terça-feira, 30 de abril de 2019

Ela é boa e justa e sincera demais


Ela tem cabelos negros e sorriso fácil e muitos planos.
Como Ela é muito jovem, eu mergulho nos livros oito horas por dia.
Minto. Das oito horas, duas eu rabisco poemas pensando Nela,
só que no outro dia eu acho que eles estão muito ruins,
aí pratico basquete na lixeira.
Que isso fique entre nós.
Sinto que não a fisguei por completo.
E talvez nunca seja possível.
Os cabelos e olhos negros espalham vida
e eu me distraio e acompanho, ora um, ora outro.
Dou piruetas, ando de skate, torço fervorosamente pro time do bairro,
compro rifas das crianças de escolas, dou moedas pros bêbados.
Odeio quando ela compartilha fotos com os amigos no bar.
Fico na minha, não dou pistas de que sou fraco.
Não sei explicar a vantagem de conhecê-la desde a tenra idade,
ter a sorte de saber seus sonhos, vê-la brilhar e falar dos seus planos.
Em tempos de corrida em busca de uma especialização, e de juntar dinheiro rápido, Ela não deseja dedicar-se apenas a uma profissão, quer libertar seus diversos talentos.
Estou vulnerável às opiniões de familiares e amigos.
Deprimo por saber que eles dirão que pertencemos a gerações impares.
Eles repetirão, me conhecem, sabem que logo estarei fissurado por novas conexões.
Eu não darei ouvidos.
Imagino os comentários:
- Ele tem uma existência torta... Ele anda em zigue-zague.
Centenas espalharão a fofoca derradeira:
 - Ele tinha tudo para dar certo, mas parece que nasceu torto.
Algo me assusta Nela.
É muito boa, justa e sincera.
O mundo é perigoso e minhas experiências são um bocado singulares.
Ao andar pelas ruas, acaricio cães carentes que estão atrás de grades de casas, edifícios, fábricas e estacionamentos.
Uma sensibilidade que não me envergonha, muito embora os olhares desconfiados atrás de cortinas e portas.
Bom, às vezes isso me intimida, não admito ser confundido com um chinelo.
E se Ela não gostar de blues?
E se Ela insinuar que os Mozart e Beethoven que ouço são de cortar os pulsos?
Isso é o de menos. Vou narrar o roteiro que percorri, com todas as metáforas e neuroses, desde a infância, para que o apego a certas canções e filmes desenhasse o meu destino.
Estou feliz. Nesse início de inverno conto com o seu olhar,

e isso impede que eu seja carente de outros invernos.

(B. B. Palermo)

