Como disse, me preparava para retornar
ao lar, e eis que surgem o doctor Biza e o Damo do cachorrinho. Disseram que
vinham de uma consulta - e a dita cuja continuou no bar do Maneta.
Pensei: "Jesus! Doctor trouxe o
consultório aqui pro boteco... O mundo tá de pernas pro ar".
Não sei da onde, Biza comparou o Damo
comigo.
- Tu, Damo, tem muito instinto,
diferente do Cadelão... Ele não tem instinto, é mais sensibilidade... Tu não é
tão sensível, tem menos coração...
Ali, vendo o doctor derramar sua
sabedoria, pensei: "Deus do céu! O que esse deslumbrado anda
estudando?".
Biza jogava saber pra cima do garoto,
olhava pra mim e perguntava: "Não é isso mesmo, Cadelão?". Eu me
encolhia, empinava aquele gole de cerveja e dizia "Aham, aham...".
- Por que o teu namoro não tá dando
certo, lembra do que tu me falou? Quando tu quer sexo, ela não quer. Quando ela
quer, tu não tá a fim".
Pronto - pensei - embarcamos numa terapia
de grupo. Biza metralhava. Não dava espaço para contra-argumentos. Aí,
atravessei sua sessão de análise, dizendo: "Meu, eu também era assim. Sabe
como resolvi o problema?" Agora eles vão me ouvir - pensei. Falei como
quem sobe no pódio e levanta um troféu. "Depois de 2 anos de terapia,
transei com a terapeuta". Pausa... silêncio... "Aqui estou... totalmente
curado".
- Cadelão, tu tá de sacanagem. Nosso
papo aqui é sério! - reclamou o Damo.
E um maldito gato preto ali, em cima do
muro, me encarando...
O Damo estava agitadíssimo.
- Cadelão, tu tá sugerindo que se eu
transar com o terapeuta ficarei curado?
- Não falei isso, meu bem, só disse que
a minha experiência deu certo. Tu não curte aquelas séries da Netflix? Quantos
milhões de seres curtem aquilo, igual a tu? É isso, as cabeças dos humanos
são muito parecidas.
Gente, agora eu derramei sapiência. Complementei: "Vocês não leram 'O homem unidimensional',
do Marcuse? Caralho, está tudo ali" - disse isso e gritei pro Maneta providenciar
outro litrão.
Eu me perguntava sobre o sentido de
ficar ali, enchendo a cara e participando de uma "terapia de grupo".
Doctor Biza falava e falava, analisando nariz e olhos e boca e outras
expressões corporais do garoto. Meia hora depois consegui uma brecha no meio de
sua falação. Então esparramei sobre a mesa meus conhecimentos do poliamor. Os bonitinhos me escutaram! falei sobre um monte de coisa. Citei Nietzsche e sua
crítica ao cristianismo, amarrei tudo isso (não me perguntem como) com os sofrimentos
dos humanos resultantes da monogamia e disse pro Damo que o problema dele é o
mesmo da maioria dos escrotinhos que habitam a Terra. Biza me fitava, como a
dizer: "O espertinho do Cadelão tá querendo roubar o meu paciente".
Eis que chegam no bar o Beiço e o dom Carlone
num unozinho todo embarrado e caindo aos pedaços. Tive uma espécie de vertigem.
"Aiaiai, meu paizinho, perdi os últimos fios que me conectam à realidade.
Isso é o começo do fim".
Os dementes tinha passado as últimas
horas na casa da dona Mire, a poeta de São Luiz Gonzaga, rodeados de meia dúzia
de ninfas. Carlone sentou, encheu seu copo, fez um brinde às mulheres, deu
aquele gole, falou de seu pobre cartão de crédito, e gemeu:
"Eu-não-posso-me-apaixonar... eu-não-devo...".
Foi providente a chegada dos dois.
Daríamos um tempo pra falação do doctor Biza. Beiço tomou conta da conversa. Estava
delineando um governo paralelo, pra dar novo rumo a essa bosta de país.
- Gurizada, chegou a hora de um governo
alternativo pra essa porra que está aí. Vamos pensar numa nova via, num
"parlamentarismo alternativo". E o legal que temos aqui belas cabeças
pensantes.
Hum - pensei - belas cabeças pensantes...
O que passa na cabeça do eloquente?
