domingo, 14 de dezembro de 2014

No tempo das cavernas




No tempo das cavernas uivos e guinchos davam conta das palavras. Cavalo da chuva ninguém tirava. Não havia freezers bichos embalsamados e açougues. Era dos sentidos, nada era embutido. Todos reinavam e não havia cativeiros. Nem sempre o grande comia o pequeno. Quem podia mais fugia menos. Não havia correntes e prisões-canis de alguns metros quadrados. Hoje a anatomia do açougue esquarteja o sonho do boi. Congelamos sentimentos e somos escravos do tempo. Me espanta o ritmo do caranguejo. Meu ritmo mais ousado é andar para os lados. Nunca vi bicho psicopata. Bicho não mata por prazer. Bicho não se alegra ao ver outro bicho sofrer.



(TIRADAS do Teco, o poeta sonhador)


domingo, 7 de dezembro de 2014

Caprichos & relaxos - Paulo Leminski


a árvore é um poema
não está ali
para que valha a pena

está lá
ao vento porque trema
ao sol porque crema
à lua porque diadema

está apenas

domingo, 30 de novembro de 2014

Pediram-me para cuidar...


Pediram-me para cuidar do planeta, admirar as estrelas e o sistema solar. Garimpar tesouros no céu e - com meu verso - cantar as harmonias do universo. Cuidar de tantas espécies em extinção, mesmo que essa bola azulada, orbitando na imensidão, permaneça por muito tempo depois que eu for. De que vale tanto esforço se nem sei cuidar de mim? De que adianta cuidar de tudo se me apavora a previsão do futuro? Cuidar das abelhas, cuidar das cigarras, rezar pelos golfinhos e os caracóis. Cuidar do Polo Norte  morando no Polo Sul. O lixo atômico se espalhou, dizem que sou culpado. O poeta necessita escutar os seres, seus olhares, imagens e palavras... De que valem tantos brados, se não consigo desenhar no poema os meus gritos engasgados?

(TIRADAS do Teco, o poeta sonhador)



domingo, 23 de novembro de 2014

Saudade - L. F. Verissimo

Ai que saudade...
do tijolinho de banana
do meu Autorama
do Cinerama
do Mario Quintana
e da Petrobras pré-lama.

(Da série "Poesia numa hora dessas?")

terça-feira, 18 de novembro de 2014

Deus e os sabiás


“No princípio, antes que qualquer coisa existisse,
antes que houvesse o Universo,
o que havia era poesia.
Deus era poesia.
A poesia era Deus.
Deus e a poesia eram a mesma coisa.
e Deus criou as estrelas para, com elas,
escrever seus poemas nos céus...”
(Rubem Alves. IN: Prólogo do Evangelho de João, paráfrase)

