domingo, 11 de agosto de 2019

Deby, eu só queria te amar


Decidi gravar minhas histórias e postar num canal, no Youtube.
Dei sorte de conhecer o Wolverine, um fortão de trinta e poucos anos, maluco e cachaceiro, mas com uma voz grave daquelas.
A primeira gravação foi no meu celular, lá em casa. E adivinha quem apareceu nesse dia, como se fosse um meteoro: a Deby.
Nervosa, ela ia de um lado pro outro, até que abriu o jogo, queria que a ajudasse a vender uma geladeira e um sofá que ganhou de um velhinho da cidade de Jóia.       
Fiz uma piada besta: 
- Mas o plantador de soja, Aquele, não liberou a mesada? 
Ela me encarou com os olhos chispando, e não disse nada.
Como não dei bola, Ela foi sendo possuída pelo capeta. O puto do Wolverine serviu-lhe um martini com gelo. Ela foi pro banheiro e saiu de lá num biquini desse tamanho. Pegou uma mangueira na garagem e apoiou num galho do abacateiro do quintal e ficou debaixo daquele jato, cantando umas boemias.
Qual é a dessa putinha? Hoje, quando me ligou, disse que ia gravar com o Wolve. Aí ela vem correndo e, o que é mais punk, vestiu esse biquini e fica se engraçando pra nós dois.
Meu amigo espiava a cena debaixo do abacateiro, e não me vinha outra coisa senão implorar “Wolverine, foco, seu maluco!”.
Pra ele, a gravação poderia ficar pra outro dia, o que valia agora era a bunda da garota.
Pensei: de jeito nenhum vou topar a sacanagem de sexo a três.
A água descia feito cascata e acariciava aquela bunda gostosa e Wolverini cada vez mais excitado.
- Velho, a tatuagem nas nádegas é demais!
- Volta aqui, filho da puta, vamos gravar essa bosta.
- Velho, aquele biquinizinho é demais!
Que merda. 
Parti pro plano B: convidei eles pra irmos até o bar do Geni. À noite meu time disputaria a semifinal da Libertadores contra um time do Equador.
Wolve e Deby sentaram juntinhos, de gracinhas e segredinhos, e eu fazia de conta que não estava nem aí.
Fodam-se. Hoje só quero saber de futebol e encher a cara.
Os dois ficaram naquele tititi e eu "não tinha" ciúmes. E o Geni me encarando, se eu de novo ia pendurar a conta.
Aí Ela falou:                                                                    
- Ele só me chama quando tá a fim de trepar.
Começou o jogo e logo meu time levou um a zero.
E ela:
- Cadelão é um egoísta. Não dá a mínima pro sentimento de uma princesa.
Meu time não acertava dois passes e não passava do meio campo. Deby partiu pro contra-ataque:
- Ele fica se achando, mas te garanto, é igualzinho a todo mundo. Óbvio demais.
Caralho, nosso jogador foi expulso. Pensei: Ela deixa de ser óbvia quando bebe, fode com o primeiro que aparece.
O time numa retranca danada, quase levou dois a zero.
Outra estocada da putinha:
- Eu já saquei qual é a desse bêbado escroto: tem medo de gostar de alguém e sofrer.
Nos acréscimos, meu time quase levou o segundo gol.
- Se o filho da puta começa a gostar de uma mulher, ele foge.
O juiz acrescentou mais dois minutos.
Aí Ela deu uma voadora e eu beijei a lona:
- Esse pau no cu não tem colhão pra admitir que gosta de mim!
Pendurei a conta, peguei o Monza e me escondi na penumbra de um barzinho qualquer do outro lado da cidade.
Quando Wolverine me ligou no início da tarde do dia seguinte, naquele tom de voz dramático, eu já sabia como a noite deles havia terminado.