sexta-feira, 26 de abril de 2019

Camiseta virada e preservativo no bolso


Chego em casa pelas quatro da tarde e me detenho diante do espelho. Uso camiseta estampada, e logo percebo que está virada. Noto a etiqueta enorme atrás do pescoço. Fico vermelho de vergonha por não ter passado vergonha diante das pessoas. Danem-se, não lembro de ter reparado em gente conhecida.
Enfio as mãos nos bolsos, no esquerdo encontro meu RG e algumas moedas e um bilhete com o telefone de uma putinha e uma fita vermelha do Santo Expedito. No bolso direito encontro um preservativo.
Ontem, lá pelas onze da noite, jogava sinuca e comemorava, com outros comuns, uns trocados que ganhei no jogo do bicho. Aconselho esses carinhas que sonham em ganhar nas apostas para que joguem alguns centavos nas centenas, pois assim é mais fácil ganhar algum, pelo menos pra pagar os jogos da semana. Espiei o celular e havia um áudio da Janete. "Cadelão, onde tu tá? Vem pra cá, tenho uma novinha pra ti". Há anos ela joga essa isca pra me atrair ao seu puteiro. Sempre vou faceiro e chego lá e vejo gordinhas de uns trinta e poucos.
Tinha novidades. Propôs algo como um estágio. Se dormisse com Ela no final das noites, poderia passar a semana na boate, rodeado de putas, escrevendo. Gostei da ideia, quem sabe agora minha literatura deslancha. Vivo um dilema diário: não trabalho para ter tempo para escrever, mas vocês sabem, no Brasil a maioria dos escritores têm outra profissão, senão passariam fome. A inspiração não vem, então tenho um motivo pra correr pro bar. No outro dia baixa uma ressaca e então a Janete me chama. Ela tem uma boa alma. Ela sabe dos meus sonhos e bolsos vazios.
Na boate, embalado pelo álcool e pelas músicas que botei pra rodar, eu não urino no banheiro. Saio pela porta da frente e vou até os fundos. É um lugar mais elevado, afastado dos postes mais próximos e suas lâmpadas. Abro a braguilha, aponto o jato do coiso em direção à grama, olho pro céu e sou tomado por um encantamento, um momento mágico, uma vertigem me atravessa quando a beleza se descortina diante dos olhos, nada mais nada menos do que a imensidão deslumbrante da via láctea.
Perto do amanhecer,  depois que os taxistas conduzem algumas garotas até suas casas para despacharem as babás e levarem as crianças pra escola, Janete me leva ao seu quarto. Retira os brincos e os anéis, que parecem valiosos, e suas mãos calosas, como se fossem de diarista, guardam-nos num cofrinho sobre a cômoda.
Enquanto me distraio com os pequenos quadros e miniaturas de estátuas de Nossa Senhora aparecida sobre um pequeno santuário, ela vai pro chuveiro e logo retorna com seu pijaminho cor de rosa.
A lâmpada, de um avermelhado tímido, nos deixa mais bonitos. Ela se enrosca, estou meio acordado, meio dormindo, apanha meu sexo, ordeno para que aperte sem medo e ela massageia numa paciência comovente.
- Calma, meu bem, tenho meu tempo... Sou um cara de outro mundo.
- Eu sei, meu anjo, eu sei. Você não tá aqui por acaso.
O escroto, enfim, desperta.
Pelo que recordo, consegui a todo custo manter a ereção e levar Janete até o paraíso, mas imediatamente meu amigão desandou. Afobado, arranco a camisinha e massageio para que permaneça em pé. Esforço inútil.

Duas da tarde, ao me vestir, não acendo a luz pra não acordá-la. Ela ronca mansinho.
Se de madrugada, com aquele céu estrelado, tudo era magnífico, à tarde, quando me dirijo ao portão da saída da boate com a cabeça latejando e pesando toneladas e num calor de trinta graus, sinto-me às portas do inferno.
Na rua, além do calor, há um trânsito infernal. Nada de passar um táxi ou motoboy. (Não chamamos um táxi porque deixei meu celular em casa, e a bateria do aparelho da Janete estava descarregada).
Carrego o moletom no ombro, companheiro aconchegante à noite, agora um estorvo, vontade de depositá-lo na primeira lixeira, não o faço porque é meu agasalho preferido.
Caminho em direção ao centro, que fica a uns dois quilômetros. Que crise do caralho, sou cercado por crianças, índios Caigangues, com suas cestinhas e outros objetos de artesanato. Merda, a essa hora deveriam frequentar escolas de turno integral. Esse país vai de mal a pior. Jovens senhoras vendendo doces e salgados e uns caras vendendo frutas e panos de prato e muitos outros trecos. 
Na parada de ônibus reparo numa morena de uns vinte e poucos, camuflada num shortinho, tudo lindo a pele das pernas e costas e o cabelão e os lábios carnudos e tudo o mais me arrepia. Não perco tempo, me aproximo e pergunto se o ônibus pra Vila Esperança já passou.
A garota não esboça reação, como se eu fosse invisível. Chego mais perto, ela acompanha o movimento de meus lábios e faz uns gestos e de sua garganta sai um grunhido incompreensível. Imediatamente uma senhora que está próxima diz "passou faz uns dez minutos". Dezenas de pessoas me olham espantadas. Encharcado pelo álcool, elas parecem sem vida, como manequins das lojas. A única coisa que me passa pela cabeça é descer do ônibus perto de casa e tomar um café com leite, bem adoçado.
O lar me aguarda no lugar de sempre. Misturo o café, o leite em pó, apanho um pote e coloco três colheradas das grandes, só pra repor a glicose. Agito tudo com a colher e dou aquele gole. Puta que pariu! Em vez do pote com açúcar, eu apanhei o pote com sal. Caramba, mal deu tempo pra correr até o banheiro e vomitar.
Dou um stop diante do espelho. Do outro lado um ex-adolescente com cara de padre diz "a partir de hoje nascerá um novo homem". Ele ri até não mais.