Logo pela manhã espio sabiás no ninho, junto de casa. À noite, felinos circularam pelos arredores. Com insônia, escrevi páginas e páginas incompreensíveis, com medo de que o instinto selvagem desses gatos despertasse.
Nem preciso cultivar minhocas e outras comidinhas para alimentar esses pequenos seres que aqui fizeram seu habitat. Aprecio vê-los crescerem no quintal do meu olhar. Todo o dia observo curioso, responsável, como faz um bom padrinho. Logo aprenderão a voar, e ganharão o céu, e então os acompanharei, colado ao chão, tendo apenas o recurso do voo raso do imaginário.
Senhoras, de olhares duros como feras, cabelos longos e muitas certezas a respeito do sentido da vida e da morte, vêm até minha casa para me convencer a adorar Deus, no interior da igreja. Agradeço. Não precisa tanto sacrifício. Tenho o sol e o ar que respiro, um coração e seus canais no compasso da vida, dançando a mesma valsa do universo.
Todo dia Deus vem me visitar.
Mostra-se nas singelas cenas que provocam meus sentidos. Uma das cenas, hoje, foi a da mãe colocando comidinhas na boca de seus filhotes, no ninho. Desconfio que Deus, na sua pureza e simplicidade, é uma criança poeta.
Como os amigos que não vejo há tempos, por ter simplesmente me afastado, sinto a falta de Deus quando estou enrolado até o pescoço com migalhas, como o ciúme, a inveja, a arrogância e o ódio. Mas Deus não se apresenta para me julgar. Afasta-me da insignificância ao me deixar de frente com a beleza da vida, a qual ELE é.
É difícil libertar-se da catequização. Do medo de um Deus severo, que desde a infância cortava as asas e aprisionava. Temente a esse Deus, deixei de ser criança poeta, desconfiando da vida ao redor. Saíam de cena as coisas belas, simples, como o nascer e o pôr-do-sol, ou a água límpida da fonte, lambiscada com a concha das mãos.
O Deus ensinado desempenha o papel de pai protetor. Nas estórias contadas, ele afugenta os demônios, protegendo-nos de criaturas ameaçadoras que poderão nos sequestrar do aconchego do útero familiar.
Mas o Deus da catequese é um Deus pouco poético. Em vez de enriquecer nosso imaginário, nos encheu de medo. Em vez de colorir nosso coração, nos embruteceu.
Não faz nenhuma diferença Jesus ter sido casado ou não. Ter filhos ou não. Não muda nada saber se os escritos bíblicos são história com H, de fatos que realmente aconteceram, ou se são estórias – relatos míticos, lendas e fábulas.
Da mesma maneira, de pouco adianta engarrafar Deus e seu filho nessa ou naquela religião, se não captamos sua presença nos singelos (e belos) acontecimentos cotidianos.
Deus é criança. Deus brinca conosco. E “os que brincam são incapazes de fazer maldade”. Aqui, Rubem Alves cita Alberto Caeiro, heterônomo de Fernando Pessoa:

Num meio dia de fim de primavera
Tive um sonho como uma fotografia
Vi Jesus Cristo descer à terra,
Tornado outra vez menino.

Tinha fugido do céu.
No céu era tudo falso, tudo em desacordo
Com flores e árvores e pedras.
Hoje vive na minha aldeia comigo.

A mim ensinou-me tudo.
Ensinou-me a olhar para as cousas,
Aponta-me todas as cousas que há nas flores.
Mostra-me como as pedras são engraçadas
Quando a gente as tem na mão
E olha devagar para elas.



Ele é a Eterna Criança, o deus que faltava.
Ele é o humano que é natural,
Ele é o divino que sorri e que brinca.

Ao fim do dia eu conto-lhe histórias das cousas só dos homens
E ele sorri, porque tudo é incrível.
Porque ele sabe que tudo isso falta àquela verdade
Que uma flor tem ao florescer.

Ele dorme dentro da minha alma
E às vezes acorda de noite
E brinca com os meus sonhos.
Vira uns de pernas para o ar,
Põe uns em cima dos outros
E bate as palmas sozinho
Sorrindo para o meu sono.

Quando eu morrer, filhinho,
Seja eu a criança, o mais pequeno.
Pega-me tu no colo
E leva-me para dentro da tua casa.
Despe o meu ser cansado e humano
E deita-me na tua cama.
E conta-me histórias, caso eu acorde,
Para eu tornar a adormecer.
E dá-me sonhos teus para eu brincar
Até que nasça qualquer dia
Que tu sabes qual é.

sábado, 15 de novembro de 2014

Walt Whitman




Alguém pedindo para ver a alma?
Veja sua própria forma e seu semblante,
pessoas, bichos, plantas,
os rios de águas correntes,
as pedras e as areias,
tudo retém os júbilos do espírito
e os libera a seguir...

Quero fazer poemas das coisas materiais
pois imagino que esses hão de ser
os poemas de mais espiritualidade,
e farei poemas do meu corpo e do que há de
                                                                  [mortal,
pois acredito que eles me trarão os poemas
da alma e da imortalidade.

