segunda-feira, 1 de abril de 2019

O desamparado quer falar



Final de tarde, cruzo por um casal de garotos que transporta um gato numa gaiola.
O bicho mia de um jeito estranho, e isso me angustia.
Aos gemidos do gato, o menino e a menina, embaraçados, não sabem o que fazer, enquanto as pessoas observam.
A garota, com uma voz que se apegou à infância, implora para que o gato se acalme.
A cena me leva a pensar no meu desamparo.
Também me sinto um felino que deixou de rosnar, livre, pelas florestas,
e hoje dá seus miados de torturado, acorrentado numa gaiola.
Meu desamparo se define como um sentimento de solidão misturado a uma tristeza quase silenciosa, como o zumbido no ouvido do ancião.
Constato que nenhuma companhia, pelo menos das pessoas que me rodeiam, aplacaria tal sentimento.
Até admiro essa garotada que anda em tribos, que se amparam uns nos outros, desempenham vários papéis,
parecendo sempre sintonizados, como se fossem irmãos mais velhos, pais, filhos, parentes, namorados.
Gostaria de ser assim.
Mas não me adaptaria.
Penso coisas fora do padrão.
Cada vez mais desconfio e tenho medo desses jovens que andam em bandos.
Sozinhos são umas bonecas.
Porém, na tribo se sentem autorizados a fazer merda, como incendiar índios e mendigos e andarilhos.
Outras coisas me desconcertam.
Estranho ouvir essa garotada com voz pré-adolescente falando de carros, preços e marcas,
de gêneros musicais e filmes e pseudo-teorias filosóficas e científicas,
com convicção e conhecimento a ponto de deixar orelhas vibrando.
Eles, inclusive, tudo sabem sobre o comportamento e preferências dos clientes.
O desamparado não consegue imaginar e aceitar bovinamente que a garotada vá se escorar no mesmo gosto e visão e convicção pro resto da vida.
Essa garotada, com sua rotina e discurso previsível,
se assemelha aos ratos de laboratório,
cobaias servindo a interesses maiores, que ainda bem que não sei dizer quais são.
Ouço esses jovens universitários, empolgados pelas mesas dos bares.
Muitos são advogados ou engenheiros ou veterinários.
O que têm em comum é que  espalham faceiramente todo o seu saber.
As leis que regem os contratos de casamento, regime de união e separação de bens, obrigações e valores de pensões alimentícias, etc.
Papagaios adoram atropelar e ultrapassar verbalmente os outros nas mesas dos bares.
 Esses bandos, em tese, apenas em tese, conhecem as dores de amores que perpassam as relações afetivas.
É possível um sujeito transcender, ir além de ter uma casa, um carro, uma família, um discurso padronizado,
e questionar a linearidade e previsibilidade disso tudo?
Deve haver uma salvação.
O engenheiro pode ser também vocalista de uma banda, pintar quadros ou escrever poemas, mesmo que sejam ruinzinhos.
Pode ser voluntário num projeto social do bairro, ou cantar no coral da igreja ou ser ativista pela causa dos animais.
Acho que às vezes precisamos clicar na opção "mute", dar um tempo e ter distanciamento das novelas e big brothers,
e captar alguns momentos mágicos que poderão acordar nossa vida.
Precisamos transcender a teoria, ir pra rua, sentir a dor do gato,
e também as vozes agudas ou graves, infantis ou adultas, das pessoas e bichos que nos rodeiam.

(B. B. Palermo)

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