quarta-feira, 30 de janeiro de 2019

Um dia qualquer no final de janeiro

Um calor persistente
e a TV falava sem parar da barragem que rompeu em Minas Gerais.
Disseram-lhe que vivemos novos tempos,
que devia ter uma sensibilidade menos rasa,
aprender a se colocar no lugar do outro.
A palavra demorou para chegar, mas chegou...
era "empatia".
Pensava nessas coisas altamente filosóficas
e esqueceu os quatro ovos que ferviam na panela,
sobre o fogão.
Depois de meia hora na fervura,
eles ficaram emborrachados.
O aparelho celular o devolveu à realidade.
Era uma mensagem pelo Whatsapp, do Jurandir.
O cretino inventava uma desculpa qualquer
para o fato de não ter trazido a puta
que havia prometido na noite anterior.

(B. B. Palermo)

segunda-feira, 28 de janeiro de 2019

Conflito urbano



De um motorista de ônibus urbano, 
ao ser fechado por uma lindeza da society, 
que se distraiu no celular: 
- Mas vai tirar uma selfie em cima de um poste!

 (B. B. Palermo)

segunda-feira, 21 de janeiro de 2019

Ela parece com todo mundo



Aquela dos peitos siliconados mais perfeitos da cidade,
e que brilha feliz no face e instagram,
cruzou por mim na rua, sem maquiagem e sorriso e pose de encantadora,
e isso me decepcionou e então eu quis me colocar no seu lugar,
e passei a odiar essa gente que morre de inveja por ela receber centenas de likes 
e brilhar tanto e acima de todas.
Vocês devem concordar que a competição está cada vez mais acirrada no espaço virtual.
 Ainda bem que algumas não levam muito a sério.
Ela é normal como todos nós.
Ela está meio perdida, como meio mundo.
Ela acerta e erra como qualquer humano.
Ela não suporta ser acordada pelo despertador,
e ter o melhor sono arrebentado no meio.
Ela só vai a todas as festinhas e também se empanturra de doces e salgados
pra não ser vista como chata.
Mesmo contrariada, ela dá likes e elogia posts ousados de amigas que ela sabe que são carentes,
apenas pra retribuir as gentilezas.
Vocês devem saber que as fotos com gatos e cachorros é uma recompensa,
depois de se virar a semana toda com limpeza e carnês e idas e vindas ao pet shop.
Ela cumpre as obrigações com filhos e sobrinhos e afilhados
e lava a louça e coloca roupas na máquina
e segue grupos no watts que compartilham política e gastronomia 
e moda e caçadores de notícias,
de preferência de tragédias de pessoas que todos conhecem
e que se pode ou deve compartilhar e comentar "Deus sabe o que faz",
"Deus vai cuidar disso" e "Nada podemos fazer diante do destino".

Sim, Ela parece com todo mundo.

(B. B. Palermo)

domingo, 20 de janeiro de 2019

Essa vidinha sem graça

Aguardo a noite chegar,
como uma criança que teme voltar pra casa
e sofrer um castigo por causa de uma travessura qualquer.
Assim, estou livre de esbarrar num desses chatos,
boa parte gente conhecida, que leva uma vida reta.
A vida perfeita desses caras me deixa com dificuldades
pra compreender o que realmente pensam.
Amam mais ou fingem amar,
disfarçando com gentilezas seu ódio aos outros?
Gostam do que fazem?
Curtem a rotina diária de canalizar boa parte das energias para manter seu status
e serem bem-vindos no circo social?
Às vezes tenho a impressão de que, dado o atual estado de coisas,
o número de suicídios anda meio baixo.
Mas não se preocupem.
Estou sendo simplório.
Boa parte das coisas que vejo se dá de maneira estrábica.
Tenho feito exercícios pra combater a miopia.
Não sou aluno disciplinado.
Muitas vezes rolo na cama, ao acordar,
sem encontrar qualquer motivação pra cumprir meus turnos
de guarda nesse canil.
Não tenho certeza se sou guarda que observa de fora,
ou se faço parte da alcateia feroz.
O que compensa é o tempo pra fazer algumas leituras.
Por exemplo, li esses dias o livro "Relato de um náufrago",
de Gabriel García Márquez.
Enquanto eu fico aqui contando pra todo mundo minha vidinha sem graça,
o personagem do livro sobreviveu durante dez dias a um naufrágio,
sem água e comida, num pequeno bote em alto mar.
Esse cara sim levou a vida no limite
e herdou boas histórias pra contar.
E, constato, boas histórias poucos vivem.
Os mais velhos replicam o mesmo filme
"no meu tempo"... "no meu tempo era assim...".
Coitados.
Não percebem que a plateia escasseou.
Seu cinema e roteiro estão falidos.

