quinta-feira, 2 de fevereiro de 2017

Doutor, quem matou o Donga?


Fui aos botecos da periferia respirar uma vida mais pulsante. Algo me dizia que a inspiração se refugiou nesses lugares. Meus sentidos eram antenas que captavam todo e qualquer movimento. Doutor, busquei coragem para ouvir de um homem qualquer uma história que sacudisse a vida. Ao entardecer pousei no Tocha Branca. Alguns pretos amarelos brancos e de outras cores bebiam e jogavam o tempo com suas solitárias companhias. Havia um preto enrolando seu cigarro de palha e notei que era simpático e bom de papo, com seus gestos largos que buscavam o horizonte. Paguei-lhe uma cachaça como aproximação e convite para que me contasse algo interessante em sua vida. De preferência algo épico. O filho da mãe não me disse o nome, apenas que era conhecido por Justileia. E não titubeou, Doutor. Falou isso e aquilo, trabalhou com muitos patrões em diversas fazendas, era bem querido nos vilarejos por onde passou.
Pedi para que narrasse o acontecimento mais marcante de sua história. Ele então relatou o seu ato mais heroico: matou, com dezenove golpes de faca, um dos bandidos mais temidos da cidade. Não descreverei os detalhes, Doutor. Disse que o Donga parecia ter o corpo fechado, isso mesmo, não morria mesmo depois de retalhado por tantas estocadas. Diante da resistência do bandido em não partir dessa, meu herói do Tocha Branca decidiu por um golpe mais incisivo: degolou-o.
Doutor, se por um lado Justileia permitiu que a cidade repousasse mais sossegada, por outro lado, após cometer o crime, seu sofrimento triplicou. Teve que sumir por uns tempos. Fugir dos parentes do Donga, que o juraram de morte, e também da polícia, para não ser preso. Tinha dois filhos, um casal de crianças de três e cinco anos. Elas foram adotadas e com o passar dos anos e perambulando de um lugar para o outro ele perdeu o contato. Solitário, hoje ele afoga a saudade com martelos e martelos de cachaça.
Sim, Doutor, o Senhor tem razão. O fato de sair pelas ruas e becos em busca de histórias e personagens, e anotá-las bem ou mal num possível livro, isso tem a ver com o desejo de permanecer (de ser lembrado), depois que eu me for.
Mas tem outra coisa que preciso contar pro Senhor. Durante uma semana, em diferentes dias, percorri vários botecos em busca de relatos épicos. Caramba, ouvi outros bêbados, amarelos pretos brancos e de outras cores, e não é que pelo menos uns cinco disseram que esfaquearam e degolaram o Donga, e todos com dezenove facadas? Pobrezinho. E que bom. Na cidade o que não faltam são heróis. Pelas minhas contas, o animalzinho foi abatido por quase duzentas facadas. 

Parece que a vida se resume nisso, Doutor: avançar de golpe em golpe, inventando ou improvisando (de acordo com a plateia) nossos atos grandiosos, talvez convencendo menos aos outros que nos ouvem e mais a nós mesmos, de que em nossas vidas realizamos belas epopeias. Hem, Doutor, quantas vezes potencializamos (ou reinventamos?) nosso passado, nossos feitos, como algo grandioso, mesmo que as outras pessoas deem a mínima pra isso?

(Diário de B. B. Palermo)

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