quinta-feira, 30 de janeiro de 2014

Aventuras e tragédias


Tantas tragédias no trânsito, inclusive de crianças e jovens, me parecem ser ofertadas de bandeja à Sra. Morte. Pouca perspicácia (e uso da inteligência) para afugentar o monstro e seguir desfrutando a vida.
Um exemplo de luta com a morte, fazendo uso de uma série de artimanhas - e vencendo-a no final, quando todos os indícios eram de que perderia - está no filme "As aventuras de Pi". O personagem sobrevive a um naufrágio de navio e convive, em pleno bote, com um tigre de bengala, em alto mar.
Para suportar o naufrágio, Pi vai ter que primeiro sobreviver ao tigre. Cada dia de solidão e de luta pela vida significa vencer seu medo de desistir diante de tamanha tragédia, o medo de ser devorado pelo tigre e, enfim, o medo de nunca ser encontrado e resgatado.
Parece-me que esse esforço do personagem para que, no final, a vida triunfe diante da morte traz, entre outras,  uma senhora recompensa: deixar, como legado, uma incrível história pra contar.
Quando fui devolver o filme na vídeo-locadora, minha amiga atendente disse que "As aventuras de Pi" é um filme legal, embora tenha se perdido no final. Isso chamou minha atenção. Tinha me distraído com relação ao desfecho do filme. É que a história, no seu desenrolar, foi demais envolvente. 
Fazendo uma comparação com as coisas da vida, será que não estamos focados no “lá adiante”, no "final" de nossa vida, e esquecendo de viver (se possível) intensamente o aqui e agora? As sequências do filme (e de nossa vida), os avanços e recuos dos personagens, os lugares que o medo e a coragem ocupam em momentos decisivos da vida que optamos levar... A adrenalina posta em jogo...
No filme, a meu ver, o que mais importa é a engenhosidade de Pi, a toda hora, para manter-se vivo num bote, na companhia de uma fera (faminta) em alto mar.
A pergunta se repetia a cada sequência: "Como ele vai escapar dessa?", "Como vai sair de tal armadilha?”
No trânsito há muitas armadilhas criadas por nós mesmos. Imprudência, carros velozes, estradas mal conservadas, etc. Temos pressa de chegar ao destino, em vez de relaxar, traçar um roteiro, checar todos os itens de segurança, visar algum prazer ao pegar a estrada... 
Tantas notícias de acidentes, confirmadas pelas estatísticas, mostram que estamos flertando com a morte, jogando roleta russa com ela.
Nossa história não precisa ser contada pra meio mundo. Ser glo-bal-men-te significativa. Não precisa inspirar um filme que vá concorrer ao Oscar. Mas é a NOSSA história. Ou o que poderia ter sido. Depende, em parte, de como negociamos com a morte. E com a vida. Sabemos que, se a morte vencer o jogo, será definitiva. Resta o “poderia ter sido diferente”, que os mais próximos vão contar – inventando ou não. Isso se fomos significativos para alguns desses "próximos".

