quarta-feira, 4 de setembro de 2024

Viagem a Palermo


 

O cara falou de seus contrabandos de armas e munições do Paraguai, anos atrás. As pessoas que estavam em volta babaram, principalmente nas suas descrições do poder de fogo e destrutivo dos calibres – eram fuzis, metralhadoras e por aí vai. Para cada viagem que fazia, as encomendas já estavam pagas. Era muita adrenalina: o risco de ser pego nas alfândegas, as propinas dadas aos policiais e tals.

Lá pelas tantas, não me contive:

- Você já matou alguém?

Ele pensou e pensou e disse, olhar fixo nos meus olhos:

- Meia dúzia!

Foi então que eu saquei: Tô rodeado de gente muito foda!

- E você, o que faz da vida?

Disse pros caras que tinha uma fazenda arrendada em Tupã, de pouco mais de 6 mil hectares. Cansei de criar gado, então o meu contador, um Pitbull nas finanças, fez diversas aplicações e investimentos, me garantido dinheiro pra uma dúzia de reencarnações, se acaso tiver o privilégio de ser um dos escolhidos pelo grandão, de lá de cima... Hoje em dia, faço algumas viagens por ano, América latina, Estados Unidos e Europa. A viagem mais incrível, e que me rendeu diversas idas e voltas, foi até Palermo, na ilha da Sicília. Não fui até lá assim no mais: conheci, pelo Facebook, uma senhora, divorciada.

- Tá... e como vocês se entenderam na língua?

- Rapaziada, eu domino o dialeto italiano, mas, claro, é muito diferente dos sotaques deles. Aí, usava o tradutor. Conversávamos através de chamadas de vídeo, no Messenger, isso a qualquer hora do dia: antes de dormir, ao levantar de manhã, nos passeios, ela nos restaurantes e eu nos botecos. Foi incrível, rapidinho nos entendemos na linguagem do amor. Era o instinto, algo “animal”, vocês sabem, que nos proporcionava várias “trepadas” virtuais.

Não deu outra, logo peguei um avião e me fui. Rapazes, os beijos de língua da siciliana eram ferozes, afiados! Pra fazer amor, pelo menos, eu me libertei do tradutor do Google. A italiana era um tesão, puro fogo! E preparava aqueles pratos deliciosos da culinária local, tipo Canolli, Torrone, Arancini e o que eu delirava todos os dias: Pasta a La Norma. Sentia todo o amor por ela dedicado ao cozinhar, era como se me servisse a alma, por isso meu apetite era insano – e só não engordei, com certeza, porque queimávamos calorias de montão fazendo amor! Foi então que passei a ter muita sonolência, bem estranho, e não era só de noite, era nas sesteadas à tarde, que duravam horas.

- E aí? – perguntou um dos malucos que me ouvia.

- Vocês não vão acreditar: acho que durou um mês assim, dormindo pra caralho - por qualquer coisa, eu ia pra cama e apagava. Depois desse período, voltei ao normal. Gente, agora eu ouvia e falava a língua deles como se tivesse morado a vida toda na Itália! Tenho certeza que foi meu subconsciente que fez todo o trabalho pra mim!

- Maravilha! Diz aí... tu vai morar com a ragazza em Palermo, ou vai trazer ela para o Brasil?

- Fazíamos planos... Até que entrou em cena a Sophia, filha dela. Gurizada, o dia em que nos vimos, no aeroporto - quando a ninfa chegou de viagem de Nova York, onde mora parte do ano com o pai -, esse dia marcou e mudou a minha vida. A maneira como me olhou fez cada milímetro do meu corpo soltar faíscas. Logo me veio a imagem da atriz, a Sophia Loren, quando ainda era novinha. Lembram dos filmes dela no cinema? Foi inesquecível!

- Tá... e aí? – perguntou outro sujeito, que se aproximara no meio da conversa.

- Vocês não vão acreditar... Outra hora, outra hora eu conto em detalhes o que rolou.

 

Senti que era hora de dar uma pausa na minha história. Até eu comecei a acreditar naquilo.

 

(B. B. Palermo)


sexta-feira, 30 de agosto de 2024

Normal

 

Tudo seria normal

 

não fosse a neblina

vinda do mar às 3 da tarde,

e quando acordei da sesta,

pouco antes das 3, não havia nem café nem açúcar 

e as paredes descascavam como lagartas 

prenhando borboletas.

Seria normal, não fosse a notícia

declamada por um vizinho,

professora desaparecida foi encontrada

dias depois dentro de um freezer -

e aí o cheiro de morte tomou conta

dos lugares mais sinistros deste apê.