(B. B. Palermo)

(* O título desta história é inspirado na música "Oh! Deby", da banda TNT).


sábado, 10 de agosto de 2019

ei, dolly - Bukowski


ela me deixou há 5 semanas e foi para Utah.
é isto, acho que ela se foi.
dias atrás saí para mandar uma carta para ela
e a vi sentada no banco da parada de ônibus,
era o cabelo dela lá
de costas
e todo peso desabou de novo sobre mim
apressei o passo e olhei para o seu rosto - 
era outra pessoa. sardas, nariz chato, olhos verdes,
nada, nada.

então segui pela Western Avenue indo de bar em bar
e voltei a vê-la na minha frente.
vi aquelas calças coladas, eu conhecia aquele rabo,
e lá estava aquele cabelo de novo,
e o jeito dela de caminhar,
apressei o passo para alcançá-la,
cheguei ao seu lado e olhei seu rosto - 
um nariz de índio, olhos azuis, uma boca de sapo - 
nada, nada, nada.

então havia uma garota num bar tocando piando.
não era ela mas quando o cabelo caiu de certa
maneira,
por um momento, era. e o cabelo tinha o mesmo
comprimento
e os lábios eram parecidos mas não os mesmos, e
ela me viu olhando-a enquanto cantava, eu estava
bêbado,
claro, ajudou a criar a ilusão, e ela
disse há alguma em especial que você queira ouvir?
Dolly, eu disse, e ela cantou - 

Ei, Dolly...

agora mesmo olhei e ela estava do outro lado da rua.
ela saiu do prédio do outro lado da rua
com um cara loiro e jovem e ficou lá parada de óculos
escuros,
e eu pensei, o que ela está fazendo do outro lado da
rua de
óculos escuros, e sua risada para mim atravessou a
janela
mas ela não me acenou e então entrou no carro com o 
jovem, era um carro novo, pequeno e vermelho, caro,
e eles seguiram na direção oeste. desta vez tenho
certeza
que era ela.

Bukowski. Do livro "Queimando na água, afogando-se na chama").

quinta-feira, 8 de agosto de 2019

Beber mijar paquerar




Garota, tudo bem você falar do pó e da sujeira na casa da fulana, das manias dos patrões e das conversas ríspidas entre familiares nos lugares onde você trabalha.
Em algum momento você precisa transcender. Pouco importa se você é diarista ou advogada ou empresária.
Você precisa subir, subir, e embarcar no sonho de Ícaro, nem que seja com um baseado dos bons.
Você precisa se inquietar e sacar que a vida não é só trabalho, fofoca, ruminar a todo instante os sete pecados capitais - que só os outros cometem, claro.
E, por favor, mantenha distância da TV e das novelas.
Sempre digo pro Beiço que a melhor hora pra mijar ao ar livre nos fundos de casa sem ser notado pelos vizinhos é quando passa a novela na TV.
Caralho, é batata, o povo simplesmente fica hipnotizado diante do aparelho. Eu podia andar pelado pela rua, eu podia plantar bananeira diante do salão da cabeleireira gostosa. Eu podia...
Não serei flagrado se estiver no ar o capítulo da novela. Cabeças imóveis, olhos vidrados e espantados pela performance da vilã. Nossa, as velhinhas quase desmaiam e as novinhas roem as unhas.
Cabeças paralisadas, como se fossem esculturas, mortas como muros ou grades. Início da novela, fim da novela. Porra, odeio essa magia rasteira, de telespectadores encantados. Danem-se se isso funciona muito bem. Foda-se a linearidade. Não estou nem aí se a fórmula é repetida porque sempre dá certo.
Em vez da TV, à noite eu boto uns caras pra tocar, tipo Zé Ramalho ou Bob Dylan ou Belchior ou alguns malucos do blues nacional. No início Eles estão devagar, mas é só aumentar o ritmo das lambiscadas no copo de cerveja que o talento deles começa a fluir.
Então lembro da amiga que mora na Alemanha, e esqueço do fuso horário, e mando e mando pra Ela os links das músicas dos caras. É que a garota diz que curte as loucuras do Cadelão, e eu curto seu signo e seus papos sinceros, seu cabelo e sua voz.
Mas nossos horários não fecham. Deus não é perfeito, limitou-nos ao fuso horário. Já disse pra Ele, Tua Física me decepciona, meu brother.  
Horas antes de começar meu tour pela cerveja Ela está entorpecida pela tequila. Chama-me no Messenger quando está de pijama e embriagada, e eu aqui apenas rabiscando meus escritos em copos cheios.
Manda seus áudios divertidos com aquela voz linda e eu percebo a alegria com que o álcool drena suas histórias. É Brahma Extra, é puro malte, é Raiska, é blues no Bluetooth e vídeos picantes no WhatsApp.
Grande amiga, embora nos conheçamos apenas no mundo virtual. Parece estranho eu sentir a necessidade de conversar com Ela. Tem a ver com o fato Dela um dia  ter comentado que se diverte pra caramba com as maluquices do Cadelão, e que suas histórias lembram de outro velho safado que Ela gosta, um tal de Bukowski.