terça-feira, 21 de janeiro de 2014

Queria escrever simples



Passarinhos vivem. Com simplicidade. 
Comecei a notar diferente os passarinhos depois de ler o poeta Manoel de Barros. 
Vivi os bichos pelas suas palavras. Cada frase do poeta é uma renovação.
Água nova que jorra de uma pequena fonte, num lugar qualquer.
Sua linguagem é um oásis, em meio a tanta poluição de palavras que não se renovam.
Diz um poema seu, "O provedor":
Andar à toa é coisa de ave. / Meu avô andava à toa. / Não prestava pra quase nunca. / Mas sabia o nome dos ventos / e todos os assobios para chamar passarinhos. / Certas pombas tomavam ele por telhado e passavam / as tardes frequentando o seu ombro. / Falava coisas pouco sisudas: que fora escolhido para / ser uma árvore. / Lírios o meditavam. / Meu avô era tomado por leso porque de manhã dava / bom-dia aos sapos, ao sol, às águas. / Só tinha receio de amanhecer normal. / Penso que ele era provedor de poesia como as aves e os lírios do campo.
Observo da janela, no pátio, um sabiá coloca comidinha na boca do seu filhote, que ensaia os primeiros vôos. Percebo na hora: passarinho é simples, e é bonito olhar. Tive o impulso de fotografar a cena. Mas pra quê? Mostrar aos outros no facebook? Estampar num porta-retrato?
Bonito ver os passarinhos procriando e se multiplicando por aí. Simples. Como eu queria escrever simples como a vida dos bichos!
A respeito do escrever, Manoel de Barros diz que "as coisas que não existem são as mais bonitas". Ele nos convida, nós metidos a escritores, a "usar algumas palavras que ainda não tenham idioma". A nós que usamos e abusamos da palavra, seu recado é: "repetir repetir - até ficar diferente. Repetir é um dom do estilo". A respeito desse jogo com as palavras, visando reinventá-las, diz o poeta que "as coisas que não têm nome são mais pronunciadas por crianças".
Ah, como é difícil escrever de um jeito simples, preciso, sem excessos. Como é penoso se afastar das palavras desgastadas, cansadas de se repetirem.
Sim. Queria escrever como o joão-de-barro constrói a sua casa. Ou como o seguinte poema:
Um passarinho pediu a meu irmão para ser a sua árvore. 
Meu irmão aceitou de ser a árvore daquele passarinho.
No estágio de ser essa árvore, meu irão aprendeu de 
sol, de céu e de lua mais do que na escola.
No estágio de ser árvore meu irmão aprendeu para santo
mais do que os padres lhe ensinavam no internato.
Aprendeu com a natureza o perfume de Deus.
Seu olho no estágio de ser árvore aprendeu melhor o azul.
E descobriu que uma casca vazia de cigarra esquecida
no tronco das árvores só presta para poesia.
No estágio de ser árvore meu irmão descobriu que as 
árvores são vaidosas.
Que justamente aquela árvore na qual meu irmão se
transformara envaidecia-se  quando era nomeada para
o entardecer dos pássaros.
E tinha ciúmes da brancura que os lírios deixavam nos
brejos. Meu irmão agradeceu a Deus aquela
permanência em árvore porque fez amizade com muitas
borboletas. (Poema "Árvore". Manoel de Barros).

