quinta-feira, 1 de janeiro de 2009

A ARTE DE CONSERTAR BOLAS - E OUTROS BRINQUEDOS



Nas gavetas de um velho armário havia linha, agulha, cola e remendos. As bolas, de gomos com diversos formatos, não eram abandonadas pelos cantos, quando furavam. Ao contrário, eram tratadas com muito mais carinho. Tinham sete vidas... Mesmo que perdessem a cor e não as enxergássemos direito, quando o jogo estava empatado e a noite se aproximava.

Ao furarem, eram consertadas. Uma, duas, três vezes... Perdiam a cor, tornavam-se achatadas, mas permaneciam importantes. Cortar o barbante, localizar o furo, era arte para alguns. Quase sempre para o jogador mais “perna de pau”. Daí ele se destacar em meio à turma – como se fosse o dono da bola, sempre titular, fossem quais fossem as circunstâncias.

O momento do treino ou do jogo começar, no campo improvisado em meio à pastagem dos animais, era anunciado pelo ruído do quique da bola (pronunciávamos “pique”). Bastava alguns chutões para o alto e deixar a bola saltitar na grama, que a turma logo ia juntando.

A divisão dos times, a escolha dos jogadores, exigia uma assembléia demorada. Ninguém admitia perder. Porém, havia o consenso de se ajustar as peças no jogo, misturando os “feridas” com os “Pelés”.

Celito. Este era o seu nome. Intrigava-me sua amizade com as bolas: levava pouco jeito, maltratava-as quando jogava, porém era seu guardião na hora de consertá-las.

Nosso destino, valentes craques de futebol, estava nas suas mãos.

Naquela época falava-se muito de vocação e talento para escolher determinada profissão. Mas as escolhas não eram precoces, nem havia intensa pressão, desde a infância, para se decidir o que fazer quando adulto. A profissão de jogador de futebol profissional não estava em destaque. Todos jogavam e, na sua imaginação, eram Pelés, Zicos, Rivelinos...

O tempo tratava de remediar os delírios imaginários de craques de futebol que éramos. O que aconteceu pelo caminho, o vemos agora: a maioria casou, constituiu família, e toca os negócios, como seus pais...

O que Celito faz hoje em dia? Muitas coisas que ele fazia, quando éramos crianças, ele ainda faz: trata com afeto os objetos que convivem com ele. Aquilo que é do seu convívio cotidiano, ele abraça com cuidado.

Celito, aposentado, não senta na varanda “com a boca escancarada cheia de dentes esperando a morte chegar”. Ele conserta brinquedos estragados que foram abandonados pelas crianças.

Esses brinquedos são distribuídos, no final do ano, entre as crianças carentes dos bairros e vilas.

Lembro do verso da música do Raul Seixas que diz: “Eu devia estar contente porque eu tenho...” Não estou alegre nem triste. Estou me perguntando sobre o valor das coisas e das nossas escolhas e atos. Celito volta à memória e me faz perceber que, para além da vocação e especialização que buscamos em nossas vidas, o que mais vale é o amor e o entusiasmo que dedicamos às causas que abraçamos.

Há quanto tempo não te vejo, querido bisavô

  Num reencontro na vila em que nasci, abraços acendiam memórias como lâmpadas antigas, trazendo de volta rostos, causos, cheiros de cozinha...