(B. B. Palermo)

sábado, 3 de agosto de 2019

Por favor, Dona Flor, aceita teu marido de volta, aceita



Estava no bar do Telmo lendo jornal e bebendo algumas. Daí a pouco chegou um grupo de mulheres, duas delas com seus maridos. Um dos casais carregava um bebê de uns seis meses. Imaginem a operação envolvida pra se levar um bebê num jantar de amigos num bar, numa noite de inverno. Carrinho, cestinho, cobertores de lã, sacola com fraldas e mamadeira, etc., etc.
O brinde do reencontro foi pelo aniversário de uma amiga e, claro, com várias fotos para postar no Facebook.
Eu tentava escrever um poema para uma garota que trabalha numa confeitaria, perto de minha casa. Todo o dia queimo minha grana com sanduíches e doces, só pra vê-la se engraçar. Ela se exibe parecendo rir de minha cara mas, como me transformo num palerma quando me apaixono, não percebo nada.
O bebê choramingou.  A mãe falou pras amigas: “Ela não faz cocô há dois dias”. Disse uma outra: “Você precisa comer mamão. Essa fruta é laxante. Com a amamentação, isso passa pra criança. Vai fazer cocô logo logo”.
A mãe então lembrou de um episódio quando voltou a tomar cerveja, depois do período de gestação e da quarentena. “Fomos jantar fora. Tomei umas cervejas com meu marido. Em casa, antes de dormir, amamentei a nenê. Vocês não imaginam. Ela começou a rir que não parava mais. Pegou no sono às três da manhã!” Disse uma outra: “Criatura, você embebedou a criança”.
Como não tinha jeito de não ouvir o que conversavam, pedi outra dose pro Telmo. Uma das amigas foi até o carrinho e pegou o bebê no colo. “Nossa, parece chumbo!” A mãe disse: “Ah, não exagera”. “Dê pra ela meio comprimido de laxante. Logo, logo ela fica bem levinha”.
E foi assim que a inspiração ficou pra outro hora. Daí a pouco entrou no bar, meio desnorteado, um amigo meu de beber umas e outras em algumas espeluncas da cidade. Com aquela cara, pressenti que algo tinha acontecido. Fiz um sinal pra que bebesse comigo. Eu levo jeito pra psicólogo. Isso, gosto de escutar as pessoas contarem suas paranoias e tragédias, e o Flori me parecia com cara de trágico.
“Daí, meu amigo! Que cara é essa?” “Minha mulher meteu o pé na minha bunda”. “Putz... O que você aprontou dessa vez?” “Nada demais. Cara, tô casado há quinze anos. Juntos, construímos uma linda história. Temos nosso menino, o Pedro Geromel, e também um cachorro, o Cebolinha”. “Mas, assim do nada, tua mulher não ia te botar pra fora de casa”.
Então ele contou em detalhes o episódio que desencadeou a crise do casamento. Num sábado, depois do expediente, encontrou alguns amigos e decidiram conversar e tomar algumas cervejas. Estendeu-se, o dia passou rápido nesse sofrimento que é ir de bar em bar. A noite avançou, novos amigos, histórias de amores, festas e aventuras, e o MEDONHO esqueceu-se de voltar pra casa. Foi com a turma a um baile, num bairro da cidade.  Ele tentava me convencer, e concordei, de que essa fraqueza, por si só, não tem tanto poder para sacudir as bases da lei e da ordem do sagrado matrimônio. No dia seguinte, porém, na hora de colocar os fatos em panos limpos, meu amigo disse à esposa que chegou tarde porque havia sido convidado pro aniversário do filho de um amigo. Lá, o jogo de canastra invadiu a madrugada.
No baile Flori ganhou um prêmio. Nossa, Ele que nunca ganhou nada em sorteios, durante a vida toda! Era um frango assado, patrocinado por um mercadinho do bairro.
Dada a quantidade de cerveja que lhe subiu à cabeça, esqueceu-se completamente do galináceo. O baile foi um sucesso, e na segunda-feira pela manhã uma emissora de rádio anunciou os ganhadores dos brindes sorteados.
Pro seu azar, a esposa sintonizava aquela emissora, naquele instante.
