quarta-feira, 2 de outubro de 2019

Um quero-quero doméstico delirante




1.
Aguardava El Cabezón no bar do posto Aurora. Ele prometeu contar suas aventuras e fiascos, avanços e recuos, gestos heroicos e covardes. Já havia passado meia hora do horário combinado e o infiel não apareceu. Suponho que a cratera deixada pelas drogas em parte do seu cérebro levou-o a esquecer do compromisso.
Bebo pelos dois e a tudo observo, mas nada surge na cabeça anuviada. O bloco de meia dúzia de folhas continua em branco. Estou curioso pra conhecer as gírias e manias de um maluco de periferia, traficante chinelo ainda vivo embora com quase trinta anos.
- To de boa, to no pedaço, vim ao mundo para agitar - Garganteou, dias atrás.
Quero ouvir seus relatos a respeito da vida afetiva. Mas Ele só enfatiza suas leituras. Está fissurado no espiritismo. E convicto de que tem uma missão.
O fato de não colocar isso em prática é o que me espanta.
Sua missão é o compromisso que tem com os espíritos que o antecederam, vocês sabem, aquela cobrança ou dever para que evolua, em vez de recuar ou ficar estacionado, quase na condição de um bárbaro ou selvagem. E aí ocorre o de sempre: em vez de exercitar seu livre arbítrio, Ele faz como muitos, inventa uma motivo qualquer e mergulha nos prazeres mundanos.
Uma desculpa sempre se encaixa pro fato de estar meio no limbo:
- Saco, o que vocês queriam? Vejam só o cafundó que vocês me colocaram. Olhem o bando de imbecis e dissimulados e inúteis que me cerca!
2.
- Mas que bobalhão! - explode Laha, sua namorada.
É que garante que vai mudar de vida. Claro, a partir de amanhã, que Ele não é dobradiça.
Quer colocar em prática os ensinamentos dos livros de Allan Kardec.
Laha relativiza tanta devoção:
- O espiritismo de Kardec surgiu há mais de 150 anos. Muita coisa mudou. Tu não precisa ser um fanático religioso. Tens que contextualizar e relativizar as verdades que tu lê por aí - explica, didática.
Ela admite que Cabezón não necessita se libertar de tantos vícios, a ponto de perder a identidade. Menos, maluco, menos - Ela repete, diante das suas promessas enroladas.
- Tanta coisa acontecendo, tu pode estudar a vida dos passarinhos, seus hábitos e segredos, por exemplo, eles são reais, estão por toda parte.
O comentário de Laha foi a deixa pro Cabezón se sair com uma tirada poética:
- Observo o oblíquo dos teus olhos e não consigo desvendar se os segredos estão nos passarinhos ou nas tuas maquiagens.
- Eu sinto mais alegria com os passarinhos do que com certas pessoas.
- Tipo eu?
- Tu mais parece um quero-quero doméstico delirante.
- Ah ta. Ainda largo os vícios e viro um São Francisco de Assis. Tu sabia que Ele é o protetor dos animais?
- Menos, Cabeça, menos. Tu não tem paciência nem com o Chico.
- Não! Ao contrário. Tanto é que, se a gente se separar, eu contrato um advogado e reivindico a guarda compartilhada do vira-lata.
3.
A namo tem suas fraquezas. Ciúmes, por exemplo. E também essa coisa misteriosa, própria de muitas mulheres, a de achar que tem uma nobre missão, cuidar de um traste como é o seu homem.
A discussão é por bobagem, mas Ela dramatiza:
- Eu sei, tu tava num antro.
Se as expectativas e exigências que faz ao Cabezón são frustradas, Ela murmura:
- Volta pras cadelas.
Nessas horas sua auto-estima despenca.
- Nos lugares que tu frequenta, eu sei, qualquer uma é mais linda do que eu.
O orgulho entra em campo. Passa-se um século antes de alguém dar o braço a torcer.
- Tem um oceano de putas novas te dando em cima.
4.
Enquanto Ela afunda cada vez mais na insegurança, Cabezón se esforça pra deixar para trás a realidade cruel: o mal leva uma vantagem imensa sobre o bem. Ele se imagina um herói. Ou poderia ser. Com Ele acontece algo semelhante ao que acontece com a maioria: buscam nos filmes de super-heróis uma escapatória pra sua realidade fodida. Nesses filmes, o bem vence o mal no final. É o que todos precisam pra tocarem uma vidinha de insetos.
De suas leituras de Kardec, Cabezón se sente no meio de uma turbulência, chacoalhando entre bons e maus espíritos, e o fato de cair com facilidade em tentação deve-se ao desequilíbrio da balança. Os espíritos de baixo calão estão sendo mais competentes em persuadi-lo a fazer (tantas) merdas.
Cabezón até ficava 3 dias sem álcool, e sentia que o novo homem estava a caminho. Porém, segundo Ele, isso desmoronava diante do cotidiano que Laha oferecia.
5.
Ufa! Até que enfim o infiel apareceu no bar. E foi logo dizendo:
- As mulheres querem que tu esteja ALI. Querem te proteger, te guardar numa caixinha. E é uma mensagem atrás da outra, "onde tu tá? Com quem tu tá?".
Gosta de ficar em casa. A grama pra cortar, as árvores pra cuidar. Ah, sim, e admirar suas tatuagens. As duas últimas, uma no dorso da mão e outra no pé, foi Laha quem patrocinou.
Sempre por perto, Laha mandou instalar uma TV de 40 polegadas no quarto. "Inocente", Ela só quer vê-lo feliz. O pior, qualquer contrariedade boba, Ela diz:
- Sei, tu corre pra aqueles antros onde têm umas oferecidas mais novinhas do que eu.
Depois de meia dúzia de garrafas e com minhas folhas quase todas rabiscadas, Com olhos umedecidos, ele murmurou:
- Cara, eu só queria concentrar nas minhas leituras, mudar um pouco minha vida, aprender um pouco mais sobre o outro plano.
Pensei dizer: "Esquece o outro plano, bota os pés no chão e foca no aqui e agora, tenta desvendar quem tu és". Mas fiquei calado. Quase chorei com aquela vontade doida de rir do quero-quero doméstico delirante.

(B. B. Palermo)                                                                 

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Quando fui acertar a conta no bar, pendurada nos últimos dias, o bolicheiro não encontrou, no caderno, o meu nome. Ao repassar a longa l...