(B. B. Palermo)

quarta-feira, 16 de janeiro de 2019

O amigo de um amigo me falou



A mulherzinha do amigo de meu amigo tem um grande desejo,
e conta pra todo mundo.
Quer colocar silicone nos peitos.
Já fez um preenchimento no bumbum, e está fazendo o maior sucesso.
Ela e o marido e a filha pré-adolescente sabem que a mãe é a bússola.
Diante da esposa, nada de bate-boca, nada de disputar território.
A função do amigo de meu amigo é dizer "sim" e ser o provedor.
Óbvio que há válvulas de escape, para arejar a relação.
Ambos dão suas escapadas.
O sujeito sonha ser palestrante famoso e também editar muitos livros,
alguém tão bem-sucedido como Mario Sergio Cortela.
Foi o que ele me falou, esses dias, no bar.
Então eu disse que sonhava ser um stand up famoso e polêmico,
algo como um George Carlin.
O problema é que, enquanto eu sugava cervejas e cervejas,
ele bebericava coca-cola.
Sua imaginação não conseguiu me acompanhar no delírio.

(B. B. Palermo)

segunda-feira, 7 de janeiro de 2019

Manchete


No amor tudo é imposto,
multas, retaliações, taxas, 
cortes, tachações...
Amor infantil ou adulto,
todos pagam seu tributo.
E tem coisa bem pior:
aquele amor que é só manchete,
má notícia e muito susto!

(Carlos Silveira)

quinta-feira, 3 de janeiro de 2019

Amor, mais um jogo de palavras?



Para essas criaturas quase divinas,
bem-sucedidas em tudo,
o amor é perfeito,
pouco importa se muitas vezes não tenha fogo e paixão e corpo.
Cruzei diversas vezes por esse estranho cidadão.
A cada dia com seus disfarces e máscaras
e promessas e desculpas.
Ouço as criaturas cantarem em verso e prosa seu amor impossível,
tramado por um jogo de palavras, retas e redondas e quadradas,
claras ou obscuras, estressadas ou surdas, solitárias ou bem-resolvidas,
bem-mastigadas ou mal-comidas.
Cantam o amor jogando para o alto tais jogos de palavras,
enquanto as últimas sempre debocham de seus sonhos idealizados de amor.

(B. B. Palermo)

quarta-feira, 2 de janeiro de 2019

Donas do mundo



Contemplo essas garotas poderosas que passam pela rua.
Olham pro lado, olham pra cima, olham pra baixo, menos os meus olhos.
Donas do mundo, eu poderia me dar por vencido.
Assim que elas passam me viro e mapeio quadris e bumbuns,
paraísos que os panos não mostram.
- E daí? - Você me pergunta.
- Daí que foi um jeito que eu inventei pra suportar a indiferença delas.

(B. B. Palermo)

terça-feira, 1 de janeiro de 2019

Passarinho engaiolado - Rubem Alves


Dentro de uma linda gaiola vivia um passarinho. De sua vida o mínimo que se poderia dizer era que era segura e tranquila como seguras e tranquilas são as vidas das pessoas bem casadas e dos funcionários públicos.

Era monótona, é verdade. Mas a monotonia é o preço que se paga pela segurança. Não há muito o que fazer dentro dos limites de uma gaiola, seja ela feita com arames de ferro ou de deveres. Os sonhos aparecem, mas logo morrem, por não haver espaço para baterem suas asas. Só fica um grande buraco na alma, que cada um enche como pode. Assim, restava ao passarinho ficar pulando de um poleiro para outro, comer, beber, dormir e cantar. O seu canto era o aluguel que pagava ao seu dono pelo gozo da segurança da gaiola.