Acusado de mentiroso e infiel, e pra dar uma resposta à altura dos anseios de familiares e amigos, Dona Flor botou a criatura pra correr. Arrependido, e morando de favor na casa de um parente, ele sente falta da esposa, do filhinho e do cachorro, sua pátria e porto seguro.
“Cara, fiquei tocado com tua história. Acho que isso não é motivo suficiente para acabar um casamento”. “Quando entrei no bar e te vi, fiquei pensando...” “No quê?” “Você, que é escritor, podia bolar uma carta pra convencer Flor a me aceitar de volta. Pode ser uma carta anônima”. “Hum, posso criar um pseudônimo”. “Faço um churrasco e ainda te pago meia dúzia de litrões se a carta convencer Flor a me perdoar...” “Fechado”.
No dia seguinte escrevi uma carta. Dizia assim:
Dona Flor, não necessito da sabedoria de um guru para afirmar que os dias atuais são muito perigosos.  Em cada esquina surge um anjo mau disposto a colocar minhocas em nossa cabeça, e levar nossos amores à perdição.
Cabe lembrar à senhora de que nem Flori, nem qualquer outro homem, funcionam como relógio suíço: certinhos, previsíveis, totalmente ajustáveis. Aliás, nem os homens nem as mulheres.
Para não ser acusado de machista, vou citar algumas frases ditas por mulheres, no livro “O amor de mau humor”, de Ruy Castro, com o objetivo de fazê-la mudar de ideia e aceitar seu marido de volta.  
Embora madame Stael diga que “o amor é a história da vida de uma mulher; e um episódio na vida de um homem”, convém prestar atenção no conselho de Dorothy Parker: “Conserve os dedos abertos... e o amor fica. Feche-os, e ele se desprende”.
Marido é coisa séria, dona Flor. Diz ZsaZsa Gabor: “Maridos são como fogo: extinguem-se se não forem atiçados”.
Quanto ao casamento, este nem sempre representa o paraíso. Diz Dra. Joyce Brothers: “O casamento não se compõe apenas de uma comunhão espiritual e de abraços apaixonados; compõe-se também de três refeições por dia, lavar a louça e lembrar-se de pôr o lixo para fora”.
Sem querer desanimar-te nesse sonho de manter reto o teu casamento, veja o que disse Helen Rowland: “Quando uma garota se casa, está trocando a atenção de muitos homens pela desatenção de um só”.
E para dividirmos as responsabilidades a respeito das dificuldades no casamento, diz Mae West: “Nunca pergunte a um homem por onde ele andava. Se não estava fazendo nada errado, não precisa de álibi. E, se estava, a culpa é sua, minha filha”.
 Dona Flor, Flori precisa muito de você. Tanto é que veio a público, como se esta carta fosse sua serenata e buquê de flores, para dizer-te o quanto te ama.
Depois dos puxões de orelha, o que seu homem mais precisa é de colo. Portanto, aceite-o de volta, abra-lhe as portas e acolha-o na segurança do teu abraço. Não se sinta humilhada; parafraseando François Truffaut, saiba que, no amor, vocês mulheres são profissionais, enquanto nós, homens, somos amadores.
Meu amigo colocou a carta anônima no correio dois dias depois. Antes do final de semana seguinte Flor o aceitou de volta, mas com algumas ressalvas, que ele preferiu não narrar.
Além da meia dúzia de cervejas e do churrasco no bar do Telmo, ele apresentou sua esposa ao autor da carta. Nesse momento tive consciência de minhas dores interiores... Quer dizer, gosto de ajudar a curar as dores de amores dos outros, mas não consigo ME AJUDAR. Por que será, hem meus amigos?
Ali, diante-daquela-flor-de-li-ca-dís-si-ma, fiquei louco pra narrar minhas leituras de Nelson Rodrigues, de que não amamos na presença, e sim na falta e blá-blá-blá... Porém... Ela disse que serei um escritor famoso. Então paguei mais uma dúzia de cervejas. Todos ficamos bêbados, cantamos abraçados e desafinados e fomos felizes por algumas horas.