(B. B. Palermo)

segunda-feira, 22 de abril de 2019

Diário do Cadelão



Ultimamente tenho me sentindo sozinho nesse mundo. Faz tempo que não como ninguém. Mas não é esse o motivo de tamanho sentimento de solidão. Já estive pior. Só fui comer uma beldade humana aos dezoito anos, depois dos primeiros soldos do serviço militar. Então, vislumbrando a velhice logo ali, passar um ano de punheta é fichinha, como diria Janusa.
Hoje me cobro da minha dificuldade de convívio. Quando chovia garotas, eu tinha pouca paciência e logo elas já iam embora. O medo agora, afastado delas, é de ter o coração mole, a ponto de idealizá-las, como se não tivesse aprendido com a brutalidade dos relacionamentos que vivi.
A Janusa, meus amigos, é o último traveco que chegou no puteiro da Janete. Olha, foi a Janete que jurou. "Putos, na minha casa, nunca mais!". A Janusa era da fronteira, e num mês de casa comeu todas as meninas. Traçou-as de graça, pra desgraça da Janete.
Meu sentimento de solidão vem acompanhado de uma ânsia de vômito, parecida com a do personagem Alex, depois de passar pelo tratamento Ludovico, no filme Laranja mecânica. Não, não meus amigos, não é pela impotência de não poder agredir alguém ao fazer sexo, como aconteceu com o personagem aquele. É por repugnar ações triviais.
Esses cretinos não falam da morte, da possibilidade da sua morte. Ninguém quer examinar as formas do belo e do justo. Todos querem analisar o melhor pó da cidade, o pau mais grande da cidade, o último hit do rádio, o carro com o som mais potente. Ouço o garoto de vinte e poucos anos falar da massoterapeuta ninfomaníaca, isso, uma garota que não consegue matar a fome, sempre quer foder mais e mais. Não acho engraçado ouvir esses imbecis endeusarem o sexo, ora bolas.
Doutor Murphy, na década de Setenta, disse que os felizes e os alegres, os de bem com a vida, esses não sonham, ou quase não lembram dos sonhos. Ele é muito ingênuo. Na visão Dele, sou mais um infeliz, pois constantemente me sacodem na cama terríveis pesadelos, e alguns sonhos espantam durante horas o meu sono. Sim. Às vezes parece que vírus saltitam nas veias, todas elas, as principais e as secundárias. Outras vezes são as ninfetas que despertam dentro do meu quarto, e rebolam, e rebolam... Vou poupá-los dos detalhes... Quando acordo estou esgotado, como se tivesse trepado horas e horas a fio.
Pensei essas coisas compondo as primeiras páginas do meu diário. A Janusa, hoje veterana de guerra, ao ler essas páginas me falou que diário é coisa de veado. E me lançou um olhar daqueles, enquanto empinava um litro de ceva, cara... Deus do céu!

(B. B. Palermo)


Será belo o nosso mundo quando soubermos liberar a energia mental para o bem de todos. 

