A
garota tirou copos e garrafas de uma mesa próxima. Uns sujeitos evaporaram fazia
pouco.
-
Não tem mais ninguém, né?
-
Não. Não sou ninguém.
Ela
riu. Dei um longo gole e pedi outra cerveja. Minha alegria é intensa mas de
tiro torto. É de quem está à margem dos grandes debates, em ciências ou artes
ou política. Agarro-me ao instante, à presença da garota e seu sorriso, que não
deve nada aos propagandeados congressos e simpósios e assembleias.
No
meu canto, vibrando com a energia da garota, observo um sujeito que acabou de
chegar, porte médio, cabelo e jeito de se mover meio estranhos. Me coço, o cara
parece um suicida ou homicida ou pode estar decidido a matar a ex-mulher. Tento
rosnar, como um pit bull enorme bem treinado, mas a razão cola a mão nos meus
lábios e me convence de que não devo fazer nada. Ergo o copo e um clarão
filosófico - que acolhe o verdadeiro sábio - me conduz ao centro do problema:
como fazer para endireitar os indivíduos, já que trocar governantes não tem
ajudado.
Enquanto
fuço nessa porra de problema, minhocas engordam e ficam lerdas e mais samocas,
como a pele e bunda e pernas e barriga e cérebro de certos homens e mulheres. Me
preocupar com o indivíduo e a sociedade talvez ajude a esquecer as merdas que
fiz. Mesmo que o monstrengo aqui se esconda atrás do velho clichê de que fez o
que fez por amor.
Muitas
e muitas vezes acordo no instante em que levaria tiros ou facadas de sujeitos
desdentados e mal-encarados que são classificados como plebe. Eles dizem que
estão cansados de acarinhar minhas cagadas, como o fato de ter trepado com uma
garota que consideram sua. Otários, são muito valentões e pouco espertos, pois
ainda acreditam que alguém seja de alguém. Nego e ganho tempo, nunca direi que
ninguém é de ninguém. Porém, sempre perco o jogo. Os filhos da puta me deixam
vivo e com sentimento de culpa. E sempre fazem questão de lembrar que minhas
portas e janelas estão escancaradas. Basta uma turbulência do sono, numa noite
qualquer, pra eles voltarem.
Desconfio
que minha vida está sem propósito, como se fosse pacote de fraldas empilhado na
prateleira da farmácia. Sei, sei, cus funcionam como válvulas de escape da
civilização. A importância das fraldas está justificada. Quanto à minha
importância pra humanidade, aí já não sei. Mas não me venham falar de suicídio.
Mastigava
essas profundidades requentadas quando o Beiço sentou, com olhos e sobrancelhas
e gestos e barba por fazer preocupados. Se saiu com essa:
-
Sonhei que a torneira da pia destilava cerveja. Não lembro se era pilsen, ou
puro malte, ou chope, lembro que o colarinho, no copo, estava do meu jeito.
Pesquisei o verbete "cerveja" num livro dos sonhos. Desdobrei seus
números e joguei no Bicho durante três dias, quatro vezes ao dia. Gastei uns
quinhentos reais. De novo, não deu nada.
-
Não desista, meu amigo. A sorte não avisa quando chega.
Conheço
o Beiço há uns vinte anos. Sempre aviso, "devagar com o pó, você já perdeu
algumas mulheres".
Marés
sobem e marés descem, mudam as estações e o Beiço sempre recai.
Nesses
dias nublados ouvi várias previsões, mas nenhuma como a Dele. A velhinha da
fruteira disse: "Vai chover, minhas juntas estão doendo". Seu Amadeo,
velho bebum frequentador do bar do Posto do Ganso, asseverou: "Amanhã
chove com certeza. Meu joelho dói".
Beiço não parava de coçar o nariz.
-
Para de fungar, cretino!
-
Cara, vai chover.
-
Sim, a velhinha da fruteira e o seu Amadeo disseram que amanhã chove.
-
Não, vai chover hoje.
-
Bem, todos as previsões dizem que chove amanhã. Vi isso na internet.
-
Capaz, Cadelão. Vai chover hoje, meu pó melou!
-
Putz, maluco, teu pó é ruim.
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Capaz, é da dona do pó.
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Jesus Cristo! Ela vai melar é a tua vida!
-
Nada. O marido tá preso por tráfico de entorpecentes.
-
Hum... Eu não sei o que quero da vida. Mas quanto a você, eu sei...
-
O quê?
-
Uma bala na cara.
Ele
riu com aquele seu jeito triste. Então a noite bateu à porta. Num poste, do
outro lado da rua, uma lâmpada se esforçou pra acender. E logo apagou. E piscou
e piscou, como se fosse cadela ansiosa pra entrar no cio. Fiquei preocupado.
Pensei em como será o funeral do meu amigo. Ou o meu.
(B.
B. Palermo)