(B. B. Palermo)

sábado, 20 de julho de 2019

Meus porres e filmes roncando no sofá às três da manhã



De novo esqueci de levar o Dicão pra passear, o pobre anda com o intestino preso, mesmo se fartando com aquela ração importada. Ontem escolhi um filme louco, a minha cara, bebi todo o estoque e dormi pesado no sofá. Filmes de sexo e violência, como os de Tarantino, estão no meu ritmo, uns seres fracassados, decadentes, irmãos de lutas e tombos mas não desesperamos.
Em condições normais de sede e de culpas, não me interesso por filmes. Mas na bebedeira, corro pro Youtube e aí é a repetição do mesmo, volto aos velhos enredos. Em horas normais ouço música clássica e (ainda) não vi a Namo de cara feia, criticando meu gosto musical, tipo "nossa, como você suporta essas músicas horríveis?". Se um dia isso acontecer creio que a relação já era.
Se Namo insinua uma crítica a respeito dos excessos da noite passada, desconverso. "Você reparou na quantidade de buracos pelas ruas da cidade? E as rótulas, meu Deus, a gente nunca sabe qual o comportamento dos motoristas!".
Merda, esqueci de trocar o óleo do carro e pedir pro mecânico averiguar as pastilhas de freio. A suada mesada corre perigo. 
Namo quer ser vegana. Encontrem-me nas gôndolas do supermercado, me esgueirando por entre senhoras bem informadas por nutricionistas, à procura de brotos e grãos e cereais e nozes e frutas secas. Está fissurada pelas proteínas vegetais, quer se afastar das malditas carnes que entopem artérias e abrem as portas para o câncer.
Deus do céu, como é difícil garantir a vida a dois e o ócio indispensável à criação, a chopeira transbordando e não perder de vista o jogo do bicho e de sinuca e a proximidade de alguns amigos ordinários. Como o trânsito nas rodovias, eu preciso de áreas de escape, senão o sapato fica três números a menos no meu pé. 
E esses malditos copos sujos. De nada vale a ótima cerveja se os copos estão sujos. E Namo não quer estragar as unhas postiças, e quando lavo a louça irrompe uma guerra na pia, é enorme o risco de algum prato ou copo espatifar.
Meus livros manchados de cerveja e de vinho, os marcadores de página são recibos de jogos feitos ou bilhetes rasurados com números que sonhei e que pretendo apostar. Eis a síntese da minha odisseia, ou falta de sorte, que seja. Jesus, parece impossível alcançar a sonhada emancipação financeira sem fazer parte do mercado de trabalho.
Para que a dialética do casamento funcione alguém deve ser ludibriado de vez em quando. Deixo espalhadas sobre a mesa anotações dentro de livros e dezenas de folhas rasuradas, que chamo de inspirações para poemas e histórias. Proibi Namo de botar as mãos nessas preciosidades, para não invadir a privacidade nem espantar a diva criação.
Enquanto assisto o jogo de futebol pela TV e remoo essas coisas, Namo faz seu tricô e me observa serenamente, com olhos afetuosos. Do nada, um pensamento me invade e entristece, coisas de quem anda se informando sobre as sandices do mundo: muitas tartarugas que se alimentam do plástico espalhado pelos oceanos e então elas morrem antes de completarem cinquenta anos.

(B. B. Palermo)

quarta-feira, 17 de julho de 2019

Outra cama - Bukowski


outra cama
outra mulher
mais cortinas
outro banheiro
outra cozinha
outros olhos
outro cabelo
outros
pés e dedos.
todos à procura.
a busca eterna.
você fica na cama
ela se veste para o trabalho
e você se pergunta o que aconteceu
à última
e à outra antes dela…
é tudo tão confortável —
esse fazer amor
esse dormir juntos
a suave delicadeza…
após ela sair você se levanta e usa
o banheiro dela,
é tudo tão intimidante e estranho.
você retorna para a cama e
dorme mais uma hora.
quando você vai embora é com tristeza
mas você a verá novamente
quer funcione, quer não.
você dirige até a praia e fica sentado
em seu carro. é meio-dia.
— outra cama, outras orelhas, outros
brincos, outras bocas, outros chinelos, outros
vestidos
cores, portas, números de telefone.
você foi, certa vez, suficientemente forte para viver sozinho.
para um homem beirando os sessenta você deveria ser mais
sensato.
você dá a partida no carro e engata a primeira,
pensando, vou telefonar para janie logo que chegar,
não a vejo desde sexta-feira.
(Tradução: Pedro Gonzaga)