(Chico Xavier)

segunda-feira, 15 de abril de 2019

Cada um tem os chatos que merece


Quando bebo com o Zé Franco Atirador, meço minhas palavras como quem pisa em ovos. Ele naufragou nas visões de mundo dos filósofos existencialistas. Se não está satisfeito com a vida que leva, óbvio que as coisas e pessoas que o cercam são fodidas. Não vê como nobre o seu dia, ao acordar as cinco horas da manhã e permanecer ativo até as nove da noite. Adormece e não sonha. Ronrona como uma pedra, devido aos tarja preta. Seu dia se resume em estar acordado e fazer tudo certinho, do trabalho às refeições e ao lazer.

Devidamente acomodados numa mesa na calçada diante do bar, à queima roupa, Ele pergunta o que tenho feito, e quais são meus planos para esse e para os anos que virão. Seja qual for minha resposta, vejo-o embriagar-se, mesmo que tenha sugado apenas uma caneca e meia de cerveja. Ele me joga um sentimento de culpa, eu me deixo afetar, como um adolescente desnorteado.
Minha conversa o aborrece.
 Sei, concordo, concateno meias-verdades, digo coisas espalhafatosas, tais como me inscrever num concurso de contos, ou de poesias, e que um dia ainda vou ser reconhecido, não importa que seja depois de morto. Não tenho idade nem estômago para levar uma vida normal, como a de um funcionário público ou vendedor ou professor ou pedreiro ou encanador.
 É o suficiente pra despencar um aguaceiro. Soca a mesa e o ar, triplica o volume de sua fúria.
- Tu tá de sacanagem!
Pra ele, meus desejos não passam de  delírios, e a lógica de meu discurso é não ter qualquer lógica. Ordena-me a leitura (é sério) da analítica de Aristóteles.
O Geni, atrás do balcão do bar, observa-nos apreensivo. Não quero confusão. O Geni é fortão, e tem a seus pés um enorme cão de guarda, um taco de beisebol.
Simplesmente murmuro:
- Você tem toda razão.
O estrago está feito. Pede a conta, não deixa que Eu contribua com algum dindim,  e volta para casa.
Meu efeito psicológico é retardado. Permaneço no bar e encho a cara. Mas, mesmo de porre, tudo reacende na minha memória, e não tem outro jeito senão ouvir blues e sugar litros de cerveja e ligar pra Janete, a cafetina veterana que me dá colo nas horas da mais completa escuridão.
Juro, nos próximos dias, vou dar um tempo a esses sujeitos que considero uns chatos. Porra, não posso delirar e muito menos sonhar. O que me resta?
Ele é mais um que se junta ao bando de que desejo me afastar. Eles têm opinião pra tudo. Eles sabem como é e como deveria ser a vida dos outros.
Desconfio que nem você, nem meus amigos, acreditam na pureza de meus princípios. Tudo bem. Nem Eu acredito.
Poderias dizer que minha vida se compara à de uma formiga, ou barata, ou de um sabiá, que a natureza permite cantar apenas na primavera. Ou, que seja, de um boi saudável. Uma vida que se resume em aguardar por horas pra conferir os números da loteria ou do jogo do bicho, com a adrenalina que parece à do bêbado ou do viciado.
Que se resume em dizer, com uma indisfarçável má-fé,  que faço meditação, que faço caminhadas diárias, que tenho uma prateleira cheinha de alimentos naturais e chás e incensos.
Que se resume em esperar a namorada, que trabalha três turnos, que se dane, eu quero é que ela venha ofegante, me chupe e me cavalgue, eu quero é pra hoje, foi pra isso que abri mão de estar sozinho no mundo, e me esforcei pra me adaptar a essa palhaçada chamada "convenções sociais".
Sim, sei, vocês diriam:
- Cadelão desvia o foco, olha pra vida e os defeitos dos outros pra disfarçar o cotidiano medíocre que o sufoca. Sua válvula de escape, os momentos de glória, se dão quando corre pro bar pra desfrutar a companhia sagrada desses chatos.
Nessa altura dos episódios, sou obrigado a concordar com vossas sábias palavras:
- Cadelão, você está no mesmo nível deles, ou seja, surfa na mesma merda.
Amigos, ontem o Beiço acendeu uma lanterna nessa escuridão. Ele disse:
- Como você me apresentou o Zé Franco Atirador, vou te apresentar o Zé Pinto Sonhador. Imagine um cara que lê as notícias e fofocas de crimes sexuais, de pedofilia, de estupros, com a mesma avidez de quem desfruta seu chocolate predileto. Um sujeito que sacia a fome sexual com tragédias de crianças e adolescentes estupradas, retalhadas e mortas. E que lê e se delicia com todos os comentários raivosos e indignados nas redes sociais, afirmando a necessidade da pena de morte, ou invocando a providência divina e seu castigo eterno implacável. E que ao mesmo tempo tem um tesão formidável e acelera as punhetas, viajando por cenários paradisíacos e ninfas incríveis de tirar o fôlego. Imagina, Cadelão, como seria o perfil da criatura no Tinder. No padrão, sua foto de perfil seria sem camisa exibindo um corpo sarado. E ele vai usar alguma estratégia para insinuar que tem um pau acima da média.
Beiço estava filosófico. Eu não considerei isso chato. Milagre. Ele prosseguiu:
- Imagine você no bar escutando por horas a conversa desses malucos. Só o suicídio nos liberta dessa gente. Vai por mim, Cadelão, é hora de pensar em como os outros te enxergam. De dentro é normal vermos em nós mesmos as mesmas coisas. Mas de fora, os outros percebem... Além de uma alma corrompida e fútil, eles sacam o envelhecimento, cada vez mais galopante, de nossa carcaça. Consola-te. Você sempre tem a opção de estar sozinho. Bukowski, por exemplo, não suportava as pessoas quando elas estavam por perto. Preferia mantê-las bem longe. Vai por ele. Vai por ti.

