sexta-feira, 17 de abril de 2020

Uma folha cheia de beijos com cinquenta tons de batom



Eu nunca sei se o cabelo dela está loiro ou castanho. Deve ser porque só tenho olhos pra aquele rabo sensacional. Ou porque meu tesão quer que ela seja loira. Sim, tem a ver também com minha condição etílica, mas isso é meu estado quase natural.
Demorei pra sacar que dentro dela habitam dois dogs. Isso, duas cadelas em conflito permanente. Uma shih tzu dócil e atenciosa e carinhosa, e uma pit bull indisciplinada e enlouquecida. Esses dois eus me obrigavam a planejar cada ação. E as suas várias explosões me indicavam o caminho.
É claro que eu adorava brincar com a dócil e carinhosa, mas ao mesmo tempo sentia que faltava algo, e isso deve ter relação com a busca por adrenalina. Assim: às vezes tinha vontade de aprisionar a pit bull num canil, mas aí ela me fitava com aqueles olhos. Primeiro chispando, e depois, aos poucos, serenando, e essa cena fazia a vara retesar no meio das pernas.
De qualquer maneira, ela era enigmática. Em muitas ocasiões rolava uma dificuldade pra decifrar suas mensagens e áudios que me enviava pelo Whats. Dizia: "Eu tenho o coração fechado". Isso me obrigava a demorados exercícios reflexivos, que demandavam, no mínimo, uma garrafa de vinho. Deus Baco me botava faceiro e então eu ligava pra ela e chutava opinião e ela chutava de volta, e estava tudo certo. Nos despedíamos com um "já estou com saudades" e "amanhã eu te ligo, paixão".
Gente, acreditando que agora estava no radar do amor verdadeiro, esses dias eu fui pra cama com dois litros de vinho na pança, duelando com a insônia e caindo na real: nosso papo foi muito barulho, como um carro de som anunciando uma boa nova, mas com pouca sinceridade. Jesus! Como chegamos a esse ponto?
Enquanto via na Tininha dois animaizinhos conflituosos, ela via no Cadelão um desajeitado e confiante mané perdigueiro. Isso, um excelente farejador de botecos onde jorrava uísque de segunda e vinho e cerveja. Mas não pensem que suas críticas faziam cócegas na minha autoestima. 
Como é mais cômodo falar dos outros do que de nós mesmos, adiantarei pra vocês uma coisinha: saquei que a guria se metamorfoseava, só pode, pela influência do pó. Ela sempre encontrava motivos pra se ajoelhar nas carreiras. Antes de uma prova pra obter carteira de motorista. Prova final de uma disciplina na universidade. Antes de ir pra balada. Na balada. No final da balada, ao retornar para casa, estando alegre ou frustrada.
Se estava em casa bebendo, esperando ela voltar de uma dessas festas, partíamos pra roleta russa, como mencionei na história anterior. Rolava uma discussão, eu alfinetava seus pontos fracos, Tininha incendiava e logo nos agarrávamos e dávamos aquela trepada inesquecível. Ao gozar, ela enfiava as unhas nas minhas costas e ombros e eu corria pro banheiro e o espelho mostrava o espetáculo do sangue escorrendo, diante de meus olhos aquelas unhas compridas e coloridas e bem feitas penetravam meu rosto feito de barro, aí o tesão maluco dançava, e o cheiro do sangue misturado ao seu cheiro de cavala galopavam. Corria pra cama onde ela me esperava, e logo estávamos brigando pela ponta no último páreo, e eu era o jóquei e dava uns tapas cada vez mais fortes nas suas ancas e garantíamos o primeiro lugar no final.

Já disse, uísque vagabundo altera meu estado de consciência. Devia ficar só na cerveja e um vinhozinho de vez em quando. Ontem a guria se comportou feito garotinha, isso, uma shih tzu toda afetuosa se enroscando no Cadelão. Imaginem, me presenteou uma folha cheia de seus beijos com cinquenta tons de batom. Não me contive e disse "meu bem, às vezes parece que tu é embalada por impulsos juvenis". Tininha se retesou, me lançou aquele olhar e eu pensei "hoje não vai ser arremesso de prato, vai ser de ventilador". Então o anjinho direcionou seu olhar para a mesa e apanhou umas coisas que eu tinha rabiscado. Decerto pensou que eu anotara umas ideias geniais. Amassou, calma e metodicamente, como se fosse cartesiana, e arremessou pra cesta do lixo. Porra! Foi um arremesso de três pontos! Apanhei a carteira e coloquei no bolso da calça, agarrei suas mãos, nossos corpos se roçaram, nossas energias vibraram, senti um tesão beliscando, era algo mais divino do que mundano, sussurrei no seu ouvido "eu também te amo"... e nos dirigimos, cambaleantes e esperançosos, para o bar do maneta.

(B. B. Palermo)


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Quando fui acertar a conta no bar, pendurada nos últimos dias, o bolicheiro não encontrou, no caderno, o meu nome. Ao repassar a longa l...