segunda-feira, 15 de julho de 2019

Esse é o teu momento



Cada vez mais você se convence de que essas conversas nas paradas de ônibus, nas lancherias, nos bancos de praça e de consultórios e de escritórios, você acredita que elas farão pouca diferença para os rumos do mundo. Também as notícias que sugamos das redes sociais e outras coisas mais que estonteiam nossa alma e ouvidos, no máximo contribuirão para nosso estresse e excessos na comida e bebida e então tome-lhe intestino preso ou flatulência ou enxaqueca.
Gurus, seja de que área for, vomitam suas teses aleatórias, que insistem que são verdade, e o fazem para angariar mais seguidores e engordar sua conta bancária.
O AGORA não passa de um momento qualquer no interior de um caldeirão fervente e borbulhante, com vários ingredientes em conflito, às vezes em fogo alto, às vezes em fogo baixo. Mas você vive ESSE momento. Aproveite-o, então.
Sim, você pode saltar da ponte e rodopiar e ser recolhido num saco com os ossos quebrados, e ser transportado até a perícia, numa frieza e objetividade, como se fosse um saco de adubo para plantas, depois aguardar no necrotério, devidamente numerado e com atestado de óbito para então ser despachado pro cemitério e logo ser esquecido.
A fervura continua, indiferente.
Você pode ir à Marte, armar a barraca, cultivar abobrinhas, e nada mudará, serão apenas notícias passageiras. Porém, esse é o TEU momento. Aproveite.
Não vale à pena sofrer se não chamares atenção. Há tantos egos que se posicionam como se fossem o centro, porém logo tudo vira página de jornal que vai acender o fogo da lareira ou receber o cocô de cães e gatos da família.
Vivamos esse aleatório, embora seja um instante no interior de um processo que se desdobra há bilhões de anos.
Apesar de tudo, esse é o TEU momento. Então, aproveite. Faça algo que dê prazer, como era o BRINCAR, na infância.

(B. B. Palermo)

terça-feira, 9 de julho de 2019

Se não existissem as mulheres, o dinheiro serviria pra quê?



Dia desses bebia uma cerveja redondinha, acompanhado pelo Beiço, e eis que um conhecido estacionou ali por perto seu carrão importado. Fez de conta que não nos viu. Fingimos que não o vimos.
O cara sempre foi competente em fazer carreira no magistério e sindicatos. Pessoa bem comportada, bom pai e amigo, figura esclarecida, na concepção dos filósofos modernos.
Acima de tudo, um "socialista dinheirista", expressão que o Beiço sempre repete.
- Cadelão, os caras juntam a maior quantidade possível de grana, e muitos acabam gastando com filhos paranóicos ou drogados, que foram criados debaixo de suas asas. Não consigo compreender essa obsessão por acumular, imagine o tempo dedicado a isso.
- Quem sabe esteja certo. Pra ele, é melhor investir em imóveis do que em lazer, arte, literatura e outros prazeres.
- Que nada, está faltando alma, meu amigo, o declínio do planeta está acelerado.
- Eu gostaria de ter grana, só pelo prazer em gastar. Se fosse rico, se estivesse rodeado de luxo, pegaria as putas mais lindas da parada e escreveria porra nenhuma.
- Hehehe... Você desocupado e duro já anda escrevendo nada.
O cretino ergueu o copo, num brinde.
- Aos dinheiristas!
- Diz aí, meu brother, se não existissem as mulheres, dinheiro serviria pra quê?
- Sabe o que eu ouvi de uma garota esses dias? "Nunca tive dinheiro, até que baixei as calcinhas".
- Hehehe... Lembrei de uma frase da atriz Mae West: "Um centavo economizado é uma garota perdida".
- Dinheiro, dinheiro... E tempos difíceis. Confesso que estou com medo, tenho me preocupado com meus irmãos de passagem por esse planetinha.
- Fala sério, Cadelão.
- Até pensei ser voluntário num projeto que apoie os velhinhos aposentados nos abrigos. Ou contar histórias num hospital de câncer infantil.
- Puta que pariu. Toma um porre que amanhã você não se lembra dessa loucura.
- Você tem razão. Meus planos para o futuro não duram uma semana.
- Hehehe... Que eu saiba, persistência você teve foi nunca.
- Mas amanhã poderá nascer um cara novo.
- Jesus, desconfio que você está lendo auto-ajuda! Volta, maluco, seja o que tu és!
- Atitude, meu caro, um dia eu mudo de atitude.
- To sabendo.