Bem se lembrava do dia em que, enganado pelo alpiste, entrou no alçapão. Alçapões são assim; têm sempre uma coisa apetitosa dentro. Do alçapão para a gaiola o caminho foi curto, através da Ponte dos Suspiros.

Há aquele famoso poema do Guerra Junqueiro, sobre o melro, o pássaro das risadas de cristal. O velho cura, rancoroso, encontrara seu ninho e prendera os seus filhotes na gaiola. A mãe, desesperada com o destino dos filhos, e incapaz de abrir a portinha de ferro, lhes traz no bico um galho de veneno. "Meus filhos, a existência é boa só quando é livre. A liberdade é a lei. Prende-se a asa, mas a alma voa… Ó filhos, voemos pelo azul!… Comei!"

É certo que a mãe do passarinho nunca lera o poeta, pois o que ela disse ao seu filho foi: "Finalmente minhas orações foram respondidas. Você está seguro, pelo resto de sua vida. Nada há a temer. Não é preciso se preocupar. Acostuma-se. Cante bonito. Agora posso morrer em paz!"

Do seu pequeno espaço, ele olhava os outros passarinhos. Os bem-te-vis, atrás dos bichinhos; os sanhaços, entrando mamões adentro; os beija-flores, com seu mágico bater de asas; os urubus, nos seus voos tranquilos da fundura do céu; as rolinhas, arrulhando, fazendo amor; as pombas, voando como flechas. Ah! Os prudentes conselhos maternos não o tranquilizavam Ele queria ser como os outros pássaros, livres… Ah! Se aquela maldita porta se abrisse.

Pois não é que, para surpresa sua, um dia o seu dono a esqueceu aberta? Ele poderia agora realizar todos os seus sonhos. Estava livre, livre, livre!

Saiu. Voou para o galho mais próximo. Olhou para baixo. Puxa! Como era alto. Sentiu um pouco de tontura. Estava acostumado com o chão da gaiola, bem pertinho. Teve medo de cair. Agachou-se no galho, para ter mais firmeza. Viu uma outra árvore mais distante. Teve vontade de ir até lá. Perguntou-se se suas asas aguentariam. Elas não estavam acostumadas.

O melhor seria não abusar, logo no primeiro dia. Agarrou-se mais firmemente ainda. Neste momento, um insetinho passou voando bem na frente do seu bico. Chegara a hora. Esticou o pescoço o mais que pôde, mas o insetinho não era bobo. Sumiu mostrando a língua.

— Ei, você! – era uma passarinha. – Vamos voar juntos até o quintal do vizinho. Há uma linda pimenteira, carregadinha de pimentas vermelhas. Deliciosas. Apenas é preciso prestar atenção no gato, que anda por lá… Só o nome gato lhe deu um arrepio. Disse para a passarinha que não gostava de pimentas. A passarinha procurou outro companheiro. Ele preferiu ficar com fome. Chegou o fim da tarde e, com ele a tristeza do crepúsculo. A noite se aproximava. Onde iria dormir? Lembrou-se do prego amigo, na parede da cozinha, onde a sua gaiola ficava dependurada. Teve saudades dele. Teria de dormir num galho de árvore, sem proteção. Gatos sobem em árvores? Eles enxergam no escuro? E era preciso não esquecer os gambás. E tinha de pensar nos meninos com seus estilingues, no dia seguinte.

Tremeu de medo. Nunca imaginara que a liberdade fosse tão complicada. Somente podem gozar a liberdade aqueles que têm coragem. Ele não tinha. Teve saudades da gaiola. Voltou. Felizmente a porta ainda estava aberta.

Neste momento, chegou o dono. Vendo a porta aberta disse:

— Passarinho bobo. Não viu que a porta estava aberta. Deve estar meio cego. Pois passarinho de verdade não fica em gaiola. Gosta mesmo é de voar…

O PATIFE tá enrolando de novo

Quando fui acertar a conta no bar, pendurada nos últimos dias, o bolicheiro não encontrou, no caderno, o meu nome. Ao repassar a longa l...