(B. B. Palermo)


terça-feira, 9 de abril de 2019

Falem de mim sem bajular



Você é o que contam sobre você. 
Não nas horas do puxa-saquismo, 
e sim algum tempo depois 
que estiver morto.



(B. B. Palermo)

sábado, 6 de abril de 2019

Pode deixar que eu resolvo


Uma canafístula de uns 80 anos. Ela reinava no pátio, enquanto esperava a morte, e vendavais ameaçavam jogar seus galhos pra cima de telhados de casas e prédios.
Estou de cuecas, fugindo do banho há uns três dias e me requebrando na sala pra não tropeçar nas garrafas vazias espalhadas pelo chão. Batem à porta. É uma gorda, a dona da pensão, acompanhada da sobrinha, uma garota com cabelos negros cacheados e olhos negros, mais curiosos do que tímidos.
A dona trovejou: "Sr. Palermo, que tal servir pra alguma coisa, além de atrasar o aluguel? O senhor não conhece um lenhador que corte aquela árvore, e recolha toda a lenha e galhos? A vizinhança está preocupada, e enche o meu saco nas reuniões de condomínio".
Prometi que consultaria meus amigos pra ver se conheciam alguém confiável.

A vida Dela é uma sucessão de penitências. Alguns anos depois de casada, perdeu o marido e herdou uma gastrite e o intestino preso. Por algum tempo fez dietas, que não passavam de conselhos de amigas nas salas de espera dos consultórios médicos e dos salões de beleza. Hoje, Ela carrega livros pra todo lado, e noto que trazem uma visão otimista da vida. 
A dona, os moradores dos prédios, o cadelão bêbado que se acha escritor e que atrasa o aluguel, todos, no fundo, são uns "pobres". Foi o que me veio.
Minha pobre gorda, tenho um sentimento ambíguo a teu respeito, apesar do olhar de escárnio que me diriges. Juro que aceito deitar ao teu lado e concentrar meu imaginário no que foste um dia, ou no que poderias ter sido, com tuas paixões e planos e crises de ansiedade e sentimento de inferioridade que herdaste dos pais.
Nos primeiros meses morando ali recebi um tratamento digno, graças ao currículo que inventei.  Porém, depois de tantos porres e musica alta tarde da noite e garrafas e copos espatifados contra as paredes minha reputação despencou no abismo.