(B. B. Palermo)


quarta-feira, 3 de julho de 2019

Carta para Boccaccio



Estou inquieto e solitário, parecendo as roupas expostas como Cristo na cruz, nos cestões das lojas quase vazias. Os olhos vermelhos imploram atenção enquanto o povo passa, indiferente a tudo. Esse sentimento é momentâneo, outras imagens e cenas tomam seu lugar. Comi a magrela que tem uma loja de lingeries e perfumes importados ali, na outra esquina. Duas décadas atrás eu era um jovenzinho disputado pelas garotas. Xotas havia até demais. Eu esnobava. Hoje a empresária finge, ou nem sabe que eu existo.
Tudo é parte do processo.
Meu amigo, sei que o entedio com esses comentários, devia apenas descrever os fatos do jeito como prometi.Tomara que a decadência não me tenha como alvo, ela e sua pressa.
Vida que segue. Logo que cheguei no bar e sugava a primeira metade de uma long neck tentando esquecer a garota da loja de perfumes e a ressaca crônica, apareceu uma madame com seu cachorrinho no colo, com cara de guaxinim, um Spitz Alemão anão. O pet latiu, madame xingou e, impressionante, suas vozes eram semelhantes. Tudo se encaixava.
Coisas estranhas. Velhos resmungando no espaço vazio do bar. Deve ser o mesmo papo que repetem pros médicos nos consultórios e pras enfermeiras e cuidadoras e caixas de supermercado e atendentes de farmácias. Sim, século XXI, longevidade é o que se vê. Caixas e caixas de remédio + qualidade de vida, principalmente nos bairros de classe média e alta da cidade. Preciso espiar o que rola nas periferias. Creio que serão outras as descrições.
Às vezes me culpo por parecer preconceituoso com os velhos. Não sei por que me deixam ansioso. Só pode ser o desperdício de tempo viverem quase cem anos.
Temos todo tipo de velhos: os mansos, os agressivos, os saudosistas, os desmemoriados. Contam as horas para que chegue a noite e finalmente dormir. Amanhã tudo se repete. Tédio. Em sua maioria, parecem autômatos. Se chegar vivo a uma certa idade, vou dar um jeito pra que alguém me faça uma eutanásia, sem culpas a esse camarada, é claro.
Aqui no bar, observo a tia que brinca com o bebê de um casal de jovens, seus amigos.
- Quem vai fazer um aninho? Quem? Quem? Parabéns a você!...
Ninguém liga pra ela, deve ter bebido meia dúzia de garrafas. Ainda é jovem, mas a necessidade de repetir aqueles papos que todos estão por aqui a tornam uma velha chata. Já disse, sou preconceituoso.
Lembranças aleatórias. Minha última foda consumou-se rápida, rápida, não durou mais de três minutos e decepcionou as estatísticas, passou longe de trezentas estocadas e o meu coração saiu pela boca. Era como uma canção adolescente que não suporto ouvir agora. Melosa demais, entorpecedora de rebanhos, como diria Nietzsche. Pena você não ter vivido na época Dele. O cara saiu-se bem demais.
Merda. Já me desgarrei do rebanho? Talvez. Sou agora uma ovelha bebum e mal-humorada.
Outro cara que admiro é o Beethoven. Viver depois dele, desfrutar da Quinta Sinfonia em Dó Menor, é estar no lucro. Sua criação é potente, como uma pimenta que encontrei dia desses no supermercado. Chama-se Naga Morich, a pimenta.
Pra finalizar, estou relendo anotações que fiz por aí, nos bares. Leio e, pra maioria delas, faço um X com caneta tinta vermelha e escrevo HORRÍVEL. Foi o jeito que criei pra ter mais disciplina e reacender o amor próprio.
Inté.

