Velho, tá complicado atravessar essa quarentena. Teoricamente quero me
tornar sujeito melhor, menos corrompido, mas na prática a bebida fala mais
alto.
Meus amigos de um posto de combustíveis deixam-me sentar num cantinho da
loja de conveniência. Pulo um cordão de isolamento e me refugiu num pequeno
espaço, sento num banquinho e escondo a cerveja e o copo atrás de uns objetos e
faço de conta que escrevo, compenetrado, incríveis poemas e fascinantes ensaios.
A toda hora chegam os caras da POE, sei lá se indo ou se voltando do
serviço, e é impressionante, eles não notam minha presença. A concentração se
vai, o foco idem, como é que é, os cretinos não vão dar crédito pro poeta? Tu
acha, maluco, que pra polícia eu sou invisível?
O sol atravessa as janelas do bar e a garçonete pede se eu quero que ela
feche as cortinas. Não - respondo. É um crime não aceitar a companhia desse sol
de abril. Além do mais, Baby, o deus sol, que nos observa e aquece e cuida, nos
dá de graça vitamina D.
Em casa o tédio anda de muletas, e os cães do bairro ficam sem graça e
latem por qualquer coisa e evaporam seu repertório, e eu me pergunto por que
não tenho contemplado detalhes do que me cerca com o mesmo entusiasmo de outros
tempos. Não posso esquecer de exercitar os cinco sentidos e multiplicar pelo
menos por 10 o uso da imaginação.
Quando um ônibus dobra a esquina e bate de frente com meus olhos, tento
rabiscar uma boa frase. Então o celular me desperta, Tininha envia uma
mensagem. Merda, esqueci de deixar o aparelho no silencioso, não quero agora me
preocupar com ela.
Daqui do meu cantinho visualizo o monitor do computador do caixa do bar,
e na tela aparece o número 111. Bingo, vou apostar no Bicho. Aí a garçonete me
lembra do isolamento, as bancas de jogo também estão de quarentena.
É isso. Restou-me apenas um jogo: roleta russa, com a Tininha. Regado
com bom estoque de cerveja e paciência. Confesso que ela é a parte mais dolorida
desses dias. Sua quarentena lembra as TPMs, e eu também fico pilhado com sua
implicância, e então é aquela tentação, como aconteceu várias outras vezes, desejo
partir pra uma DR.
Muito louca. É a mudança de rotina, quase não sai pra rua, nada de
festas e outros programas com suas amigas, e depois isso: Tininha agarra meu
calcanhar, bah, cara, não tenho escrito porra nenhuma, quero distância do
teclado do noty, sim, como se o infeliz também estivesse contaminado pelo
vírus. A doidona... e seus amigos. Eles não conseguem ter vida normal sem frequentar
academia. Credo, não leia suas postagens
no Facebook. É cada coisa que as criaturas se envolvem, brincadeirinhas
e polêmicas na política, por não suportarem o tédio do tempo livre.
Eu me pergunto: o que as amebas e os vermes e as bactérias e os vírus
estão tramando nesse exato momento? Aposto que num século vindouro qualquer
eles vão foder com os humanos. Sim, cara, com certeza eles estão se
aperfeiçoando, enquanto os homo sapiens babacas, em vez de valorizarem e
investirem na ciência, voltam seus lindos olhos para pseudogurus e
pseudoteorias. Bah, cara, e quem consegue aguentar aquelas merdas, as tais das
"teorias da conspiração"?
Rapaz, os "sapiens" dedicam boa parte da sua vida a um
trabalho meio que escravo, repetitivo, mecânico. Eis o epicentro de suas vidas,
tanto é que nos fins de semana, nas horas de lazer, enlouquecem os vizinhos com
galanteios ridículos e música horrível a todo volume. Então, quando há a
necessidade de se isolar por algumas semanas, longe da correria do trabalho e
do comércio, eles não suportam a diferente rotina.
Caralho, lembrei agora dos cães, que foram domesticados pelos
"sapiens" ao longo dos milênios, e essa sua "evolução" fez
com que aceitem a condição de ficarem amarrados ou enjaulados em canis, como se
esse fosse seu destino natural. Velho, onde foi parar toda a sua
potencialidade? Pense no que os bichos e nós somos, e o que poderíamos ser.
Pra finalizar, criatura, nem te conto. Descobri que a Tininha tem uns
cacoetes. Quando bebe e come uns salgadinhos ela tem vontade de palitar os
dentes. Eu digo "Não!" e ela responde "Grrrrrr!". Aprendi
com mamãezinha que isso é feio. E tem mais: esses dias exagerei no trago (que
novidade) e, juro, quando ela se dirigiu à geladeira me pareceu que manquitolava,
fiquei invocado, só faltava ela ter um defeito de nascença... Meu, insinuei uma
sandice qualquer. Bah, a garota ficou furiosa, apanhou um prato que estava
sobre a mesa e arremessou na parede. Era um dos pratos Duralex que ganhei de
mamãezinha, isso, do seu enxoval, acho que da década de 70. Meu, pra quebrar um
prato daqueles tem que pegar de jeito. Maluco, o prato virou farinha. Tá vendo
só o que esse vírus de bosta tá fazendo com nossos nervos?
(B. B. Palermo)
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