terça-feira, 28 de maio de 2019

Monstros



Dez anos depois
batem à porta.
Desejavam resgatar
o seu lugar
no meu álbum
de lembranças.

Dedo em riste 
falei de regras e deveres
que sustentam os pilares
da boa convivência.
Queria convencê-los
de que o amor prescreveu.

(o tempo e Ela
não passam 
de monstros
que me dizem frouxo
enquanto riem
da minha cara!)

Depois que eles se foram
deixei as portas
trancadas.
Sei que alarmes
e cadeados
e câmeras
e sensores
me guardam...
e aguardam
gestos definitivos...

            Hoje quero aprender
a mastigar
essas verdades
                        amargas
e torcer para que as palavras
          que rabisco no diário
  deem as coordenadas.

(Tiradas do Teco, o poeta sonhador)

Festa no brejo - Carlos Drummond de Andrade


A saparia desesperada
coaxa coaxa coaxa.
O brejo vibra que nem caixa
de guerra. Os sapos estão danados.
A lua gorda apareceu
e clareou o brejo todo.
Até à lua sobe o coro
da saparia desesperada.
A saparia toda de Minas
coaxa no brejo humilde.
Hoje tem festa no brejo! 

sexta-feira, 24 de maio de 2019

Narrativas cansadas


Os movimentos
da dentadura postiça
na boca do velhinho
sentado no bar
sinalizam algo sobre o tempo.
Depois que a companheira morreu,
ele vence o rosário do dia
de bar em bar.
paga um trago pra quem emprestar
ouvidos
às suas histórias.
Lembrei de meu amigo que enfartou
e nada publicou
de centenas de páginas escritas.
Ele quer e não quer
espalhar pelo mundo
seus contos e
romances e poemas.
Quando for ao psiquiatra
desempenharei papel semelhante
ao do velhinho,
entupindo ouvidos alheios,
devidamente pagos,
com minhas narrativas cansadas.
Penso nos objetivos do velhinho,
ao peregrinar pelos bares,
implorando audição.
Penso nos objetivos do meu amigo,
que insiste em escrever e deixar algo,
agora que o tempo respira 
por aparelhos.
Penso nos meus objetivos.
Onde tudo isso vai dar?
Otimistas creem em nossa transformação.
Pessimistas dizem que essa rotina
sinaliza
que tudo está perdido.
Eis a razão de toda a náusea.
Nossas buscas são confusas
parece que uma força estranha nos trapaceia,
e o tempo dá sinais de que encheu o saco
de nossas paranoias.
É utópico acreditar em nossa transformação.
A mudança requer esforço redobrado,
e o fôlego já era.

(B. B. Palermo)



quarta-feira, 22 de maio de 2019

Desejo de abraço - Roseana Murray


Desejo de abraço
nunca passa.
Abraço é o nó mais delicado
que há.
Um braço aqui e outro lá
e o coração se derrete,
o corpo afunda na mais
gigantesca felicidade.


(Do livro Poços dos desejos)

Traças de regime - Sergio Capparelli



As traças gostam de suspense:
Lêem com cuidado
E de olhos fechados.
 Se estão com pressa,
Comem sanduíches de escritores importantes,
Cecília Meireles, Lygia Bojunga,
Hesíodo e os deuses gregos.
 Elas dão conselhos:
“as histórias lacrimejantes são melhores
Porque facilitam a digestão”.
 E estamos conversados!
 Traças iletradas são sem cerimônia:
Comem heróis, heroínas, enredos,
E no fim devoram o autor.
 Ah, as traças, como evitá-las?
Comem Mario Quintana, devoram os dois
Verissimos (Pai e filho)
E, de sobremesa, encomendam escritores bem
Românticos.
 Olha, lá vai uma arrotando Lobato.

(Do livro 111 poemas para crianças).

O capeta é fodástico



O frio se aproxima 
e o capeta anda nervoso
porque estou há dias longe do copo.

Alfineta meu querer,
oferece taças de vinho.

Serão longos dias de tentação
nesse final de maio.

Astros dizem que oscilarei entre os pólos
da razão e do desejo,
jogado de um lado para outro
como uma rolha de cortiça em alto mar.

O momento crucial
que baterá o martelo,
a belíssima dama que vai dar o ar de sua presença,
chama-se "o motivo".

Motivo para obedecer o capeta
ou permanecer abstêmio.

Será meu ENEM.
Será meu vestibular.

Me conheço.
Sempre retorno
aos velhos livros e roteiros.

O capeta é fodástico.

(B. B. Palermo)

terça-feira, 21 de maio de 2019

O apanhador no campo de centeio


“Seja lá como for, fico imaginando uma porção de garotinhos brincando de alguma coisa num baita campo de centeio e tudo. Milhares de garotinhos, e ninguém por perto – quer dizer, ninguém grande – a não ser eu. E eu fico na beirada de um precipício maluco. Sabe o quê que eu tenho de fazer? Tenho que agarrar todo mundo que vai cair no abismo. Quer dizer, se um deles começar a correr sem olhar onde está indo, eu tenho que aparecer de algum canto e agarrar o garoto. Só isso que eu ia fazer o dia todo. Ia ser só o apanhador no campo de centeio e tudo. Sei que é maluquice, mas é a única coisa que eu queria fazer. Sei que é maluquice.”