terça-feira, 11 de novembro de 2014

Par perfeito



Foi ela quem o recebeu. Mas, em vez de ela abrir seu coração, antes abriu o seu. Atrevida, deu palpites, como se tivesse a chave dos seus enigmas. Cartomante? Amiga? Amante?
Sozinho há algum tempo, queria muito impressionar. Incrível como a lógica se inverteu. No início, frustrou-se: ela foi pouco amante e muito falante. Mas tinha um jeito galante de falar, roubando toda a sua atenção.
Olhou demoradamente seus lindos olhos azuis (que por sinal estavam bem vermelhos devido à noite mal dormida) e exclamou:
- Que lindos olhos!
E emendou:
- Nossa, como eles são tristes!
Ficou matutando: será que seus olhos são tristes porque realmente são, ou porque ela assim viu? Lembrou de uma frase do Rubem Alves: “O paraíso mora dentro dos olhos”. E Angelus Silesius: “Quem não tem o paraíso dentro jamais o encontrará fora”. Claro que desconfiou da ousadia dela em falar assim de sua pessoa.
Então ela quis que ele falasse por que seus lindos olhos eram tão tristes.
Inventou. Disse que sofreu muito na infância. Mamãe abandonou, a ele e a seus irmãozinhos.
Ela se contorceu no sofá, e ele continuou:
- Mamãe era esquizofrênica. Tinha muito ciúme do meu pai, e esquecia de cuidar de nós. Tinha vergonha dela. Não queria que ela fosse na escola falar com meus professores e diretores. Queria que minha mãe fosse igual à mãe de meus colegas, em vez de usar aquelas roupas exóticas quando saía de casa.
Foi então que ela o abraçou, acariciou e disse:
- Meu anjo, alguma coisa sufoca o teu peito. Sinto que você sofre da influência negativa de algo ou de alguém.
Ficou matutando. Mas que atrevimento! No primeiro encontro, e já sente pena dele? Depois dessa, afundou no sofá, e delirou:
- É que eu tenho um amigo que vive pegando no meu pé!
- Mas como?
- Ele diz pra todo mundo que tenho uns trejeitos. Ele até me imita, diante dos amigos.
- Afaste-se dele, querido! Ignore! Ele é um falso amigo, e tem muita energia negativa, que faz muito mal a você! Por isso teu coração anda tão aflito.
Seu nome era Luli 2341. Criou o perfil num site de relacionamentos porque foi na conversa de uma amiga, que disse que uma outra sua amiga conheceu sua alma gêmea num desses sites. Estão juntos há mais de dez anos. Parece que nasceram um para o outro! Como esses sites de namoro cruzam dados, como profissão, gostos, filhos, signos, etc., a probabilidade de você encontrar sua alma gêmea é bem maior - disse ela.
Ao traçar o perfil, adicionou umas fotos sugerindo um leve ar de sensualidade. Dois dias depois uma garota mandou uma mensagem, dizendo que tinha gostado dele, e que tinham muita coisa em comum, etc. e tal. Chamava-se Dorinha 4321, e morava numa cidade próxima.
No item profissão, aparecia administradora rural. No caminho, no ônibus, ele sonhava com os mil hectares que ela arrendava. Uma bela casa, imóveis, um escritório cheio de livros, um clima perfeito para baixar a inspiração e, finalmente, escrever um grande romance.  Imaginava-se dirigindo uma Hilux 4x4, zerinho, roupa de cowboy, e não se importava de ouvir sertanejo universitário. Seria seu guarda-costas (como no filme), seu conselheiro, seu amante. Sonhava pescar todas as tardinhas no rio que corta aquelas terras que a vista não alcança.
Se antes ela parecia psicanalista, agora estava mais para cartomante. Acendia incensos, para combinar com os DVDs que ouvia: Bruno & Marrone, Reginaldo Manzoti, Fábio Melo. O diabo é que ela não lidava direito com o controle remoto, e a música ficava a toda.