Eu me contorcia, esfregava as mãos e
perguntava pro meu eu interior: "Paisinho, pra que lado fica o
mundo?".
O Beiço estava em altas rotações.
Caramba - pensei - que bagulho esse maluco andou encarando?
- Brothers, já tenho os nomes para
dirigir a economia e a saúde do país.
- Fala, aí, velho.
- Dom Carlone pra economia. Doctor Biza
pra saúde.
E o Beiço esmiuçou a coisa:
- La na boate da dona Mire ouvi umas
ideias interessantes do Carlone para acelerar a distribuição de renda nessa
época difícil.
- hum...
- Ele propõe injetar reais nas
periferias. Estimular a atividade sexual de nosso povo.
Gente, eu não acreditei que estava
ouvindo aquilo...
- Carlone planeja botar grana nas putas
e puteiros, e dali a fartura transborda pras periferias... Tudo isso evitará
mais desemprego e possibilitará a abertura de novas vagas de trabalho, e
tals...
Foi então que o Carlone agarrou a
palavra e tacou-lhe pau nas suas teses a serem implantadas na economia. No
começo seus argumentos pendiam pra esquerda. Daí a pouco, ao falar sobre o
papel do estado e blá-blá-blá, os argumentos pareciam pender pra direita.
Eita, esse moleque conhece! Está nos
sacaneando - pensei.
Carlone discursava como quem entra num
labirinto, daí a pouco emendava com outro assunto, logo adiante falava de outras coisas, creio que eram os problemas enfrentados pelos índios da Amazônia. Eu
pensava, "meu paizinho, pra que lado fica o mundo real, me diz, meu
paizinho", enquanto sugava o copo cheio - e não podia ser pra menos.
O Beiço olhou pro doctor e quis saber
quais ideias ele tinha pra saúde.
- O que esse povo precisa é parar com
tanto ódio! parar com essa ilusão de esquerda e direita, comunistas versus
fascistas. Vamos tirar esses bundões das redes sociais e botar todo mundo pra
trabalhar. Hortas urbanas. Aí terão uma alimentação saudável e vão aumentar as defesas
do organismo.
Fez aquele discurso, casando alhos com
bugalhos, e arrematou:
- Gente, nós precisamos de um governo
forte. Tem que botar as fardas nas ruas.
Foi então que o Beiço botou ordem no
"debate":
- Doutor, te preocupe com os assuntos
da saúde. Deixe o resto comigo. Aliás, tu vai me prometer uma coisa: tu vai
superar esse teu amor pelos milicos.
O Beiço continuava em alta rotação.
Olhou pro Damo do cachorrinho, e disse:
- Tô achando que a pasta da cultura vai
ficar contigo. Mas tu também tem que me prometer uma coisa.
- Fala, mestre.
- Tu vai ter que superar essa tua
paixão pelo Leandro Karnal.
Beiço se voltou na minha direção e viu
diante de seus brilhantes olhos o primeiro ministro.
- Cadelão, teremos um parlamentarismo.
Tu vai ser o cara. Mas não esquenta. Tu vai ser tipo uma vaca de presépio. Vai
ocupar um cargo meramente figurativo. Tu também vai ter que me prometer uma
coisa: não beberás em horário de expediente.
A coisa ia nesse ritmo, e eu sei que
esta história tá ficando um pouco longa. O dom Carlone de novo gemeu, ao lembrar
do seu cartão de crédito. "Eu-não-posso-me-apaixonar... Eu-não-devo".
Gente, essa frase começou a latejar na
minha cabeça.
E o gato preto ali em cima do muro, me
encarando. Disse pros amigos que era hora de voltar para casa.
- Nada disso. Tu vem com a gente pra
boate - disse o doctor. Tô com um cheque de um paciente. Pagou um mês inteiro
de consulta. Hoje é por minha conta.
- Gurizada, to com um mau
pressentimento.
- O que foi, Cadelão?
- Observem aquele gato, ali em cima do
muro. Faz horas que está me encarando.
- Gato? Que gato?
Os filhos da puta tão de sacanagem -
pensei.
- Vamos, Cadelão, o amor de uma putinha
vai te libertar dessas paranoias.
Na minha cabeça o mantra do Carlone
latejava. "Eu-não-posso-me-apaixonar...Eu-não-devo".
(B. B. Palermo)