anos, porque seu último encontro, depois de completar com perfeição todas as fases do Borra-dô, falhou nessa fase fundamental do Rato,
tropeçando na própria barba e caindo de cara no chão, onde foi desmembrado pelos adversários furiosos. Nós aconselhamos nossos alunos a nunca deixarem crescer a barba.


Imajina completou suas explicações:


– Claro que existem variações nas diversas fases. Na da Cobra, por exemplo, quando o adversário for adepto do karatê podemos esperar até que ele se prepare para quebrar uma pilha de telhas com a mão, para nos intimidar, e quebrar uma telha na cabeça dele bem na hora do golpe. Ou então...

domingo, 20 de maio de 2012

Sementinhas - Luis Fernando Verissimo


- Professora, sabe sexo explícito?
- Pronto - pensou a professora. Chegou a hora. A turma ainda não estava na idade para educação sexual, mas quem sabe qual é a idade, hoje em dia?
- Professora, sabe sexo explícito?
- Eu já ouvi, Maurício. É sobre isso que nós vamos conversar hoje.
- Mas, professora...
- Senta, Maurício.
O menino estava impaciente. Ela entendia. Todos deviam estar impacientes. O sexo estava por toda parte. Era natural a curiosidade deles. Mesmo naquela idade.


- Todos sabem o que é uma planta, não sabem? Agora eu quero o nome de uma planta. Judite?
- Flor - disse a Judite.
- Muito bem. E que tipo de flor?
- Rosa! - apressou-se a dizer a Rosa.
- Muito bem. Eu vou desenhar uma rosa. E a professora desenhou uma semente.
- Isto parece uma rosa?
- Não senhora.
- Claro que não. Isto é uma semente. É o começo da rosa. Toda plantinha começa com uma semente. Alguém bota uma semente na terra e a plantinha vai crescendo, vai crescendo...
- Professora...
- O que é, Maurício?
- Sabe sexo explícito?
- Espera um pouquinho, Maurício. Nós já chegamos lá.
- Mas, professora...
- Senta, Maurício.
- Mas...
- Senta!
- Tá bem.
E o menino sentou, com cara de mártir.
- Primeiro tem a semente. Depois a plantinha vai nascendo da semente. Vocês também começaram de uma sementinha, como esta. Dentro da barriga da mamãe. E quem foi que botou a sementinha na barriga da mamãe? Alguém sabe?
- Foi o meu pai - disse o Maurício. - Mas, professora...
- Foi o papai, certo. Vejo que essa parte vocês já sabem. E como é que o papai põe a sementinha na barriga da mamãe? Quem sabe?
Silêncio.
- Professora...
- O que, Maurício...
- Nós sabemos tudo isso.
- Tudo?
- Tudo - confirmou a Rosa.
- Sabe sexo explícito? - insistiu o Maurício.
- Sei - disse a professora, desconfiada. - Que que tem sexo explícito?
- Passarinho faz sexo expíucito.
- Como é?
- Expíucito. Passarinho faz sexo expíucito.
Por um longo tempo, enquanto as crianças riam, a professora ficou paralisada. Depois apagou a semente do quadro-negro e disse para todo mundo pegar lápis colorido e desenhar uma paisagem bem bonita.










quarta-feira, 16 de maio de 2012

Ferreira Gullar




O cão vê a flor
a flor é vermelha.

Anda para a flor
a flor é vermelha.

Passa pela flor
a flor é vermelha.

terça-feira, 1 de maio de 2012

Circuito fechado - Ricardo Ramos




Chinelos, vaso, descarga. Pia, sabonete. Água. Escova, creme dental, água, espuma, creme de barbear, pincel, espuma, gilete, água, cortina,sabonete, água fria, água quente, toalha. Creme para cabelo, pente. Cueca, camisa, abotoaduras, calça, meias, sapatos, gravata, paletó. Carteira, níqueis, documentos, caneta, chaves, lenço, relógio, maço de cigarros, caixa de fósforos. Jornal. Mesa, cadeiras, xícara e pires, prato, bule, talheres, guardanapo. Quadros. Pasta, carro. Cigarro, fósforo. Mesa e poltrona, cadeira, cinzeiro, papéis, telefone, agenda, copo com lápis, canetas, bloco de notas, espátula, pastas, caixas de entrada, de saída, vaso com plantas, quadros, papéis, cigarro, fósforo. Bandeja, xícara pequena. Cigarro e fósforo. Papéis, telefone, relatórios, cartas, notas, vales, cheques, memorandos, bilhetes, telefone, papéis. Relógio. Mesa, cavalete, cinzeiros, cadeiras, esboços de anúncios, fotos, cigarro, fósforo, bloco de papel, caneta, projetor de filmes, xícara, cartaz, lápis, cigarro, fósforo, quadro-negro, giz, papel. Mictório, pia, água. Táxi. Mesa, toalha, cadeiras, copos, pratos, talheres, garrafa, guardanapo, xícara. Maço de cigarros, caixa de fósforos. Escova de dentes, pasta, água. Mesa e poltrona, papéis, telefone, revista, copo de papel, cigarro, fósforo, telefone interno, externo, papéis, prova de anúncio, caneta e papel, relógio, papel, pasta, cigarro, fósforo, papel e caneta, telefone, caneta e papel, telefone, papéis, folheto, xícara, jornal, cigarro, fósforo, papel e caneta. Carro. Maço de cigarros, caixa de fósforos. Paletó, gravata. Poltrona, copo, revista. Quadros. Mesa, cadeiras, pratos, talheres, copos, guardanapos. Xícaras. Cigarro e fósforo. Poltrona, livro. Cigarro e fósforo. Televisor, poltrona. Cigarro e fósforo. Abotoaduras, camisa, sapatos, meias, calça, cueca, pijama, chinelos. Vaso, descarga, pia, água, escova, creme dental, espuma, água. Chinelos. Coberta, cama, travesseiro.


Novo homem!

  Grãos de areia interditaram meus olhos nesta quarta-feira de tarde, bastou umas calcinhas no varal tomarem banho de sol e ousarem ...