domingo, 11 de janeiro de 2009
ELA (III)
Cabelos negros e lisos e boca carnuda. O guarda-pó não me distrai de sua beleza. Meus sapatos, instintivamente, ficam apertados.
Pés crescem livres pelo campo. No dia da Primeira Comunhão, era doloroso calçar os sapatos. A missa, até a altura do sermão, era a experiência da eternidade sem prazer. Dedão latejando, unha encravada, bolhas nos pés.
Páscoa. Ressurreição. Vendaval de lembranças no caminho da infância e adolescência. Boca carnuda e cabelos negros e lisos. Seios despontando como rosas vermelhas em meio às pedras do quintal.
Distraio-me olhando para o teto da Igreja. Vivo todos os passos do calvário de Jesus. A traição do Judas, a companhia consoladora de Nossa Senhora e Maria Madalena.
Ela tem cabelos negros e lisos e boca carnuda. Nas laterais da Igreja, vitrais fitam-me e despejam personagens bíblicos pra dentro de minha alma. Sussurram bom comportamento. Serei indigno se não suportar a fila do confessionário. Padre, me apaixonei. Fiz coisas feias. Briguei com meus irmãos e colegas de aula. Desobedeci meus pais... Reze dez ave-marias e cinco Pai nossos. Vá em paz e que Deus te acompanhe.
Anestesiado, diante do altar, não sinto meus sapatos apertados. O dedão parou de latejar. Minhas orações tentam abafar cabelos negros e lisos e boca carnuda. Segredos que não confessei minutos antes. Eis o meu tormento.
De tanto repetir as mesmas preces, ajoelhar e entoar os velhos cânticos, fechei as comportas para transbordar o lago da resignação. A paixão enredou-se no hábito, ainda não fez a curva do caminho.
Finalmente, ela libera seu olhar. Os pés latejam. Cabelos negros e lisos e boca carnuda são bolhas nos pés. Cão a morder o próprio rabo. A paixão, que se perdeu por aí, prisioneira do hábito, se digladia.
Não há teto e vitrais. O calvário de Jesus se esqueceu nas curvas do passado. No mercadinho, minha paixão quer me salvar. Mas os pés latejam. Preciso encontrar o paraíso. Superar a primeira confissão.
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