segunda-feira, 24 de agosto de 2020

Naturalmente



E assim passaram-se os anos.
O vira-lata que me xingava no bar latiu, latiu, 
mas não mordeu ninguém,
as virgens já eram virgens,
os carecas ficaram mais carecas,
as putas ficaram mais espertas
e menos atraentes,
não choveu no meu jardim,
meu instrumento sexual continua
medianozinho,
os bocós continuam bocós.
E, naturalmente, Dikowski morreu.
E caiu no esquecimento.

(B. B. Palermo)


domingo, 23 de agosto de 2020

Pergunte, pergunte


Pergunte ao cara que toda noite deseja sonhar com números para o jogo o que ele sonha para o futuro.
Pergunte à senhora aposentada se ela percebeu que seus olhos revelam um brilho novo que reflete um desejo de mudança.
Pergunte ao homem com dor quase imperceptível mas constante se ele já pensou em estourar seus miolos.
Pergunte ao mentiroso se ele já matou por amor.
Pergunte à garota adolescente se ela já teve vergonha do que sonhou numa noite qualquer.
Pergunte ao sujeito que lê nossa mente qual será nosso futuro.
Pergunte ao servente de pedreiro que bebe umas contigo no bar se ele já teve vontade de fugir com uma garota de programa.
Pergunte ao alcoólatra que parou de beber ao aceitar a palavra sagrada e o conforto da igreja se ele realmente acredita na redenção.
Pergunte à secretária do médico se ela já não teve vontade de ler a mão de uma cigana.
Pergunte ao antropólogo se ele já não teve a sensação de ser um primata descendo das árvores.
Pergunte ao catador de lixo que canta naquele vozeirão se ele não sonhou ser narrador de futebol.
Pergunte ao poeta de planos mirabolantes se ele já tentou invadir o castelo e salvar a princesa.
Pergunte ao historiador se ele participou da construção das pirâmides do Egito.
Pergunte ao grupo de garotas e garotos secundaristas quem faz ***** quando se apaixona.
Pergunte aos amigos quem não teve um tio simpático e meio contador de histórias e também cachaceiro, e que era o mais detestado e criticado pelos familiares.
Pergunte à caixa do supermercado por que o segurança tem cara de preso.
Pergunte ao segurança do supermercado por que a caixa tem gestos e movimentos de robô.
Pergunte ao esquizofrênico por que o psiquiatra tem cara de louco.
Pergunte ao assalariado se ele quer sobreviver ou se quer viver.
Pergunte ao Cadelão se alguma vez ele se levou a sério.
Pergunte também se ele alguma vez na vida fez uma pergunta sincera e até filosófica.
Pergunte também o que ele vai fazer quando amadurecer.

(B. B. Palermo)



quinta-feira, 13 de agosto de 2020

O nascimento dessas vênus

 

Ela está aflorando.

Vi seu ensaio fotográfico no Facebook.

Como apresentação, uma legenda com poucas linhas,

versos de um poema com mensagem pra cima:

"Ela está renascendo", "só ela sabe o poder que tem".

Tudo a ver com o final do inverno,

folhas secando, caindo e outras brotando,

enfim, a vida se renovando.

 

Achei lindo saber que a garota está se espaçando.

Tudo a ver com mudança.

Tudo a ver com novas perspectivas.

Tais novidades deixam-me na fila de espera

por mais e mais novidades.

 

Deve estar mandando recado para alguém.

Talvez um amor frustrado, algum laço rompido que ainda dói.

Um ensaio para mais voos com novas plumagens.

Ou quis alfinetar possíveis concorrentes,

ou despertar a ira e a inveja de umas linguarudas, suas conhecidas.

 

Deixei-me afetar por tão belas fotos.

Fui me enredando.

Eu, poeta de boteco, carrego debaixo das asas

não apenas o odor dos suores etílicos,

mas também o odor perfumado da sensibilidade,

e alguns velhos livros que mostro aos amigos.

 

Vocês podem perguntar, aliás, eu também me pergunto:

até quando permanecerei enredado?  

Até minha cervical me incomodar, até minha nuca latejar.

Espero ansiosamente o nascimento dessas vênus

saltando das molduras e incendiando meus olhos.

Aguardo entre um gole e outro,

entre as lembranças das poucas e boas performances sexuais,

entre os inchaços do ventre e os gemidos do fígado.

 

Súbitos espantos.

Seu álbum de fotos

me remete aos álbuns da infância,

encaixotados em algum lugar.

Eram imagens de anjos repletos de luz.

Hoje o zoom persegue bumbuns,

glúteos e tanquinhos musculosos.

É o que todos esperam.

É o corpo falando 

e nós obedecendo.