No bar, comento com meus amigos a respeito do drama doméstico por causa da velha árvore. Cada um tem uma opinião diferente sobre como proceder para matar e esquartejar uma canafístula com mais de vinte metros de altura.  
Dr. Biza agarrou a conversa e não largou mais. Desde a infância trepa nas árvores mais altas, ágil como um macaquinho. Hoje em dia poda as árvores dos quintais da sua família, amigos e vizinhos, e inclusive as do pátio da casa da sogra. Puteou esses lenheiros picaretas, disse que eu devia era manter distância.
Seu cunhado emprestaria cordas e escada e motosserra e ele botaria abaixo a "peltophorum" por uma bagatela. (Para nosso espanto, Biza sabia inclusive o nome científico da árvore).
A grana seria aplicada num churrasco mais uns fardos de latões de cerveja.
Opa - esfreguei as mãos - isso parece bom.
Para deixá-lo mais curioso, insinuei detalhes da dona. Podia ser cheinha, mas tinha um rosto lindo, muito expressivo, deve ter sido uma bela ninfa quando jovem. E, pelo que recordo, tem tatuagens no dorso de um pé, nas duas panturrilhas, nos ombros e no dorso das mãos. E, emendei, imagino que a sobrinha também deve ser fissurada por tatuagens, embora não tenha notado, devem estar escondidas em lugares paradisíacos, e eu quero um dia visitar esses lugares só pra me derreter com sua beleza.
Empolgado, Biza prometeu na tarde do dia seguinte dar uma vasculhada na gigante anciã.
Duas da tarde do outro dia o Biza desceu do carro e marchou, como um ex-militar, em direção à frondosa árvore. Olhou para cima, desde o tronco até o último galho, e exclamou: "Nossa, como é grande!". Fez cálculos mentais e também com os dedos das mãos pra saber como passar a corda nos galhos mais altos para evitar que caíssem sobre telhados, como e onde posicionar a escada, e eu estava curioso, e tinha receio, como meu amigo vai retalhar essa gigantona? Pensei: "A missão Dele é bem mais complicada que a do açougueiro, que em poucas horas transforma o boi em peças de chuletas e picanhas e costelas e etcétera e tal".
No momento eu senti que havia algo de errado com o Doutor. Ele ajuda tanta gente com suas massagens e receitas de chás e palavras pra botar o sujeito pra cima, mas não sente remorso ao assassinar uma indefesa árvore octagenária.
Com uma cara nada convincente, Dr. Biza disse que daí a pouco teria umas consultas e que amanhã à tarde viria com as ferramentas. Perguntei se precisava de ajuda e ele respondeu: "Pode deixar que eu resolvo".
Ontem de tarde, enquanto eu estava rodeado de putas na casa da Janete, meu amigo foi executar a primeira parte da empreitada: cortar os galhos mais altos, usando cordas, para evitar que caíssem sobre os telhados. Liguei pra ele algumas vezes durante a operação, mas seu celular estava desligado.
Eis que à tardinha recebo uma mensagem: “Fui lá mas não deu certo".
 Ligo para ele. O celular está desligado. E permanece desligado durante a noite e todo dia seguinte.

A meteorologia diz que neste mês estaremos livres de vendavais e tormentas e ventanias. Pra não ter pesadelos em madrugadas de ventos fortes, pensei num plano B: mudar pra outra pensão, noutro bairro, sem árvores enormes e donas neuróticas e sobrinhas insinuantes pra torturar meus fantasmas. Mas estou sem grana e o aluguel está por vencer. Não suporto clichês, porém não há outro jeito, por enquanto vou ter que "empurrar com a barriga".