– J. D. Salinger, do livro “O apanhador no campo de centeio”. [tradução Álvaro Alencar, Antônio Rocha e Jório Dauster]. 18ª ed., Rio de Janeiro: Editora do Autor, 2012.

segunda-feira, 20 de maio de 2019

Se tivermos sorte, quem sabe amanhã



Se você quer ser um sujeito inspirador,
saia já da vitrine ou ringue das redes sociais,
desça os livros da estante,
de preferência os que ampliam
tua sensibilidade
e desejo de fraternidade.
Pessoas comuns não inspiram ninguém.
Pessoas comuns vociferam sua opinião
protegidas pela tela do computador ou smartphone,
não ouvem nem são ouvidas.
Pessoas comuns pouco têm a dizer.
Você deve dar exemplos simples, reais,
de como tornar o mundo melhor.
Mas se você não consegue se desprender
do cercadinho e da coleira,
vamos torcer para que amanhã
nasçam seres melhores.
Sim, claro, isso se tivermos sorte.

(B. B. Palermo)


quinta-feira, 16 de maio de 2019

Solidariedade a esses irmãos



Solidariedade a esses irmãos
e seus turnos semanais
e uniformes e horários e relógio ponto
e suas casinhas populares
e seus planos de aposentadoria e de viagens
e seus sonhos de um dia dormir mais tarde
e levantar mais tarde e maldizer
e rir da cara mal-humorada do chefe.

Compaixão às suas longas prestações da casa própria
e crediários vários desde eletrodomésticos
até a ração do pet
e tudo o mais que todo mundo compra porque é fashion
smartphones e roupas e mochilas
e sacolas
descoladas
e abandonadas
num canto boa parte do tempo.

Piedade às suas línguas 
amaldiçoando
os iguais.

Alegria 
alegria por estar vivo
e pensar nisso tudo
e me colocar do lado de fora
e espiar pela fresta da janela
e dar graças por não ser tão influenciável
pelos outros e ao mesmo tempo
ser refém de uma angústia
pelas coisas serem assim
e tantas sementes em potência
não germinarem
e foguetes não decolarem
e talentos
não florescerem
e não darem frutos
e a nobre deusa CRIAÇÃO
nunca vir ao mundo.

Silencio, medito,
logo me aquieto,
quem sou eu para julgar,
melhor é desinflar o EGO
e me colocar no lugar dos outros
e, claro,
depositar
mais e mais fichas na esperança.

Reconforta por instantes
saber que tudo se renova
e nasce e cresce e morre
e viemos do pó e pra lá
regressaremos
e até acho engraçado receber no portão de casa
o bêbado e repassar-lhe uns trocados
para comprar a sagrada cachaça
e mais engraçada ainda é sua cara chorosa
porque seu amigo bêbado partiu dessa
e ele sabe que vai morrer
e que a morte vem depressa
e vai levá-lo ao lugar de origem
ao pó e ao esquecimento
mas quem conduz o jogo 
é a necessidade
de se embriagar.

Bem-aventurados os que sofrem
os que fazem questão de sofrer
os que acreditam em algo superior
ou inferior
os que são indiferentes
a respeito do começo 
e do fim.

Confesso minha puta inveja
aos que sabem o que querem
aos que se agarram numa coisa
que amenize sua insignificância 
e dor.

(B. B. Palermo)


quinta-feira, 9 de maio de 2019

Obrigado por tudo



Luto.
O bar do amigo faliu.
Amanhã vou auxiliar no balanço,
prestarei contas de minhas ausências
e proporei a festa de despedida.
Esperança.
Segunda-feira vou arranjar trabalho,
labutarei pra esquecer que o vizinho
não vai suportar por longos dias a doença.
Médicos dizem que é questão de tempo.
Sempre é questão de tempo.
E idade.
Luto.
Contra o tempo.
A favor do tempo.
Preciso aprender a dançar.
Obrigado.
Aos amigos que me suportam,
ridículo, inspirado, falso, bêbado,
usando largamente a mesa do bar
que se esparrama e esbalda na calçada
sem dar a mínima aos que passam.
Obrigado.
Por fazerem de conta que ouvem minhas falsas verdades,
minha alegria fingida.
Obrigado.
Certeza.
Ainda serei o cestinha desse jogo de escrever ****** e 
amassar a folha e acertar a boca larga e
insana dessa lixeira hostil.
Obrigado.

(B. B. Palermo)

terça-feira, 7 de maio de 2019

Se eu morresse amanhã



Por aqui os cães são os donos da lua.
Por aqui os carros apodrecem nas ruas.
Maria diz que os "Noturnos" do Chopin a deixam triste.
Beiço diz que é melhor dizer palavrão do que partir pra agressão.
Por aqui aprender inglês é difícil por conta da minha preguiça.
Quando escrevo não sei se o compasso é o das asas do passarinho
ou de suas patas.
Se meu país fosse perfeito
e se as pessoas fossem perfeitas
e se eu morresse amanhã
ninguém diria "que pena".

(B. B. Palermo)

domingo, 5 de maio de 2019

Somos feitos de gesso



Imagino demais.
É que estou à cata de personagens.
Não me importo que alguns deles ganhem vida 
e me pressionem
para que os deixe numa boa posição,
com destaque nas vitrines que se chamam 
redes sociais.
Mas o imaginário não escapa da verdade 
de que somos uns comuns,
uma espiga de trigo 
no meio de um campo de trigo,
e não somos geniais como Van Gogh
para captar o inusitado 
ou a essência dessa paisagem,
na cor e luminosidade certa, 
no exato instante
sem o qual tudo seria miseravelmente comum.
Imagino que somos criaturas de gesso, 
desprovidos da essência,
que chamamos "sentimento".
E como fatos se repetem, 
tornam-se banais,
concluo que o carinha que foi encontrado 
dependurado numa corda
- num espaço e tempo só Dele -,
e que não suportou a dureza da existência,
Ele também só pode ser de gesso.

(B. B. Palermo)

O PATIFE tá enrolando de novo

Quando fui acertar a conta no bar, pendurada nos últimos dias, o bolicheiro não encontrou, no caderno, o meu nome. Ao repassar a longa l...