Como ela era rica, premeditou uma estratégia para conquistá-la de vez. Iria impressioná-la com sua bagagem cultural - sim, agora seria o cara mais culto da cidade. Viajariam pelo mundo, visitariam museus, aprenderiam outras línguas, conheceriam o maior número de praias possíveis. Mostraria para ela bons filmes e também a introduziria à MPB, ao jazz, blues. Comentaria as tirinhas da Mafalda, falaria de Capitu e de madame Bovary. Apresentaria a ela o mundo da literatura, da poesia e da ficção científica. Mas, aqui, ele fui um reles ingênuo: foi ela quem o impressionou com seu jeito decidido de lidar com a metafísica e o sobrenatural – com a vida e a morte, e os seus mistérios.
Essa viagem toda faiscava na sua cabeça quando ela o sacudiu, ao dizer que tinha poderes mediúnicos. Psicografou várias vezes. E falou de montão sobre a vida dos espíritos. Dos menos aos mais evoluídos. Ia perguntar como era o dele, e se ela sabia de quem era reencarnado. Claro que curtiu ouvir isso. Quer ser escritor, imagina só ela psicografar a obra ditada por um grande espírito genial.
Foi então que ela colocou a mão no seu peito, acreditando desatar os nós que o oprimiam. Enredado, desabafou. Inventou outra história. Como se umas fantasias que tinha se realizaram de verdade. Não chegava a ser incesto ou algo monstruoso. Era apenas a inveja que tinha do seu irmão, com sua namorada maravilhosa, que ele chamava de fofa (e que de fofa não tinha nada). Falou de uma longa história de traição, etc. etc. Foi lembrando da história de Shakespeare, Hamlet, do tio que mata o pai pra ficar com sua mãe. De novo inventou de sua mãe, da depressão pós-parto, não o deixou mamar no peito, e de que até hoje é inseguro e tem um sentimento de rejeição.
Ela o abraçou demoradamente e começou a lhe ensinar a “arte do desapego”. Citou evangelhos, Paulo Coelho, Augusto Cury, tudo para que ele começasse a se libertar dos pecados que pesavam no peito.
- Essa culpa – ela disse – faz muito mal, se a gente carregar pela vida afora.
Quase cedeu às lágrimas, mas aguentou no osso do peito, macho que era.
Caro leitor, nessas alturas você deve estar perguntando: “E daí, o cara encontrou seu par perfeito, ou não?”.
Desconfio de que a maioria dos perfis nesses sites são ou exagerados (as pessoas dizem que têm mais qualidades do que defeitos), ou camuflam informações. Elas se descrevem do jeito como se imaginam como gostariam de ser - quase perfeitos.
Uma (boa) parte do que falamos e acreditamos sobre nós é invenção. E continuamos inventando também nas redes sociais. Mas isso não é nenhum pecado. Por que não transformar tudo isso em poesia, literatura, enfim, em algo que se pareça com uma obra de arte?
Responda você, meu amigo: descobrimos nosso par perfeito quando a pedimos em namoro e a pessoa diz sim? Ela se torna o amor de nossa vida depois que “rachamos” pela primeira vez a conta no restaurante? Ela é meu par perfeito porque tenho vontade de dizer “gosto de você”? Ou quando tenho vontade de apresentar a pessoa fofa como “minha namorada” em vez de “minha amiga”? (desconfio que isso é muita vontade para pouca realidade).
São muitos os riscos de o namoro não dar certo. Talvez a única certeza é aquela do poeta Vinicius de Morais, quando diz sobre o amor: “Que seja infinito enquanto dure”. O amor perfeito vai durar o tempo que as pessoas ainda tiverem vontade de se ver. Ok. Ele a pediu em namoro, e ela disse sim.

