1.
Aguardava El Cabezón no
bar do posto Aurora. Ele prometeu contar suas aventuras e fiascos, avanços e
recuos, gestos heroicos e covardes. Já havia passado meia hora do horário
combinado e o infiel não apareceu. Suponho que a cratera deixada pelas drogas
em parte do seu cérebro levou-o a esquecer do compromisso.
Bebo pelos dois e a
tudo observo, mas nada surge na cabeça anuviada. O bloco de meia dúzia de
folhas continua em branco. Estou curioso pra conhecer as gírias e manias de um
maluco de periferia, traficante chinelo ainda vivo embora com quase trinta anos.
- To de boa, to no pedaço,
vim ao mundo para agitar - Garganteou, dias atrás.
Quero ouvir seus relatos
a respeito da vida afetiva. Mas Ele só enfatiza suas leituras. Está fissurado no
espiritismo. E convicto de que tem uma missão.
O fato de não colocar
isso em prática é o que me espanta.
Sua missão é o compromisso
que tem com os espíritos que o antecederam, vocês sabem, aquela cobrança ou dever
para que evolua, em vez de recuar ou ficar estacionado, quase na condição de um
bárbaro ou selvagem. E aí ocorre o de sempre: em vez de exercitar seu livre
arbítrio, Ele faz como muitos, inventa uma motivo qualquer e mergulha nos
prazeres mundanos.
Uma desculpa sempre se
encaixa pro fato de estar meio no limbo:
- Saco, o que vocês
queriam? Vejam só o cafundó que vocês me colocaram. Olhem o bando de imbecis e
dissimulados e inúteis que me cerca!
2.
- Mas que bobalhão! -
explode Laha, sua namorada.
É que garante que vai
mudar de vida. Claro, a partir de amanhã, que Ele não é dobradiça.
Quer colocar em prática
os ensinamentos dos livros de Allan Kardec.
Laha relativiza tanta
devoção:
- O espiritismo de
Kardec surgiu há mais de 150 anos. Muita coisa mudou. Tu não precisa ser um
fanático religioso. Tens que contextualizar e relativizar as verdades que tu lê
por aí - explica, didática.
Ela admite que Cabezón
não necessita se libertar de tantos vícios, a ponto de perder a identidade. Menos,
maluco, menos - Ela repete, diante das suas promessas enroladas.
- Tanta coisa acontecendo,
tu pode estudar a vida dos passarinhos, seus hábitos e segredos, por exemplo, eles
são reais, estão por toda parte.
O comentário de Laha
foi a deixa pro Cabezón se sair com uma tirada poética:
- Observo o oblíquo dos
teus olhos e não consigo desvendar se os segredos estão nos passarinhos ou nas
tuas maquiagens.
- Eu sinto mais alegria
com os passarinhos do que com certas pessoas.
- Tipo eu?
- Tu mais parece um
quero-quero doméstico delirante.
- Ah ta. Ainda largo os
vícios e viro um São Francisco de Assis. Tu sabia que Ele é o protetor dos
animais?
- Menos, Cabeça, menos.
Tu não tem paciência nem com o Chico.
- Não! Ao contrário.
Tanto é que, se a gente se separar, eu contrato um advogado e reivindico a
guarda compartilhada do vira-lata.
3.
A namo tem suas
fraquezas. Ciúmes, por exemplo. E também essa coisa misteriosa, própria de
muitas mulheres, a de achar que tem uma nobre missão, cuidar de um traste como
é o seu homem.
A discussão é por
bobagem, mas Ela dramatiza:
- Eu sei, tu tava num
antro.
Se as expectativas e
exigências que faz ao Cabezón são frustradas, Ela murmura:
- Volta pras cadelas.
Nessas horas sua
auto-estima despenca.
- Nos lugares que tu
frequenta, eu sei, qualquer uma é mais linda do que eu.
O orgulho entra em
campo. Passa-se um século antes de alguém dar o braço a torcer.
- Tem um oceano de
putas novas te dando em cima.
4.
Enquanto Ela afunda
cada vez mais na insegurança, Cabezón se esforça pra deixar para trás a realidade
cruel: o mal leva uma vantagem imensa sobre o bem. Ele se imagina um herói. Ou poderia
ser. Com Ele acontece algo semelhante ao que acontece com a maioria: buscam nos
filmes de super-heróis uma escapatória pra sua realidade fodida. Nesses filmes,
o bem vence o mal no final. É o que todos precisam pra tocarem uma vidinha de
insetos.
De suas leituras de
Kardec, Cabezón se sente no meio de uma turbulência, chacoalhando entre bons e
maus espíritos, e o fato de cair com facilidade em tentação deve-se ao
desequilíbrio da balança. Os espíritos de baixo calão estão sendo mais
competentes em persuadi-lo a fazer (tantas) merdas.
Cabezón até ficava 3
dias sem álcool, e sentia que o novo homem estava a caminho. Porém, segundo
Ele, isso desmoronava diante do cotidiano que Laha oferecia.
5.
Ufa! Até que enfim o
infiel apareceu no bar. E foi logo dizendo:
- As mulheres querem
que tu esteja ALI. Querem te proteger, te guardar numa caixinha. E é uma mensagem
atrás da outra, "onde tu tá? Com quem tu tá?".
Gosta de ficar em casa.
A grama pra cortar, as árvores pra cuidar. Ah, sim, e admirar suas tatuagens.
As duas últimas, uma no dorso da mão e outra no pé, foi Laha quem patrocinou.
Sempre por perto, Laha mandou
instalar uma TV de 40 polegadas no quarto. "Inocente", Ela só quer
vê-lo feliz. O pior, qualquer contrariedade boba, Ela diz:
- Sei, tu corre pra
aqueles antros onde têm umas oferecidas mais novinhas do que eu.
Depois de meia dúzia de
garrafas e com minhas folhas quase todas rabiscadas, Com olhos umedecidos, ele
murmurou:
- Cara, eu só queria
concentrar nas minhas leituras, mudar um pouco minha vida, aprender um pouco
mais sobre o outro plano.
Pensei dizer: "Esquece
o outro plano, bota os pés no chão e foca no aqui e agora, tenta desvendar quem
tu és". Mas fiquei calado. Quase chorei com aquela vontade doida de rir do
quero-quero doméstico delirante.
(B.
B. Palermo)