quinta-feira, 16 de janeiro de 2014

Pais e turistas - Maria de nazareth Agra Hassen



“Detesto férias, porque não se sabe o que fazer com as crianças.” Não foi a primeira vez que escutei essa frase, dita por pessoas que aparentemente renunciaram a ser aquilo que um dia escolheram ser: pais. Enquanto os filhos anseiam pelo período de descanso escolar, os pais se veem perdidos porque não sabem ser companhia para os filhos ou não sabem onde deixá-los, e as crianças ficam sem endereço, estranhas indesejadas na própria casa.
Nos anos 80, quando estava no nível médio, uma colega um dia reconheceu: “Só passei dois anos da minha vida sem ser em escola”. Na época, foi uma surpresa que nos assustou. Hoje, esse número se reduziu a dois ou três meses.
Depois de nascidas, as crianças seguiram um caminho que, nos últimos tempos, foi-se naturalizando. Em meio ao período da amamentação, lá estavam elas sendo conduzidas para creches, das quais com o passar dos anos pularam para escolinhas até desembarcarem em escolas, essas instituições que, para desespero dos pais, inventaram dois meses ou mais de recesso.
Creche alguma é boa, a menos que comparada com outra creche, mas jamais deveria ser considerada melhor do que a casa. Há crianças órfãs, há crianças abandonadas, há famílias sem qualquer condição de acompanhar e cuidar dos filhos na própria casa. Mas há famílias que teriam todas as condições para isso, mas aceitaram o marketing da creche, das escolinhas e da discutível tese de que a socialização deve começar desde cedo, unida espertamente à outra tese segundo a qual a qualidade da convivência compensa a quantidade. O que é preciso saber é que isso terá consequências. As crianças não se tornarão piores, muitas não adoecerão nem se mostrarão abatidas e deprimidas.
No outro extremo da vida, os idosos viverão o mesmo problema: serem levados a viver com estranhos, num endereço que não é o seu, sob cuidado de especialistas. Mais uma vez, há casos em que isso se faz realmente necessário, mas não é, por certo, o caso de todos os idosos asilados.
Cabe uma comparação com os sistemas de defesa de que todos desfrutamos. Se nos alimentamos mal, com exageros, com toxinas, não necessariamente adoeceremos, mas obrigatoriamente faremos nosso sistema imunológico trabalhar mais e de forma mais árdua, com preços que um dia talvez nos sejam cobrados. O mesmo se dá com o psiquismo.
A necessidade de ficar na própria casa é legítima demais para ser compreendida como birra. Não se defende que as crianças não sejam contrariadas. Ao contrário, elas devem conhecer o sentimento de frustração para aprender a lidar com a vida real. Alguns desejos das crianças, porém, precisam ser escutados porque eles brotam de necessidades estruturais. Ser acordada no frio do inverno para ser levada para fora de casa, ter uma existência de superexposição, em que não decide o que fazer no minuto seguinte, submetida a programações diárias não criadas por ela nem em combinação com ela não é a melhor maneira de se iniciar no mundo com saúde mental e alegria. Quando muito, é um recurso que oferecem as instituições para resolver um problema das famílias que não deveria ser um problema da criança. Nesse contexto, são bem-vindas as ternas advertências presentes no livro A Criança Terceirizada (Papirus), do médico pediatra José Martins Filho (ex-reitor e professor de pediatria da Unicamp), quando diz que não se pode priorizar o trabalho em detrimento das crianças.
No lugar de terceirizar os filhos, os pais poderiam experimentar ouvir as crianças, naturalmente não fazendo a escuta literal, mas sabendo, de um lado, interpretar suas ânsias por consumo, seus desejos de tecnologia, enfim, de gratificações a curto prazo e, de outro, observando os sinais físicos, como adoecimentos, sobrepesos, alergias. São incontáveis as formas pelas quais as crianças tentam mostrar quando não estão bem, mesmo que incapazes de verbalizar. É preciso que alguém se disponha a prestar atenção nelas.
Quando os pais não sabem o que fazer com as crianças, já que, como turistas retornam à casa, identificamos um grave sintoma de que essa geração perdeu até mesmo as formas intuitivas de criar os filhos.


Doutora em Educação - UFRGS

sexta-feira, 3 de janeiro de 2014

Por que a ida a Alto da União?