(B. B. Palermo)

terça-feira, 25 de junho de 2019

Carta para Nadja



Preciso de sossego. Para com essas mensagens no WhatsApp, sei que você está trepando com um plantador de soja, dos graúdos, nem vem, vi tua postagem no Facebook.
Dá um tempo, meu pau sangra e toneladas de pó repousam debaixo da cama, e isso não é pesadelo.
As amizades naquele teu bar são barra pesada, veja bem, sou escritor de meia dúzia de leitores guerreiros e persistentes, um sonhador que bebe vinho de dez reais a garrafa, mas que sabe que vai chegar lá, e tua tara por carne está roubando minha energia.
Foder é bom, eu adoro, mas o tempo está voando e eu tenho uma tonelada de ideias para teclar.
Foder é bom, mas eu sinto que o tesão de cadela no cio está sugando a minha arte.
Nadja, você acredita que me dá bem demais. São orifícios de todo lado e gemidos e gritos que inflam meu ego, mas você nunca vai me dar Nietzsche e Hemingway e Bukowski e John Fante.
Daí que me apaixono quando troco mensagens com jovens universitárias que se especializaram em literatura pós-moderna, onde o sujeito ou a história ou o personagem morreu, ou o filho da puta se metamorfoseou, ou se dividiu e reproduziu em múltiplos EUS... enfim... que se foda.
Meu bem, elas leem o que escrevo e comentam no privado e inclusive criam perfis falsos pra seguir a literatura de um louco dançando no inferno ou sugando o leite das tetas das hienas, elas querem bisbilhotar e devem ter breves orgasmos ao pensarem de onde vem a seiva que Cadelão ejacula no papel.
Está bem, está bem, admito, essas garotinhas torram meu saco, mas você poderia ser mais refinada. O apetite insano, o vocabulário grotesco, os palavrões, a boca que às vezes exala um hálito que lembra velório e vela queimada, então saiba por que evito teu beijo.
Pra não ficar louco, preciso escrever, senão saio pra rua e escalo postes e conserto a iluminação pública e devolvo a luz a essa cidade neurótica.
Preciso algo mais do que sexo. O excesso deixa tudo vulgar e previsível, como uma imensa freeway esperando o entra e sai na calmaria do amanhecer.
Nadja, tudo bem você sugar o litrão de cerveja no bico e se empanturrar de x-burguer e música de sofrência, mas escute, você fala demais, qualquer assunto é como se fosse o fim do mundo, é tanta opinião sem propósito que, ao ouvir essas merdas, dá vontade de ser um torturador de ratos.
O mundo está sem alma e você não dá sinais de que vá acordar, os patins estão empoeirados e você só pensa em unhas e sobrancelhas, enquanto guerras ameaçam estourar.
Compreenda, cansei de você  pagar motel e lotar três vezes o frigobar com cerveja e ice e chocolate. Cansei de assumir o papel de garanhão, cansei de te ver tirando dezenas de fotos nas festas pra se exibir e competir com outras piranhas.
Podes dizer que é neurose, mas na minha cabeça uma história de amor precisa acabar pra outra começar. Sei que não tem lógica, sei que vou sofrer, porém preciso limpar o roupeiro, botar cobertores e travesseiros no sol.
Está bem, está bem, eu volto a abrir a porta, mas vê lá, não quero ser alvejado por uma dúzia de tiros de um plantador de soja ciumento.
A vida se renova, meu bem, eu sou escravo da criação, o que foi já era, morreu, preciso cavalgar outros rabos. Aqui lembro do Bukowski, que diz "não estou morto, preciso ver as xotas. Cada flor é uma nova flor. As outras estão mortas".

(B. B. Palermo)

Pílulas diárias de fofoca

  – Em Canela, ninguém cumprimenta ninguém! Em Capão, todo mundo diz “bom dia!”, “tudo bem?”. Aqui tu anda de bermuda e chinelos e ningu...