Mas o próximo encontro o preocupa. Se ela continua a acreditar que tem a chave que abre o cofre dos seus sentimentos, não sabe como vai inventar tantas histórias para responder às perguntas dela, e deixá-la feliz.

domingo, 9 de novembro de 2014

William Blake - citado por Rubem Alves



Este poema relata o que acontece quando deixamos de ser crianças e nos tornamos adultos. Pode-se dizer que é uma outra versão para o "fruto proibido no paraíso".

Fui andar pelo Jardim do Amor,

e o que eu vi não era o que eu esperava:
vi uma capela erguida no lugar
onde antes, no gramado, as crianças
                                           [brincavam.

Seu portão fechado estava

e nele escrito: Interditado.
Para o jardim do amor corri então
onde antes tantas flores se abriam.
Mas encontrei, ao invés das flores,
                                       [sepulturas,
e lápides frias espalhadas.
Sacerdotes em vestes negras vigiavam
e com espinhos os risos e alegrias proibiam.

(Do livro de Rubem Alves Perguntaram-me se acredito em Deus.)

sexta-feira, 7 de novembro de 2014

Por que não? - Marcelo Rubens Paiva


Por que você não pega o ônibus que passa na sua rua? Você conhece o itinerário dele? Vá até o ponto final, para ver como é a cidade que ele atravessa diariamente. Volte até o ponto inicial.
Por que você não prepara uma viagem para conhecer a cidade em que seus avós nasceram? E, se der, por que você não os leva?
Por que você não aprende a língua deles, caso sejam imigrantes estrangeiros?
Por que você não vai conhecer aquele parente de quem ouviu muito falar, mas quem nunca viu pessoalmente?
Se você tem empregada, por que não dá um beijo nela, assim que levantar da cama? Por que não aceita aquele convite de conhecer a casa dela? Marque a visita para o próximo domingo. E leve o vinho mais caro que encontrar.
Por que você não abraça o seu porteiro e combina de beber uma cerveja  depois do expediente com ele?
Por que não vai conhecer a casa das máquinas do seu prédio com o zelador?
Por que não abre um champanhe no teto do prédio, com ele? Veem o sol se pôr.
Se você mora em casa, por que não pergunta para o vigia da sua rua onde ele nasceu, como foi a sua infância, se é casado e tem filhos? Por que não o convida para jantar antes do serviço? Cozinhe pra ele. Como se cozinhasse para o rei.
Por que você não liga agora para os seus pais e não diz o quanto os ama?
Por que não vai hoje à noite comer uma pizza com eles e folhear álbuns de infância, reler cartas, ouvir histórias?
Por que você não abre o armário do seu pai e olha roupa por roupa, gaveta por gaveta, como ele se veste atualmente?
Por que você não dorme na antiga caminha em que dormia?
Por que você não faz as pazes com os seus irmãos? Convide todos para irem ao circo. Pague pipoca para eles. Por que não vão todos depois aos bastidores conversar com os trapezistas?
Por que você não paga pipoca para todas as criança do berçário vizinho, que fazem uma algazarra incrível na hora do recreio? Por que você não aproveita e brinca com elas?
Por que você não pode ou não quer?
Por que você não visita a sua escola primária?
Ande pelos corredores e tente reconhecer alguns professores. Por que você não se senta no banco escolar de onde assistia as aulas? Por que você não procura na biblioteca o seu nome nas fichas de livros que leu no colegial?
Peça o mesmo sanduíche que comia na lanchonete da escola. Por que não aproveita e paga para todos os alunos presentes uma rodada de milk-shake?
Lembra o quanto você era duro e de como era caro tomar um?
Por que você não liga já para a sua primeira namorada ou namorado e marca um café? Marca para um sábado qualquer.
Por que você não liga para a segunda namorada ou namorado e relembra todas as besteiras que fizeram, os apelidinhos que se deram, os presentes que trocaram?
Por que você não escreve uma carta?
Por que você não compra selos e posta a carta numa caixa de correio que resiste ao tempo?
Você sabe onde tem uma caixa de correio perto?
Por que você não escreve uma carta para antigos namorados ou namoradas relembrando todas as coisas boas que vocês viveram?
Por que você não escreve uma carta para você mesmo, contando todas as besteiras que fez na vida, listando os arrependimentos?
Coloque num envelope selado, enfie na caixa de correio mais próxima.
Por que você não começa hoje a ler o livro que sempre teve vontade, mas que nunca teve tempo?
E por que não decora a letra daquela música que ama?
Por que não aproveita e decora o número do seu cartão de crédito novo?
Por que você não vai a uma praça rolar na grama?
O que o impede de subir na gangorra ou balanço?
E numa árvore?
Siga as formigas.
Escute abelhas.
Reparou que um adulto só volta a ser criança na velhice?
Por que é tão difícil quebrar os hábitos, fugir do padrão, deixar o óbvio de lado? Por que ignorar o incomum?
E, o pior de tudo, por que a rotina nos é fundamental?
Por que você não poda as árvores da sua quadra, por que não planta flores nos canteiros da sua calçada, por que não adota um gato?
Por que você não passa o dia na janela, observando o movimento e a rotina dos vizinhos?
Falta de tempo?
De interesse?
Por que uma criança sempre ri?
Por que não arrumar os livros em gênero, os discos em ordem alfabética, as roupas por estilo? Por que não doar agora aqueles livros, discos e roupas de que não gosta? Por que não passar o dia desenhando? Por que não desenhar na parede da sala? E que tal comer um tomate inteiro, como se fosse uma maçã? Ou sucrilhos, grão por grão? Lamba o prato. Enfie o dedo no bolo. Use a colher do açucareiro, para dispersar o açúcar no café.
Vá ao estádio de futebol e se senta na arquibancada com a torcida rival.
Torça, um dia apenas, para um time que nunca imaginou que existisse.
O improvável é tão impossível assim?
Durma olhando para as estrelas, coma sem usar os talheres, corra para ver os cavalos acordarem, converse com os moradores de rua do bairro, entre no metrô de costas, cante alto uma música no vagão, vá à varanda mais próxima e uive com os cachorros na madrugada.
Por que o diferente amedronta?
Vá ao aeroporto ver avião subir.
Conte quantas nuvens tem agora no céu. Tente desvendar qual animal elas lembram?
Abra os braços, respire fundo, feche os olhos, sinta no rosto a umidade da brisa, escute o vento, a cidade viva.
Diz: “Como é bom tudo isso…”
Agora repete.
Por que não ser piegas?
Do livro Crônicas para ler na escola.