 

Obrigado, garota, teu álbum na internet

despertou boas lembranças

que aos poucos foram se avivando.

Eis o amor dessas lindas.

Amor das flores humanas

(na falta de um nome mais resplandecente),

e isso justifica tantas poses estampando o sensual nas vitrines.

 

Pela minha torta vida reta,

eis-me aqui, te levando.

Olhos vidrados, abandonei minhas leituras preferidas

de poemas e contos e romances,

e corri até a academia mais próxima.

Ficarei no ponto.

E aí ninguém me segura.

Grudarei nos teus cabelos, como chiclete,

sem medo de despencar no abismo

do abandono.

 

Que a beleza da garota vença o tempo,

seja outra Mona Lisa me sorrindo da moldura,

pendurada numa parede de um saguão qualquer.

Que ela fique eternamente bela e jovem,

e que eu permaneça alegre

e com poucos e bons amigos no bar.

E fique o mar sempre calmo,

e que a raiva, o ciúme e a inveja

sejam descartadas

como se fossem lixo eletrônico.

 

(B. B. Palermo)

 


terça-feira, 11 de agosto de 2020

No mesmo barco

 

Não recue, Cadelão, não receie,

ricocheteie nos paralelepípedos,

mamãezinha te observa do seu lugar,

sem julgar,

agora ela é puro amor

e corre pra te salvar

e lamber tuas feridas.

 

Ela não dá bola

pro teu depósito

de dores simuladas,

ela é exclusiva,

esteio imaginário,

ela vai benzer teus sonhos

abandonados,

um entulho de cinzas,

que se resume na tese,

antítese e síntese

dos teus fantasmas

adormecidos.

 

Muito colo em algum lugar,

muito sim, muito não,

mamãezinha é o sereno amor

de tua vida.

 

O que rolou nas repetidas jornadas,

pra que esse amor sem conta

descambasse numa infinita falta de amor?

O que rolou, criatura infeliz,

que te impediu ser

o amante ideal?

 

Agora mamãe não liga

pro inferno e o pecado,

agora todos são bons,

e estão livres de culpas,

embora tu esperneie

e pense e repense,

e não chegue a nenhum lugar.

De nada serve qualquer filosofia,

de nada serve qualquer religião,

apenas somos autênticos

quando o medo do fim vier,

de nada serve julgar todo mundo

com a bíblia de teus fantasmas,

não causará qualquer ruído

gritar teu verbo na escuridão.

 

Tu acredita num segundo nascimento,

razão desse que agora finda,

tu acredita que vai manusear

tua linguagem

inclusive

no silêncio eterno.

 

Agora descemos do sótão,

agora subimos do porão,

ninguém é bonito ou feio,

somos apenas entulhos,

coisas inúteis

pra jogar fora.

 

Tu não precisa se preocupar

se não aprendeu latim ou grego,

inglês, francês ou alemão,

a presença de mamãezinha

petrifica e silencia

todas as línguas.

 

Não sei, Cadelão, como será tua eternidade silenciosa,

mas dizem que estás fora de rota,

excluído da universal rotação.

 

Estamos todos no mesmo barco,

resta-nos navegar e agarrar

o momento.

Até a eternidade.

 

Até o esquecimento.

 

(B. B. Palermo)

 

Balada do amor através das idades - Drummond

 Eu te gosto, você me gosta

desde tempos imemoriais.

Eu era grego, você troiana,
troiana mas não Helena.
Saí do cavalo de pau
para matar seu irmão.
Matei, brigamos, morremos.

Virei soldado romano,
perseguidor de cristãos. 


Na porta da catacumba
encontrei-te novamente.
Mas quando vi você nua
caída na areia do circo
e o leão que vinha vindo,
dei um pulo desesperado
e o leão comeu nós dois.

Depois fui pirata mouro,
flagelo da Tripolitânia.
Toquei fogo na fragata
onde você se escondia
da fúria de meu bergantim.
Mas quando ia te pegar
e te fazer minha escrava,
você fez o sinal-da-cruz
e rasgou o peito a punhal...
Me suicidei também.

Depois (tempos mais amenos)
fui cortesão de Versailles,
espirituoso e devasso.
Você cismou de ser freira...
Pulei muro de convento
mas complicações políticas
nos levaram à guilhotina.