Normal.

Garota cortou os pulsos

e quando o SAMU chegou

ela estava desmaiada

e na rua uns malucos me apontaram

o dedo.

Decidi então mudar para uma praia do nordeste

no próximo inverno...

Mas para hoje,

para hoje só me resta ir à barbearia

cortar o cabelo.

 

(B. B. Palermo)


terça-feira, 27 de agosto de 2024

Vermes não amam


 

Basta entornar 2 ou 3 copos de ceva

que meus planos se alegram.

O lúpulo me relaxa e desperta

o humor.

Malucos contam vantagens sobre o seu passado

e eu não ligo, anoto num papel os meus planos

fodásticos para os próximos anos.

Mas não tem como escapar das histórias dos caras -

como enfiaram alguns milhões em sua conta,

como ganharam 1.000 reais por dia

com o aluguel de imóveis.

Deslumbrados, comentam:

- Olha só o patrimônio que ele tem!

E narram, das delícias de suas viagens,

apontando fazendas que não acabam mais:

-Tu sabe de quem é isso...

Dizem, com orgulho:

- Tudo isso é de fulano!

Pelo tom de sua fala, os caras são deuses,

e até o sol nascendo e se pondo

e os pássaros indo e voltando na primavera

é deles.

E dizem, orgulhosos, que os pobres fizeram imenso sacrifício,

não beberam e não fumaram e nem viajaram

e nem experimentaram as delícias da culinária

e tantos outros prazeres.

O que incomoda é que esses vermes, ao envelhecerem,

não terão consciência dos bens que deixarão para trás,

nem terão inveja da gurizada que pouco ou nada tem,

brindando a vida toda pela frente.

Cadelão, os vermes não enlouquecem

porque não sentem!

 

(B. B. Palermo)


domingo, 18 de agosto de 2024

Acredite em milagres


Bukowski me disse que - aos 50 anos - trabalhava o dia todo

e só escrevia à noite.

Claro, sacava que já estava detonado e tinha,

algumas vezes, ideias suicidas, e uma delas

é o conhecido procedimento padrão:

muitos porres e ressacas.

Em algum momento, percebeu que precisava tirar o pé

e se alimentar melhor e se afastar dos destilados.

Impressionado com a franqueza do meu mestre,

cheguei no Alvorada’s e lá estava o Marcão.

Papo vai, papo vem, tive a coragem de dar-lhe uns “conselhos”,

algo como nos mantermos vivos por mais umas 2 décadas 

- quem sabe?

A saída, meu amigo – enfatizei -, é diminuirmos na cachaça

e praticarmos uma alimentação saudável.

Marcão, cheio de histórias para contar e, portanto, sem tempo

para ouvir as histórias dos outros, se ligou no meu papo.

Palestrei sobre os benefícios dos cereais matinais,

ovos galados cozidos e brócolis e couve

refogados com azeite de oliva.

Foi chocante: Marcão afastou o copo e, inclusive,

as tantas doses diárias de Natu Nobilis,

sugou apenas 2 taças de vinho e foi para casa

comer uma sopa de legumes

e assistir uma série na Netflix.

 

(B. B. Palermo) 

sábado, 17 de agosto de 2024

O último a sair apague a luz

 

Pode ser que a qualquer momento surja algo surpreendente,

talvez a recompensa aos nossos brados

- como aquela torcida de um clube mineiro, gritando no estádio,

quando tudo parece perdido:

- EU ACREDITO!

Algo que abra o caminho como o trem de madrugada

cortando a neblina e arrastando o que vier pela frente.

Já estamos meio cansados das histórias que se repetem,

bem ou mal contadas, de tentativas e recuos

e muitos fiascos, é certo.


 

O X-Tudo aguarda sobre a mesa numa embalagem de isopor

e sei que ele vai esfriar.

É a última dose e logo estarei em casa, sentado no sofá, vendo TV.

O aquecedor roça meus pés como um cãozinho fiel,

trens vão e vêm e centenas de aviões subindo e descendo e,

para meu espanto (deleite?), um deles despenca dos céus

e a tragédia entope os noticiários e a TV -

mesmo sendo um mordomo pouco criativo -

me oferta de tudo:

análises dos peritos, relatos dos familiares das vítimas e etc. etc.

Lembro o que disse uma de minhas musas, Fernanda Torres:

- A vida é dialética!

Vida louca louca...

Um Xis-tudo requentado, misto de teatro,

bombas H descendo dos céus e multidões aguardando

a volta de Jesus.