Cada vez mais, desde crianças, nos fazem alongar o passo. E, muitas vezes, não estamos preparados para vencer os obstáculos. Junto com os outros, fica muito mais fácil...
A vida é um constante caminhar.  Lugar comum, é certo, inclusive a constatação de que, nem sempre, sabemos o roteiro correto.
Caminhar (e conversar) com os outros ilumina os caminhos. Muito mais nos labirintos.
Caminhar é prazer, lazer ou algo mais precioso.
Oportunidade de se aproximar dos que estão distantes. E mostrar a que se veio. E de aflorarem as qualidades de cada um. Na caminhada que fizemos, surgiu o preocupado com a logística, consciente do passo a passo, o material (humano e etílico) de apoio. O casal de amigos, de carro, a garantia de não passarmos sede, e de aliviarmos o peso, caso fosse necessário. Tivemos também o “batedor”, o que puxou a frente e ditou o ritmo. Contribuiu o “professor”, com seu relato de como costuma fazer caminhadas diárias, a disposição de ganhar a avenida antes do sol chegar, e o prazer que isto lhe traz. Outros, deslumbrados, permitiram que a paisagem invadisse suas retinas. Prédios, jardins bem ou mal cuidados, animais em terrenos baldios, o lixo esquecido num barranco da estrada.
Enquanto na cidade não sabemos o que fazer com os prédios antigos e suas arquiteturas e histórias, no interior também não sabemos fazer algo criativo, diferente, como, por exemplo, o chamado eco-turismo – não falo apenas de Alto da União. Poderia falar da Usina Velha, da Colônia Santo Antônio, etc., etc.
Esta pergunta é fatal: qual o sentido de reunir um grupo de amigos, num final de ano escaldante, e rumar pela estrada até um distrito dos mais antigos do município? São várias as respostas. Mas não tem a ver com o que tanto se fala, hoje, da prática de esportes radicais, que têm amplo espaço na mídia. Da mesma maneira, com a pressão para que superemos limites.
 Como em tudo na vida, caminhar segue um roteiro. Tanto melhor se estivermos organizados, antecipando possíveis obstáculos. 
Disse um amigo filósofo: "Conheça o teu corpo". Pensei, faz sentido. Ainda mais com a idade correndo estabanada. A dor no menisco do joelho, a hérnia de disco, a unha encravada...
Uns enfrentaram a estrada com maior precaução. Mochilas às costas, com água, frutas, pomadas para possíveis contusões e torções, protetor solar, repelente de mosquito... Alguns tomaram emprestadas as mochilas de seus filhos; outros se livraram do peso líquido e certo, que foi o medo antecipado de percorrer um longo caminho.
Em certos lugares, ainda na cidade, curiosos e conhecidos fotografaram e postaram nas redes sociais, alguns dos velhos e solitários caminhantes – e comentaram, dizendo que parecíamos hippies do século XXI. Vá entender.
Numa caminhada de uns 15 km, as distrações permitidas pelas conversas animadas, a paisagem diversificada e paradoxal ao longo do caminho, foram motivos que facilitaram chegarmos mais tranquilos. Aconteceu. Um dos amigos nos surpreendeu ao usar uma espécie de cajado, seu braço direito no início da caminhada. E a surpresa foi ainda maior quando, perto do final, ele se libertou da “muleta”.  Re-conheceu seu corpo?
Uma caminhada de final de ano não deixa de ser uma metáfora do que fizemos ou deixamos de fazer nos 365 dias que se passaram.
O registro da caminhada, além da máquina fotográfica do professor de história, foi feito também pela "objetiva" dos nossos olhares. Olhar muitas vezes espantado com a geografia - a mudança e ocupação do espaço pelo homem, sua luta poucas vezes amigável com a natureza.
Quando chegamos no armazém do 'Seu Dambrós', alguns estavam ansiosos para saber se havia cerveja gelada suficiente para desfrutarmos, após longo percurso. Havia também a curiosidade de conhecer o lugar onde seríamos recepcionados. A organização da casa, o prato ofertado, os anfitriões, as novas amizades.
Diante do armazém, que serve à comunidade desde as primeiras décadas do século XX, as lembranças de um dos amigos foram reavivadas: ele nasceu e cresceu junto ao armazém de seus avós e seus pais, na cidade de Ijuí...
Ir de um lugar para o outro, com amigos, é prato cheio para levantar boatos. Ouvir algumas histórias. Nunca ter ido ao Distrito de Alto da União, ter nascido e crescido noutro lugar, não impede de perguntar:
Que história é essa de que o Distrito anda meio “perdido”, sem identidade, entre os municípios de Ijuí e Cruz Alta? Em que a ferrovia contribuiu no passado, se comparado aos dias atuais? Que história é essa da destruição da figueira? Onde, quando, como? Quer dizer que houve um “Romeu&Julieta” em Alto da União? E a Coluna Prestes, passou mesmo por lá? Que história é essa do “Poço dos degolados”?
A alegria dos encontros, os abraços, a música que ressoou, depois de turbinarmos a memória e inflado os pulmões. A decoração do ambiente, os objetos antigos nas paredes... Claro! Os que ali moram têm um forte laço com sua história, a preocupação em não perder de vista o que foram, desde sua infância, nem o que seus pais e avós construíram. As ferramentas usadas para domar a floresta e edificar casas e lares.
Fomos muito bem recepcionados e, todos, todos pudemos falar.
Música, comida, bebida, e as palavras trocadas. Amizades em-caminhadas.
Perguntar “por que vocês caminham?” faz tão pouco sentido como perguntar “por que vocês conversam?”.
O que mais importa é o fruir destes momentos. Movimentar-se. Pôr-se a caminho. Encontrar-se com os outros. Nos reencontrarmos...

Novo homem!

  Grãos de areia interditaram meus olhos nesta quarta-feira de tarde, bastou umas calcinhas no varal tomarem banho de sol e ousarem ...