À tardinha eu ia até a casa de um amigo apanhar uns pratos de
comida congelada que ele e sua mulher fazem, almôndegas e lasanhas e empanados
e massas, muito saborosas, eu moro sozinho e o futuro é imprevisível e nessa
época seria terrível não ter comida para o dia de amanhã, e eu preciso estocar
congelados e arroz e feijão e produtos de limpeza e papel higiênico.
Bah, de novo esqueci de comprar sabonete.
Vislumbrei o primeiro bar e de uma mesa Dom Carlone e o Beiço me chamaram,
oba, alguém vai patrocinar umas biritas.
Antes de atravessar a rua um letreiro infeliz ergueu a mão: Stop! Assim, bem assim, tu não vai a lugar nenhum!
Olhei para os lados, o trânsito e as pessoas seguiam seu curso, a porra
do letreiro era um mané e não sei por que eu estava há uns quatro dias sem
tomar banho.
Algumas horas no bar, bebida à altura da minha sublime retórica e minha
inesquecível companhia.
Caprichei nas rimas e métricas e metáforas e figuras e conceitos e
aliterações e dicção e entonação vocal.
O álcool pegando e a memória falhando, daí a pouco os FDP falaram Todo
mundo é poeta, tanta gente é melhor do que tu. Cadelão, por que não te matas?
Lembrei dos pratos congelados e do casal de amigos e deduzi pela hora
que eles estavam impacientes como pedras e com muita raiva e então deixei pra lá.
Retornei ao lar, de madrugada, e tropecei e deslizei na lama, choveu tenho quase certeza, acho que errava o caminho, e eis que uma orquestra
perfilou-se diante de meus olhos e tocou e tocou, eu identifiquei, era Wagner e
eu exclamei Puta merda!
Fazia muito tempo que não me achava no direito de
perguntar se era feliz.
Minutos depois a música ficou chata e repetitiva e eu chorei como um
bebê e implorei Cadê a Ave Maria do Schubert? Cadê cadê?
Fui em frente e vozes de garotas zumbiam como vespas assassinas enquanto acariciavam
minhas orelhas:
Meninas, não é verdade que o Cadelão é um babaca escroto?
Meninas, não é verdade que o Cadelão é um sujo?
Meninas, não é verdade que por onde ele anda deixa um rastro de lama?
Segui meu caminho, eu me conheço e tenho o céu por testemunha e a rua
deserta e a lua e as estrelas sorrindo só para mim. Revirava os bolsos à
procura das chaves, Cadê? Cadê?
Enquanto isso os astros riam e assopravam em coro: Veja bem, bobinho,
tanta gente leva uma vida mais interessante do que tu.
Pensei ficar calado, mas protestei: Cretinos, NUNCA ESTIVE TÃO LÚCIDO,
sei mais do céu e do inferno e das coisas da terra do que vocês!
Tentava lembrar se tinha cachorro ou gato para dormir comigo e para
provar que alguns seres gostam do poeta.
Abri a porta e deslizei para dentro da sala e uma voz grave me fez
recuar: O mundo gira, Cadelão, vidas se gastam e tu aí escalando telhados e poluindo o planeta com esse bafo de príncipe.
Botei as Bachianas brasileiras do Villa Lobos pra tocar. Estava uma
bosta. Botei um blues instrumental. Estava uma bosta. Juntei toneladas de roupa
suja e botei a máquina pra funcionar e fui tomar banho.
(B. B. Palermo)
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