Hoje sou moço moderno,
remo, pulo, danço, boxo,
tenho dinheiro no banco.
Você é uma loura notável,
boxa, dança, pula, rema.
Seu pai é que não faz gosto.
Mas depois de mil peripécias,
eu, herói da Paramount,
te abraço, beijo e casamos. 


sábado, 1 de agosto de 2020

Não suporto ver uma folha em branco me encarando



Estava paralisado diante da folha em branco,
ouvia uns sons alternativos que meu amigo Carlone sugeriu,
e estava até eufórico porque abri minha mão de vaca
e decidi beber cerveja das boas.
Lembrei do repolho de uns 3 quilos que comprei por 2 reais,
e a garota da feira garantiu que fora produzido por agricultores familiares,
e que por isso não tinha agrotóxicos.
Ela me observava, eu com aquela expressão inquisitiva,
ansioso por descontos e promoções, creio que ela viu diante de si
mais um pobretão urbano dos bem avarentos.

Esqueci o legume na geladeira por mais de uma semana.
Não recordo, devo ter feito picadinho de uma parte dele
e colocado pra refogar, em fogo baixo.
Ideias boiavam em meu cérebro embriagado.
Pensei, Se não curto nenhum som é porque estou mal. 
E era verdade, tanto é que a folha continuava em branco, 
diante de meu nariz, aguardando a tal inspiração.
Devo estar mal como uns sujeitos que começam a mostrar pra todo mundo
fotos antigas, parecendo se prepararem para a morte.

Desconcentrado, sintonizava um blues e logo pulava pra balada,
daí pro rock, e pro chorinho e pro samba.
Senti o cheiro de uma coisa queimando e saquei que vinha do fogão.
Esquecera a panela, com o repolho, pimenta e alho.
Pragmático, resolvi o problema jogando meio copo de água fria na panela.
Foi então que Abigail ligou.
E rapidinho deixou-me a par dos últimos acontecimentos.
Seu irmão finalmente admitiu o alcoolismo,
consultou o CAPs e agora está sob os efeitos dos tarjas pretas.
E o bom é que o pobre jurou que nunca mais vai beber.
Só falta convencê-lo a frequentar uma igreja e abraçar o evangelho.
E Abigail falou também de sua prima, aquela que foi casada com um policial.
Divorciou-se e nem um mês depois apaixonou-se por um sujeito jovem,
gato e carinhoso, e cheio da grana. Só que na semana passada a polícia
deu uma batida... na casa deles. Menino, a casa caiu,
o inspirado traficava drogas.

A guria estava alegre e criativa. Assim que desligou o telefone
me mandou um áudio, que bombava no whats.
Era uma piada a respeito da sexualidade do governador.
Dizia que o excelentíssimo não podia tomar Ivermectina
porque esse remédio mata bichas. Fiquei matutando a grafia,
se era com "x" ou com "ch", e pensei também outras coisas
que circulam por aí, e que alimentam corações e mentes
dessa plateia inspirada, como eu.

Acho que ando mal por causa de um livro,
uma história em quadrinhos, que se chama "Maus", e que  narra
a brutalidade vivida por um pai judeu e seus familiares,  no Holocausto.
O livro mostra em pormenores os terríveis massacres
de milhões de judeus pelos nazistas.

Como estava na abertura de meus trabalhos etílicos,
variados assuntos pululavam na cabeça.
Lembrei de um amigo que semana passada vi caminhando pela calçada.
Fiquei admirado, ele antes tinha uns cabelos nevados,
agora estavam num castanho escuro.
Pô, o cara finalmente encontrou a fonte da juventude,
teve acesso à pílula mágica, emancipou-se das horas mensais
na cabeleireira, das sessões de tintura e tontura e tortura.
Pensava no custo dessa vaidade, submeter-se a tanta química,
e qual a energia que alimenta tal desejo.

Dessa rede de pensamentos inúteis balançando
diante da folha em branco, algo surgiu.
Estava desorientado. Talvez fosse tarde da  noite,
talvez fossem resíduos de insônia ou de sonhos:
"Aborta tua missão, Cadelão, tudo não passou de fracasso,
vamos reaver nossos planos para você'".

Que droga. Ouço vozes, deliro, mas não consigo percorrer
com algumas linhas criativas uma folha sequer desse bloco de papel.
Um sujeito apegado a coisas pequenas,
a ponto de me estressar com o dono da padaria,
porque o sovina cobra caro por uns sanduíches contendo
uma miséria de presunto e queijo e alface.
E o pior é que isso, junto com o conhecimento de fatos históricos
como a crueldade do Nazismo,
quase me convence de que o ser humano não deu certo.
Acho que é hora de menos realidade e mais ficção e ilusão,
a ponto de acreditar que vivemos no melhor dos mundos possíveis,
como disse certo filósofo.

(B. B. Palermo)

O PATIFE tá enrolando de novo

Quando fui acertar a conta no bar, pendurada nos últimos dias, o bolicheiro não encontrou, no caderno, o meu nome. Ao repassar a longa l...