O que acontece com a gente se parece com o
que acontece com os outros, disse Bukowski. Eu acrescentaria, Doutor: para que
tudo o que acontece ao redor deixe de ser imagem e repetição do mesmo, é necessário
reaprender a olhar. Sábado de manhã caminhava numa avenida e cruzei por uma
jovem garota negra com duas crianças, uma de uns sete anos e outra no colo da
mãe, com uns três, quatro anos. A que estava no colo da mãe parecia ter um
olhar triste, e ficou me encarando, e isso me chocou. Enquanto a mãe seguia em
frente, a criança virou o pescoço para ficar mais tempo me observando. O que
chamou sua atenção? Doutor, é estranho como uma cena corriqueira possa ter me
impressionado. Minha alma neste dia não foi mais a mesma. Fiquei pensando, após
aquela cena: a BELEZA (Deus?) não combina com coisas espalhafatosas,
pirotécnicas. Agora necessito contar ao Senhor aquela vivência, pois creio que
pouco adianta sentir algo belo, que me deixou triste, e não compartilhar com os
outros. É por isso que escrevo. Quero apanhar e eternizar o que é passageiro.
Aquele olhar tão cheio de mistério, talvez impossível de decifrar, sintetiza os
olhares de todas as crianças, de qualquer cantinho do planeta. Fiquei pensando,
Doutor, o que posso carregar para a eternidade, o que devo despir e deixar pelo
caminho nesta vida breve? Terei uma alma? Sinto isso nas pessoas e coisas que
me rodeiam aqui e agora. Sim, naquele olhar da criança eu vi sua alma! No seu
olhar refletiu-se minha infância, de brinquedos, árvores, córregos,
o canto dos pássaros, a música que sai da vida dos animais. Eu vivi aquele
olhar! E esse olhar me fez pensar sobre o quanto sou arrogante, pretensioso,
acorrentado a coisas fugazes. E o mais incrível é que, ao refletir sobre isso, me senti mais
leve.
O Senhor pode pensar que exagero quando olho
com tal intensidade ao meu redor. Mas não dizem que os olhos são o espelho da
alma? Rubem Alves afirma que, “se os olhos forem bons, o mundo será belo. Se os
olhos forem maus, o mundo será sinistro”. Complementaria dizendo que a
demarcação entre paraíso e inferno começa de várias fraquezas humanas, e uma
delas é a inveja. Inveja inveja inveja... e esta nasce de um jeito (torto?) de olhar. Não será uma das razões para o mundo
andar tão mal? Para mim, a inveja e outros sentimentos chamados de “pecados
capitais” ganham vida quando deixamos de ser crianças e entramos no mundo
adulto. Época em que, também, distorcemos, envenenamos e engessamos nosso olhar.
(Diário de B. B. Palermo)
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