sábado, 1 de agosto de 2020

Não suporto ver uma folha em branco me encarando



Estava paralisado diante da folha em branco,
ouvia uns sons alternativos que meu amigo Carlone sugeriu,
e estava até eufórico porque abri minha mão de vaca
e decidi beber cerveja das boas.
Lembrei do repolho de uns 3 quilos que comprei por 2 reais,
e a garota da feira garantiu que fora produzido por agricultores familiares,
e que por isso não tinha agrotóxicos.
Ela me observava, eu com aquela expressão inquisitiva,
ansioso por descontos e promoções, creio que ela viu diante de si
mais um pobretão urbano dos bem avarentos.

Esqueci o legume na geladeira por mais de uma semana.
Não recordo, devo ter feito picadinho de uma parte dele
e colocado pra refogar, em fogo baixo.
Ideias boiavam em meu cérebro embriagado.
Pensei, Se não curto nenhum som é porque estou mal. 
E era verdade, tanto é que a folha continuava em branco, 
diante de meu nariz, aguardando a tal inspiração.
Devo estar mal como uns sujeitos que começam a mostrar pra todo mundo
fotos antigas, parecendo se prepararem para a morte.

Desconcentrado, sintonizava um blues e logo pulava pra balada,
daí pro rock, e pro chorinho e pro samba.
Senti o cheiro de uma coisa queimando e saquei que vinha do fogão.
Esquecera a panela, com o repolho, pimenta e alho.
Pragmático, resolvi o problema jogando meio copo de água fria na panela.
Foi então que Abigail ligou.
E rapidinho deixou-me a par dos últimos acontecimentos.
Seu irmão finalmente admitiu o alcoolismo,
consultou o CAPs e agora está sob os efeitos dos tarjas pretas.
E o bom é que o pobre jurou que nunca mais vai beber.
Só falta convencê-lo a frequentar uma igreja e abraçar o evangelho.
E Abigail falou também de sua prima, aquela que foi casada com um policial.
Divorciou-se e nem um mês depois apaixonou-se por um sujeito jovem,
gato e carinhoso, e cheio da grana. Só que na semana passada a polícia
deu uma batida... na casa deles. Menino, a casa caiu,
o inspirado traficava drogas.

A guria estava alegre e criativa. Assim que desligou o telefone
me mandou um áudio, que bombava no whats.
Era uma piada a respeito da sexualidade do governador.
Dizia que o excelentíssimo não podia tomar Ivermectina
porque esse remédio mata bichas. Fiquei matutando a grafia,
se era com "x" ou com "ch", e pensei também outras coisas
que circulam por aí, e que alimentam corações e mentes
dessa plateia inspirada, como eu.

Acho que ando mal por causa de um livro,
uma história em quadrinhos, que se chama "Maus", e que  narra
a brutalidade vivida por um pai judeu e seus familiares,  no Holocausto.
O livro mostra em pormenores os terríveis massacres
de milhões de judeus pelos nazistas.

Como estava na abertura de meus trabalhos etílicos,
variados assuntos pululavam na cabeça.
Lembrei de um amigo que semana passada vi caminhando pela calçada.
Fiquei admirado, ele antes tinha uns cabelos nevados,
agora estavam num castanho escuro.
Pô, o cara finalmente encontrou a fonte da juventude,
teve acesso à pílula mágica, emancipou-se das horas mensais
na cabeleireira, das sessões de tintura e tontura e tortura.
Pensava no custo dessa vaidade, submeter-se a tanta química,
e qual a energia que alimenta tal desejo.

Dessa rede de pensamentos inúteis balançando
diante da folha em branco, algo surgiu.
Estava desorientado. Talvez fosse tarde da  noite,
talvez fossem resíduos de insônia ou de sonhos:
"Aborta tua missão, Cadelão, tudo não passou de fracasso,
vamos reaver nossos planos para você'".

Que droga. Ouço vozes, deliro, mas não consigo percorrer
com algumas linhas criativas uma folha sequer desse bloco de papel.
Um sujeito apegado a coisas pequenas,
a ponto de me estressar com o dono da padaria,
porque o sovina cobra caro por uns sanduíches contendo
uma miséria de presunto e queijo e alface.
E o pior é que isso, junto com o conhecimento de fatos históricos
como a crueldade do Nazismo,
quase me convence de que o ser humano não deu certo.
Acho que é hora de menos realidade e mais ficção e ilusão,
a ponto de acreditar que vivemos no melhor dos mundos possíveis,
como disse certo filósofo.

(B. B. Palermo)

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