Final
de tarde, cruzo por um casal de garotos que transporta um gato numa gaiola.
O
bicho mia de um jeito estranho, e isso me angustia.
Aos
gemidos do gato, o menino e a menina, embaraçados, não sabem o que fazer, enquanto
as pessoas observam.
A
garota, com uma voz que se apegou à infância, implora para que o gato se
acalme.
A
cena me leva a pensar no meu desamparo.
Também
me sinto um felino que deixou de rosnar, livre, pelas florestas,
e
hoje dá seus miados de torturado, acorrentado numa gaiola.
Meu
desamparo se define como um sentimento de solidão misturado a uma tristeza quase
silenciosa, como o zumbido no ouvido do ancião.
Constato
que nenhuma companhia, pelo menos das pessoas que me rodeiam, aplacaria tal
sentimento.
Até
admiro essa garotada que anda em tribos, que se amparam uns nos outros,
desempenham vários papéis,
parecendo
sempre sintonizados, como se fossem irmãos mais velhos, pais, filhos, parentes,
namorados.
Gostaria
de ser assim.
Mas
não me adaptaria.
Penso
coisas fora do padrão.
Cada
vez mais desconfio e tenho medo desses jovens que andam em bandos.
Sozinhos
são umas bonecas.
Porém,
na tribo se sentem autorizados a fazer merda, como incendiar índios e mendigos
e andarilhos.
Outras
coisas me desconcertam.
Estranho
ouvir essa garotada com voz pré-adolescente falando de carros, preços e marcas,
de
gêneros musicais e filmes e pseudo-teorias filosóficas e científicas,
com
convicção e conhecimento a ponto de deixar orelhas vibrando.
Eles,
inclusive, tudo sabem sobre o comportamento e preferências dos clientes.
O
desamparado não consegue imaginar e aceitar bovinamente que a garotada vá se
escorar no mesmo gosto e visão e convicção pro resto da vida.
Essa
garotada, com sua rotina e discurso previsível,
se
assemelha aos ratos de laboratório,
cobaias
servindo a interesses maiores, que ainda bem que não sei dizer quais são.
Ouço
esses jovens universitários, empolgados pelas mesas dos bares.
Muitos
são advogados ou engenheiros ou veterinários.
O
que têm em comum é que espalham faceiramente
todo o seu saber.
As
leis que regem os contratos de casamento, regime de união e separação de bens,
obrigações e valores de pensões alimentícias, etc.
Papagaios
adoram atropelar e ultrapassar verbalmente os outros nas mesas dos bares.
Esses bandos, em tese, apenas em tese,
conhecem as dores de amores que perpassam as relações afetivas.
É
possível um sujeito transcender, ir além de ter uma casa, um carro, uma
família, um discurso padronizado,
e
questionar a linearidade e previsibilidade disso tudo?
Deve
haver uma salvação.
O
engenheiro pode ser também vocalista de uma banda, pintar quadros ou escrever
poemas, mesmo que sejam ruinzinhos.
Pode
ser voluntário num projeto social do bairro, ou cantar no coral da igreja ou
ser ativista pela causa dos animais.
Acho
que às vezes precisamos clicar na opção "mute", dar um tempo e ter
distanciamento das novelas e big brothers,
e
captar alguns momentos mágicos que poderão acordar nossa vida.
Precisamos
transcender a teoria, ir pra rua, sentir a dor do gato,
e
também as vozes agudas ou graves, infantis ou adultas, das pessoas e bichos que
nos rodeiam.