(B. B. Palermo)


segunda-feira, 1 de abril de 2019

O desamparado quer falar



Final de tarde, cruzo por um casal de garotos que transporta um gato numa gaiola.
O bicho mia de um jeito estranho, e isso me angustia.
Aos gemidos do gato, o menino e a menina, embaraçados, não sabem o que fazer, enquanto as pessoas observam.
A garota, com uma voz que se apegou à infância, implora para que o gato se acalme.
A cena me leva a pensar no meu desamparo.
Também me sinto um felino que deixou de rosnar, livre, pelas florestas,
e hoje dá seus miados de torturado, acorrentado numa gaiola.
Meu desamparo se define como um sentimento de solidão misturado a uma tristeza quase silenciosa, como o zumbido no ouvido do ancião.
Constato que nenhuma companhia, pelo menos das pessoas que me rodeiam, aplacaria tal sentimento.
Até admiro essa garotada que anda em tribos, que se amparam uns nos outros, desempenham vários papéis,
parecendo sempre sintonizados, como se fossem irmãos mais velhos, pais, filhos, parentes, namorados.
Gostaria de ser assim.
Mas não me adaptaria.
Penso coisas fora do padrão.
Cada vez mais desconfio e tenho medo desses jovens que andam em bandos.
Sozinhos são umas bonecas.
Porém, na tribo se sentem autorizados a fazer merda, como incendiar índios e mendigos e andarilhos.
Outras coisas me desconcertam.
Estranho ouvir essa garotada com voz pré-adolescente falando de carros, preços e marcas,
de gêneros musicais e filmes e pseudo-teorias filosóficas e científicas,
com convicção e conhecimento a ponto de deixar orelhas vibrando.
Eles, inclusive, tudo sabem sobre o comportamento e preferências dos clientes.
O desamparado não consegue imaginar e aceitar bovinamente que a garotada vá se escorar no mesmo gosto e visão e convicção pro resto da vida.
Essa garotada, com sua rotina e discurso previsível,
se assemelha aos ratos de laboratório,
cobaias servindo a interesses maiores, que ainda bem que não sei dizer quais são.
Ouço esses jovens universitários, empolgados pelas mesas dos bares.
Muitos são advogados ou engenheiros ou veterinários.
O que têm em comum é que  espalham faceiramente todo o seu saber.
As leis que regem os contratos de casamento, regime de união e separação de bens, obrigações e valores de pensões alimentícias, etc.
Papagaios adoram atropelar e ultrapassar verbalmente os outros nas mesas dos bares.
 Esses bandos, em tese, apenas em tese, conhecem as dores de amores que perpassam as relações afetivas.
É possível um sujeito transcender, ir além de ter uma casa, um carro, uma família, um discurso padronizado,
e questionar a linearidade e previsibilidade disso tudo?
Deve haver uma salvação.
O engenheiro pode ser também vocalista de uma banda, pintar quadros ou escrever poemas, mesmo que sejam ruinzinhos.
Pode ser voluntário num projeto social do bairro, ou cantar no coral da igreja ou ser ativista pela causa dos animais.
Acho que às vezes precisamos clicar na opção "mute", dar um tempo e ter distanciamento das novelas e big brothers,
e captar alguns momentos mágicos que poderão acordar nossa vida.
Precisamos transcender a teoria, ir pra rua, sentir a dor do gato,
e também as vozes agudas ou graves, infantis ou adultas, das pessoas e bichos que nos rodeiam.

(B. B. Palermo)

O PATIFE tá enrolando de novo

Quando fui acertar a conta no bar, pendurada nos últimos dias, o bolicheiro não encontrou, no caderno, o meu nome. Ao repassar a longa l...