terça-feira, 12 de agosto de 2025

O Imprestável

 

Domingo, fim de tarde. Fujo de casa como quem foge de si.
As ruas vazias me acolhem melhor que os cômodos.
Caminho, e as ideias me seguem, feito cachorro sem dono.
Na casa do seu Amadeo, o de sempre: ele na varanda, camisa aberta, óculos presos por arame e voz arrastada.
— Dei casa pro guri... Estudo pra ela...
Ninguém responde. Nem os passarinhos.
Dizem que a ex-mulher mora num puxadinho, nos fundos de sua casa. Cada um na sua, dividindo o rancor e o silêncio.
Os sapatos desmancham devagar, como seus planos. A perna torta nunca vai ao médico, mesmo que sempre tenha consulta marcada.
Nos fins de semana, vodca barata, refrigerante e as promessas de pescarias com amigos já mortos.
- Ganhei um foque da minha filha! - diz, como quem ganhou um trono.
Três pilhas grandes, luz de abrir clareiras na escuridão da memória.
Outro dia, pediu pra eu ler o extrato de um recibo bancário. Enxergar tá difícil.
Tinha R$133.700,00 numa poupança. Disse-me que estava tudo certo. Fiquei com vergonha por existir.
No bar do posto de combustíveis, olha pro céu a cada cinco minutos.
- Nuvens negras vindo do sul! Temporal dos grandes!
Porém, só chega a noite. Sem trovão. Sem glória.
Fala do passado.
Do travesseiro de puta que lhe deu calvície,
do shampoo Irene,
da filha do dono do quarteirão que quase virou sua esposa.
- Era muito fodedeira. Eu me assustei.
Fala, cala, fala e fala de novo.
Entorna outro litrão.
- Arrecém 8 e meia. O posto fecha às 11. Em casa, não tenho nada pra fazer.
Me pergunta da vida. Eu minto e me divirto.
Lembro da Sexta-Feira Santa em que cocei os países baixos, infestado de chatos.
Raspei tudo e rezei pra ninguém notar.
Cadelão, coroinha, imprestável. Meu alter ego.
No posto, um bebum chora pelo pai.
Seu Amadeo tenta consolar. Eu deixo o mar de lágrimas fluir.
A dor, às vezes, é tudo o que resta.
A cadela do posto me observa. Ensaio umas carícias, ela recua. Tem faro pra homem derrotado.
Penso em adotar um bicho.
Ainda existe saudade no mundo. Talvez ainda exista salvação.
Seu Amadeo me tira do devaneio:
- Era fingimento! Aquele cara não vale nada!
Arrecém 10 e meia. Nem a farmácia fechou.
Conta da infância:
peito seco, olhos fundos, gemendo na cama:
- Mamãe, eu vou morrer...
Sobreviveu. Por um chá. A Flor do Amazonas.
Hoje toma cloreto de magnésio, água com limão e litros de cerveja.
Forte como um centauro,
inocente como um chato,
e um tanto menos imprestável do que eu.
(B. B. Palermo)

O Imprestável

  Domingo, fim de tarde. Fujo de casa como quem foge de si. As ruas vazias me acolhem melhor que os cômodos. Caminho, e as ideias me seguem,...