sábado, 6 de abril de 2019

Pode deixar que eu resolvo


Uma canafístula de uns 80 anos. Ela reinava no pátio, enquanto esperava a morte, e vendavais ameaçavam jogar seus galhos pra cima de telhados de casas e prédios.
Estou de cuecas, fugindo do banho há uns três dias e me requebrando na sala pra não tropeçar nas garrafas vazias espalhadas pelo chão. Batem à porta. É uma gorda, a dona da pensão, acompanhada da sobrinha, uma garota com cabelos negros cacheados e olhos negros, mais curiosos do que tímidos.
A dona trovejou: "Sr. Palermo, que tal servir pra alguma coisa, além de atrasar o aluguel? O senhor não conhece um lenhador que corte aquela árvore, e recolha toda a lenha e galhos? A vizinhança está preocupada, e enche o meu saco nas reuniões de condomínio".
Prometi que consultaria meus amigos pra ver se conheciam alguém confiável.

A vida Dela é uma sucessão de penitências. Alguns anos depois de casada, perdeu o marido e herdou uma gastrite e o intestino preso. Por algum tempo fez dietas, que não passavam de conselhos de amigas nas salas de espera dos consultórios médicos e dos salões de beleza. Hoje, Ela carrega livros pra todo lado, e noto que trazem uma visão otimista da vida. 
A dona, os moradores dos prédios, o cadelão bêbado que se acha escritor e que atrasa o aluguel, todos, no fundo, são uns "pobres". Foi o que me veio.
Minha pobre gorda, tenho um sentimento ambíguo a teu respeito, apesar do olhar de escárnio que me diriges. Juro que aceito deitar ao teu lado e concentrar meu imaginário no que foste um dia, ou no que poderias ter sido, com tuas paixões e planos e crises de ansiedade e sentimento de inferioridade que herdaste dos pais.
Nos primeiros meses morando ali recebi um tratamento digno, graças ao currículo que inventei.  Porém, depois de tantos porres e musica alta tarde da noite e garrafas e copos espatifados contra as paredes minha reputação despencou no abismo.

No bar, comento com meus amigos a respeito do drama doméstico por causa da velha árvore. Cada um tem uma opinião diferente sobre como proceder para matar e esquartejar uma canafístula com mais de vinte metros de altura.  
Dr. Biza agarrou a conversa e não largou mais. Desde a infância trepa nas árvores mais altas, ágil como um macaquinho. Hoje em dia poda as árvores dos quintais da sua família, amigos e vizinhos, e inclusive as do pátio da casa da sogra. Puteou esses lenheiros picaretas, disse que eu devia era manter distância.
Seu cunhado emprestaria cordas e escada e motosserra e ele botaria abaixo a "peltophorum" por uma bagatela. (Para nosso espanto, Biza sabia inclusive o nome científico da árvore).
A grana seria aplicada num churrasco mais uns fardos de latões de cerveja.
Opa - esfreguei as mãos - isso parece bom.
Para deixá-lo mais curioso, insinuei detalhes da dona. Podia ser cheinha, mas tinha um rosto lindo, muito expressivo, deve ter sido uma bela ninfa quando jovem. E, pelo que recordo, tem tatuagens no dorso de um pé, nas duas panturrilhas, nos ombros e no dorso das mãos. E, emendei, imagino que a sobrinha também deve ser fissurada por tatuagens, embora não tenha notado, devem estar escondidas em lugares paradisíacos, e eu quero um dia visitar esses lugares só pra me derreter com sua beleza.
Empolgado, Biza prometeu na tarde do dia seguinte dar uma vasculhada na gigante anciã.
Duas da tarde do outro dia o Biza desceu do carro e marchou, como um ex-militar, em direção à frondosa árvore. Olhou para cima, desde o tronco até o último galho, e exclamou: "Nossa, como é grande!". Fez cálculos mentais e também com os dedos das mãos pra saber como passar a corda nos galhos mais altos para evitar que caíssem sobre telhados, como e onde posicionar a escada, e eu estava curioso, e tinha receio, como meu amigo vai retalhar essa gigantona? Pensei: "A missão Dele é bem mais complicada que a do açougueiro, que em poucas horas transforma o boi em peças de chuletas e picanhas e costelas e etcétera e tal".
No momento eu senti que havia algo de errado com o Doutor. Ele ajuda tanta gente com suas massagens e receitas de chás e palavras pra botar o sujeito pra cima, mas não sente remorso ao assassinar uma indefesa árvore octagenária.
Com uma cara nada convincente, Dr. Biza disse que daí a pouco teria umas consultas e que amanhã à tarde viria com as ferramentas. Perguntei se precisava de ajuda e ele respondeu: "Pode deixar que eu resolvo".
Ontem de tarde, enquanto eu estava rodeado de putas na casa da Janete, meu amigo foi executar a primeira parte da empreitada: cortar os galhos mais altos, usando cordas, para evitar que caíssem sobre os telhados. Liguei pra ele algumas vezes durante a operação, mas seu celular estava desligado.
Eis que à tardinha recebo uma mensagem: “Fui lá mas não deu certo".
 Ligo para ele. O celular está desligado. E permanece desligado durante a noite e todo dia seguinte.

A meteorologia diz que neste mês estaremos livres de vendavais e tormentas e ventanias. Pra não ter pesadelos em madrugadas de ventos fortes, pensei num plano B: mudar pra outra pensão, noutro bairro, sem árvores enormes e donas neuróticas e sobrinhas insinuantes pra torturar meus fantasmas. Mas estou sem grana e o aluguel está por vencer. Não suporto clichês, porém não há outro jeito, por enquanto vou ter que "empurrar com a barriga".

(B. B. Palermo)


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