quinta-feira, 14 de maio de 2020

As vozes das garotas zumbiam como vespas assassinas



À tardinha eu ia até a casa de um amigo apanhar uns pratos de comida congelada que ele e sua mulher fazem, almôndegas e lasanhas e empanados e massas, muito saborosas, eu moro sozinho e o futuro é imprevisível e nessa época seria terrível não ter comida para o dia de amanhã, e eu preciso estocar congelados e arroz e feijão e produtos de limpeza e papel higiênico.
Bah, de novo esqueci de comprar sabonete.
Vislumbrei o primeiro bar e de uma mesa Dom Carlone e o Beiço me chamaram, oba, alguém vai patrocinar umas biritas.
Antes de atravessar a rua um letreiro infeliz ergueu a mão: Stop! Assim, bem assim, tu não vai a lugar nenhum!
Olhei para os lados, o trânsito e as pessoas seguiam seu curso, a porra do letreiro era um mané e não sei por que eu estava há uns quatro dias sem tomar banho.
Algumas horas no bar, bebida à altura da minha sublime retórica e minha inesquecível companhia.
Caprichei nas rimas e métricas e metáforas e figuras e conceitos e aliterações e dicção e entonação vocal.
O álcool pegando e a memória falhando, daí a pouco os FDP falaram Todo mundo é poeta, tanta gente é melhor do que tu. Cadelão, por que não te matas?
Lembrei dos pratos congelados e do casal de amigos e deduzi pela hora que eles estavam impacientes como pedras e com muita raiva e então deixei pra lá.
Retornei ao lar, de madrugada, e tropecei e deslizei na lama, choveu tenho quase certeza, acho que errava o caminho, e eis que uma orquestra perfilou-se diante de meus olhos e tocou e tocou, eu identifiquei, era Wagner e eu exclamei Puta merda! 
Fazia muito tempo que não me achava no direito de perguntar se era feliz.
Minutos depois a música ficou chata e repetitiva e eu chorei como um bebê e implorei Cadê a Ave Maria do Schubert? Cadê cadê?
Fui em frente e vozes de garotas zumbiam como vespas assassinas enquanto acariciavam minhas orelhas:
Meninas, não é verdade que o Cadelão é um babaca escroto?
Meninas, não é verdade que o Cadelão é um sujo?
Meninas, não é verdade que por onde ele anda deixa um rastro de lama?
Segui meu caminho, eu me conheço e tenho o céu por testemunha e a rua deserta e a lua e as estrelas sorrindo só para mim. Revirava os bolsos à procura das chaves, Cadê? Cadê?
Enquanto isso os astros riam e assopravam em coro: Veja bem, bobinho, tanta gente leva uma vida mais interessante do que tu.
Pensei ficar calado, mas protestei: Cretinos, NUNCA ESTIVE TÃO LÚCIDO, sei mais do céu e do inferno e das coisas da terra do que vocês!
Tentava lembrar se tinha cachorro ou gato para dormir comigo e para provar que alguns seres gostam do poeta.
Abri a porta e deslizei para dentro da sala e uma voz grave me fez recuar: O mundo gira, Cadelão, vidas se gastam e tu aí escalando telhados e poluindo o planeta com esse bafo de príncipe.
Botei as Bachianas brasileiras do Villa Lobos pra tocar. Estava uma bosta. Botei um blues instrumental. Estava uma bosta. Juntei toneladas de roupa suja e botei a máquina pra funcionar e fui tomar banho.

(B. B. Palermo)

Toda Lorena

  Olhava pro fogo mágico do entardecer, que mais parecia uma lareira mandando bem em viagens noutras esferas. Me encanto ao ver minha musa p...