(...) Ontem vou dobrar a esquina da rua Irineu Marinho
quando uma voz me chama: - "Nelson, Nelson!". Viro-me e dou de cara
com um gordo, desses que têm uma papada maior do que a de Dumas pai. Não sei se
sou famoso. Mas admitindo que o seja, tenho um tipo de ralação inefável: - o
"desconhecido íntimo". São sujeitos que eu nunca vi e que me tratam
com uma intimidade jucunda e fulminante. Pois o gordo citado já abria para mim
riso total.
Antes de me estender a mão enxugou-a num vasto lenço,
explicando: - "Suo muito nas mãos". De minha parte tive bastante
descaro e o tratei como a um amigo de infância. E ele me perguntava: - "Não
se lembra mais de mim?". Há um suspense
e o desconhecido íntimo insiste: - "Vê bem". Palavra de honra, eu não
me lembrava. Ao longo de minha vida tenho tido vários amigos gordos. Mas não
conseguia me lembrar nem daquela papada, nem daquelas bochechas. Na minha
frente ele continuava a enxugar as mãos de um suor talvez imaginário.
E, súbito, exausto do suspense,
o outro dá o berro: - "Eu sou o Neves!". Sim, era um Neves radiante
de o ser. O Neves, o Neves! E o simples nome deflagrou em mim todo um
maravilhoso fluxo de memória. Na minha infância profunda o Neves fora meu
vizinho. Muitas vezes pulara eu o muro para ir roubar carambolas no seu
quintal. Disse-lhe: - "Se me lembro!". E, já varado de nostalgia,
suspirei: - "Bom tempo, bom tempo".
(...)
Foi uma conversa, entre nós dois, que se arrastou por hora,
hora e meia. Falta-me espaço para contar todas as verdades eternas que dissemos
um ao outro. Mas estava ficando tarde e quis me despedir. Foi aí que, mudando o
tom, o Neves exala um gemido. Baixando a voz, começa: - "Preciso de uma
opinião, um palpite". Novo gemido. - "É o seguinte: tenho uma filha
linda, linda. Dezoito anos, aluna da PUC, um crânio. Mais inteligente do que eu,
do que a mãe, do que os tios. Um portento. A garota estava noiva de um rapaz de
vinte anos". Faz uma pausa e puxa um cigarro. Ou por outra: - o Neves não
fuma. Não puxa o cigarro e diz trêmulo: - "Com data marcada para o casamento,
minha filha se apaixona, e sabe por quem?".
Disse, por entre lágrimas: - "Por um velho". E
como ele chorava na via pública ao meu lado, tive uma vergonha brusca e
desalmada daquele pranto de gordo. Não sei por que, talvez injustamente, sempre
achei que a lágrima do magro constrange menos. Apelei: - "Não faça
isso!". Olhava para os lados, esbaforido, como se o homem que chora fosse,
por isso, obsceno: - "Filha única! Filha única!". Arrisquei a
pergunta: - "Mas é tão velho assim?". Disse: - "Quarenta
anos!".
O Neves estaria disposto a aceitar que a menina deixasse um
jovem por outro jovem. E repetia, desatinado: - "Mas, por um velho! Um
velho!". Digo-lhe: - "Calma, calma!". Pula, furioso: -
"Você diz calma porque a filha não é sua. Nós somos calmíssimos com as
filhas dos outros. Queria ver se fosse contigo. Responde: não é uma tragédia?" Fui
taxativo: - "Tragédia nenhuma! Pelo contrário: sorte para sua filha, sorte
para você, para a sua mulher, para a sociedade brasileira. Você e o Brasil
estão de parabéns". Aterrado, balbucia: - "Que piada é essa?".
Tive de jurar-lhe que não fazia nenhuma piada. Estava
falando com uma seriedade total. Expliquei o que acho: - a esposa pode ter
qualquer idade e não importa. Mas o marido não pode ser jovem. É trágica a
união do homem e da mulher da mesma idade. Falei da minha experiência pessoal.
Aos vinte anos eu não sabia como se cumprimenta uma mulher, como se diz
"bom dia" a uma mulher, como se olha, ou sorri para uma mulher, como
se protege e como se salva uma mulher. Claro que, aos dezessete, vinte anos, o
sujeito tem uma plenitude de bárbaro. Mas é uma vitalidade cega, feroz,
destrutiva. Quando marido e mulher são jovens a convivência é o próprio
inferno. Nunca se improvisou um marido. Marido é métier, é tempo, é virtuosismo, sabedoria, lúcida paciência.
O Neves repetia, fora de si: - "Mas o cara tem quarenta
anos!". Parecia-lhe que, aos quarenta anos, o homem é de uma velhice
infinita, milenar. Achei graça no seu terror. Disse-lhe que, a partir dos
quarenta, o homem já pode ser marido. Aprendeu fazendo sofrer outras mulheres,
dilacerando outras mulheres. Ao passo que, aos vinte, com a sua feroz
vitalidade sem alma, ele pode ser tudo, menos marido. Não tem nem alma, porque
a alma vem depois, vem com o tempo. Neves ouvia, atônito. Por fim, admitiu: -
"Realmente, aos vinte anos eu era uma boa besta". E pergunta, quase
convertido: - "Quer dizer que não é uma desgraça?". Só faltei jurar:
- "Uma sorte grande" (...).
Do livro O óbvio ululante. Companhia Das Letras.
Nenhum comentário:
Postar um comentário