A TV mandando ver, o aquecedor é meu servo preferido neste inverno

e até penso que vodca é água benta...

Aí, só me resta imaginar como seria legal

de novo embaralhar todas as cenas

e ser o último a sair pra então apagar a luz.

 

(B. B. Palermo)


sexta-feira, 16 de agosto de 2024

O preço que se paga


 


Cara, às vezes sinto algo estranho

e que dá uma aflição.

É assim: eu posso, quero e até leio bons livros,

e sei o quanto isso é importante para minha alma

e sensibilidade e imaginação e etc. e tals.

Livros esses que meus familiares e seus pais

e os pais de seus pais nunca leram.

Estão perdoados, sempre estiveram ocupados

em “ganhar” a vida.

Parece que exageraram em apostar todas as fichas

em outras vidas, melhores do que a

que tiveram por aqui.

Não consigo adiar pra amanhã o mel e o fel

que desfruto neste cotidiano.

Cada vez mais me convenço

de que um dia (aleatório) vou dormir

e não mais acordar.

Velho, vai ser um belo sono (eterno), hein?

 

(B. B. Palermo)

quinta-feira, 15 de agosto de 2024

Escreveu hoje?



 

À tardinha, quando chego no Alvorada,

o Eder sempre pergunta:

- Escreveu hoje?

A semana enrolando e amanhã já é sexta

e já passa da metade do mês e eu escrevendo

por** nenhuma e levando uns esporros

do meu amigo do bar. Decidi mentir:

- Bah, véio, hoje foi o dia mais produtivo de agosto!

Matei a pau, tive uns insights e tá vindo aí meu primeiro romance!

O Eder abriu aquele sorriso de torcedor colorado

cheio de esperança e foi até o freezer:

- Maravilha, Cadelão! Esta cerveja é por conta da casa!

 

(B. B. Palermo)


quinta-feira, 8 de agosto de 2024

Almocei meu pai

 

Na adolescência,
almocei meu pai.
Hoje, poeta porque bebo,
ou bebo porque poeta,
sinto cada vez mais a sua falta.
Já se passaram 37 anos que ele partiu
pra nunca mais.
Ele almoça e janta e prepara o café da manhã
e me dá sábios conselhos.
Dança em minha memória
e é o meu melhor
amigo.
Mas não esqueço das surras
patrocinadas
pelo cinto de suas calças
toda vez que fui dedurado
por mamãe.
(B. B. Palermo)

terça-feira, 30 de julho de 2024

Caminhando na chuva sem me molhar


 

Apresentação

 

Sábias agudezas...

Refinamentos...

‒ Não!

Nada disso encontrarás aqui.

Um poema não é para te distraíres

Como com essas imagens mutantes de caleidoscópios.

[...]

Um poema que não te ajude a viver

E não saiba preparar-te para a morte

Não tem sentido: é um pobre chocalho de palavras.


(Projeto de Prefácio ‒ Mário Quintana)

 

Nem agudezas, nem refinamentos encontrarás aqui. Nem temas meramente trazidos para a distração nas imagens caleidoscópicas colhidas pela óptica de Palermo em pequenos fragmentos coloridos. Por seus espelhos articulados, Palermo produz imagens refletidas do universo em que habita e de onde extrai a matéria-prima de sua prosa poética. É na beleza de seu lugar que o poeta encontra razões pra cantar, seja pra festejar, seja pra protestar.

É das intervenções e vivências próprias e, também, do insuperável e inseparável Beiço, do Porko, do Dr. Biza, da Janete, da Janusa, do Damo do Cachorrinho, do Manetta, do Zé, do Cabezón, do Marcão e de outros tantos que produz reflexões sobre o seu aqui e agora ‒ o espaço-tempo atual em que vive. É de sua escassa economia e das contas, inclusive, no bar em atraso, da indubitável hiper hipocondria revelada numa ‘picada’ de taturana, da vaca de presépio a que é reduzido pelo megalomaníaco Dr. Biza e da observação da vida como ela é que ele conclui que a vida é curta demais pra ser pequena.

E ser pequena significa não poder ser desperdiçada em coisas sem relevância. Daí talvez seu viés um tanto escatológico, sem reduzir-se a isso como personagem, quem sabe como estratégia de ‘ligar o f*da-se’ (numa alusão ao conhecido título de Mark Manson), para advertir sobre a necessária mudança de hábito no tratamento da realidade e dos limites do homem e da natureza. Talvez daí um tanto de mistério e misticismo no conto que dá título ao livro ‒Caminhando na chuva sem me molhar ‒, suscitando um quê de realismo mágico e de um novo modo de lidar com nossas adversidades, indiferenças e vulnerabilidades.

