A chuva e o bar me encharcam há três dias. Quando me chamam
"Palermo!" levo um susto, tenho a impressão de que sou um pano
encardido, pendurado num varal e trespassado pelos olhos da comunidade. Prefiro
ser chamado "Cadelão!", aí me sinto na mesma condição do servente de
pedreiro ou do encanador ou do catador de lixo.
Liguei a TV, uma da manhã, sintonizei um programa de entrevistas. Três
convidados debatem sobre a importância medicinal e a liberação da Cannabis, e
então meus olhos brilham e eu me lembro das toneladas de baseado, as bobagens
que pronunciei, chapado, as milhares de canções que ouvi e o êxtase que
experimentei, muito mais do que um cidadão do bem possa imaginar.
Esforço-me pra me colocar no lugar desses heróis, sejam crianças,
adolescentes ou adultos, criaturas classificadas como de classe media. Fico
arrepiado só de imaginar os perigos a que esses anjinhos estão submetidos, são
as drogas e o álcool, os juros dos cartões de crédito, todas e nenhuma
ideologia, o formato da terra, direitistas e esquerdistas furiosos, o sertanejo
universitário.
É inevitável o pesadelo. Como um aficionado por armas, desperto rodeado
por fantasmas. Nem falo de conflitos familiares ou do bullying nas escolas.
Pressionado por tantas informações que se digladiam, fascistas versus
comunistas, asnos versus raposas, porcos versus bois e vacas etcétera e tal,
sou surpreendido por crises de ansiedade e de suor e de choro e uma vontade
louca de encher a cara, e o motivo, ó caros amigos escrotos, o motivo é o de
estar boiando na água fria desse mundinho que desfrutais.
Os filhos da puta colocam em risco minha condição social, que é a de
poder comprar uma TV de cinquenta polegadas em quinze prestações, e digo o
mesmo pro carrinho popular, que lavo e deixo brilhando e suas rodas tinindo
todo o sábado de tarde.
Sonho de consumo. Ter uma gorda
conta bancária e uma pança enorme, só pra me estressar e correr pra academia
cinco vezes por semana, a cada verão, e postar selfies caprichadas pra
impressionar as garotas.
Desejo de consumo. Queimar fatias do meu salário nas farmácias, ter um
prazer sádico ao ouvir os vendedores gargantearem lançamentos de complementos e
vitaminas para isso e para aquilo.
Sonho de consumo. Ter uma dúzia de notas de cem na carteira e sentir uma
alegria incomum ao ouvir a balconista dizer que os produtos tais são bons
porque estão vendendo bem. Não comprar nada naquele instante, dizer que vai
voando a um compromisso e que retornará logo depois.
Um privilegiado. Ao cair a noite deixo o celular no silencioso, pois
grupos de conhecidos do WhatsApp, a que fui encarecidamente convidado a
participar, desfilam mensagens de fé, de oração, Deus e Jesus e Virgem Maria e
mais isso e aquilo. Imagens e caricaturas, como se fossem uma parelha de
cavalos e sua carruagem me conduzindo pela escuridão da Idade Média em direção
à prometida luz que vem do céu.
E de novo estou fulo e com desejo de botar meu exército nas ruas,
chutando e cuspindo e dividindo olhares raivosos com as donas de casa fazendo
compras em dias de preços estourando.
Que merda, eu não precisava sofrer ao dar
de cara com os clichês de sempre. Eu devia me acostumar com essa gente que vive
agarrada em muletas e bengalas e andadores.
Cinismo e cara de pau. Saber que os outros estão compartilhando merda,
também fazer isso e fingir que considera essas merdas edificantes para a vida
desses boçais.
Cinismo e cara de pau. Não me afastar desses grupos. Ter esperança. Quem
sabe amanhã alguém se inspire pra além da superfície e compartilhe algo que me
entorte o queixo. Ó meus irmãos, companheiros de longos ensaios de imbecilidade,
tudo o que espero é que algum de vocês me surpreenda com novidade e
intensidade, como se me visitasse chutando a porta.
Eu podia estar transando sem camisinha, pegando e espalhando por aí o
HIV, ou bamboleando pelas calçadas podre de bêbado. Porém, aqui estou com
minhas pantufas e lareira em brasa e TV moderninha, vendo programas de quinta e
bebericando cerveja puro malte porque sou um cara bem informado, cervejas que
contêm cereais não maltados não passam de suco de milho, pelo menos foi o que
postaram nas redes.
Eu sou o que se poderia definir de
cara útil, um bosta que todo dia se esforça pra ser promovido e classificado
pelo IBGE como de classe média. Um sujeito que tem prazer bovino e uma visão
mediana das coisas.
(B. B. Palermo)