Nas trinta narrativas componentes da obra, ordenadas em sua desordem normal, Palermo dá voz e vez à sua pequena guarnição, talvez para não reduzir sua força a um exército de um homem só. Talvez sua maior qualidade seja o modo esquisito com que provoca arrepios naqueles que têm medo do novo, do diferente, do que incomoda o sossego. Talvez por isso, perdoamos-lhe alguns desvios (como o uso por vezes exagerado de alguns palavrões), até porque de perto ninguém é normal, mas que não vão além do mundo das palavras. Se, no Cosmos, a Lua gira em torno da Terra, a Terra em torno do Sol, o Sol em torno de outros astros ou galáxias, no universo da linguagem as palavras giram em torno das palavras, que giram em torno de outras palavras, num sem-fim de rotações e translações.

O perigo maior de Palermo talvez resida em ser, justamente, um poeta ‒ esses estranhos seres que têm, mais do que sangue, o coração nos olhos. Isso o impossibilita a ser ‒ apenas ‒ um ingênuo maldito. Isso o torna capaz de conversar com Deus e o Diabo em qualquer chão, de ir dos píncaros às profundezas, do sublime às sublimações e, de repente, dos pensamentos às ações. E mais: faz isso tudo com boas pitadas de ironia, de humor, de amor. Seja em busca de sentido para um mundo absurdo, seja denunciando o absurdo de um mundo sem sentido, Palermo provoca o leitor a refletir sobre a condição humana.

Parodiando Saint-Exupéry em “Carta ao General X”, quem sabe Palermo denuncie que “não é possível viver-se só de geladeiras, política, orçamentos e palavras cruzadas, não é mesmo? Não é possível! Não é possível viver-se sem poesia, sem cor e sem amor. [...] Nada mais resta do que a voz do robô da propaganda. 8 bilhões de homens, nos tempos de hoje, não escutam mais do que o robô, não entendem mais do que o robô e estão se transformando em robôs”. 

E talvez o nosso poeta traga novidades em sua próxima aparição: promete passar uma temporada em Palermo, para “tentar compreender de onde venho e por que sou assim, meio doido”. É esperar para ver.

Carlos Silveira

Ijuí, janeiro de 2024.

sexta-feira, 26 de julho de 2024

Algo acontece em Marte

 

As frases perambulavam na cabeça

como outdoors nas esquinas,

e eu ainda acredito que a linha do horizonte, no final do dia,

vai me apresentar “mamãe” – a mulher da minha vida.

 

O marido investigava os consertos

que o cara do posto de combustíveis fazia no caminhonetão,

e ela sentada, séria, gostosa e contemplativa e de Ray-ban,

parecendo me observar, sentado num boteco,

a uns 10 metros.

Triste, eu duvidava de que ela tinha curiosidade,

embora eis-me aqui, quadrúpede em extinção,

maluco que viciou em escapulir do zoológico.

Eu a perdoo por não saber que ando por dentro das coisas

– além da fumaça do óleo diesel e do Glifosato e do 24d

que regam as terras desse Marte do Noroeste do RS.

 

Fitava-me, e parecia pensar:

- Como me livrar do MALA,

como sobreviver a um casamento sem emoção,

mas que garante dinheiro e status.

Coloquei-me no seu lugar:

sentir-me o pior por desejar alguma liberdade,

por não me adaptar a uma relação a dois.

 

No final das contas, ela só estava distraída 

focada em algo prático:

ao chegar em casa, colocar as roupas pra lavar,

dar um OI pras flores do jardim

e comidinha pros seus pets!

 

(B. B. Palermo)


domingo, 14 de julho de 2024

Tempestade

 

Suas fotos, nuns lábios carnudos

e cabelos de fogo,

botaram tudo abaixo

e desafiaram o meu mundo,

e então saquei que localizei

a minha tempestade!

Não importa se ela sabe que eu existo,

que escrevo histórias e poemas ridículos,

que sou politizado ou alienado – não importa.

Perdido, estou viciando num cometa

que me locupleta,

musa de lábios e cabelos

de fogo!

 

(B. B. Palermo)


Rua Jardim da Paz, 3030, apto 303

  Conheci uma garota num site de relacionamentos que se anunciava Pimentinha. Na frase de apresentação, ela mandou ver na poesia. “Ela é ca...