quarta-feira, 5 de novembro de 2014

Paulo Leminski



Abraço ou beijo? - Marcelo Rubens Paiva


Muita gente idealiza a vida de escritor. Acha que a grana é fácil e a rotina, sem stress e com glamour. Basta ficar em casa, com os pés para o alto, e jogar com as palavras e idéias? Vai nessa...
“Estela com ‘e’ e dois ‘eles’?”, pergunto com a caneta na mão e a boca seca.
“Com ‘esse’ e dois ‘eles’”, ela responde.
Assino “Stella, um beijo, Marcelo”, entrego o livro e sorrio. Porque vem a foto. Agora, noites de autógrafos são também sessões de fotos. Um amigo do autografado sempre tem em mãos um celular com câmera. Não bastam as dedicatórias. Não basta a assinatura. Desejam a prova visual. 
Mas ele não sabe tirar, ou não consegue focar, ou ligar o flash, ou não gosta da foto e pede para repetir. E novamente preparo o disfarce da felicidade para um sujeito que nunca vi na vida, ao lado de uma leitora empolgada, que me agarra pelo pescoço e me beija, deixando uma marca de batom, enquanto a fila está grande. E penso: vou passar a noite nessa, preciso sorrir, com uma marca de batom ridícula na bochecha, são meus leitores, vivo disso. É o preço, é o preço...
Bebo em noites de autógrafos. É de graça. Vinho, uísque, caipirinha, o que tiver. Nessa, parti pro uísque. E o garçom sumiu. Chama-se Jango. Tem a cara do Mr. Bean. O mais importante é ganhar a simpatia de um garçom. Para ele manter o copo cheio, e a água em estado sólido. Peço para Stella, com ‘esse’ e dois ‘eles’, procurar Jango, o garçom com a cara do Mr. Bean, e pedir mais uísque com gelo.
“Um abraço, Marilorde”, escrevo. Sim, estou no Nordeste, onde a composição de nomes é criativa. Maria com Lorde. No interior de São Paulo, o uso e abuso do ‘dáblio’ e ‘ipsilone’ não têm limites: Wellyntgon, Wladyr... Na capital, pedem a dedicatória com nome e sobrenome. No Rio, os autógrafos são para apelidos infantilizados: Baby, Cunca, Birunda.
“Elizabeth com ‘zê’ e ‘tê-agá’ no final?”
“É. Puxa. Que bom que você perguntou, todo mundo erra”, diz Elizabeth.
São 24 anos de estrada, nega, mais de oito livros, sem contar autógrafos em ruas, bares, cadeias. Rodei. Sempre busco a soletração. Não posso errar o nome de um leitor. Ficará registrado na sua estante. Para os netos confrontarem: “Vô, este escritor é analfabeto, nem sabe escrever seu nome.” E existem Raquel e Rachel, Bete e Beth, Luiz e Luis, Teresa e Tereza... 
Chega Mr. Bean com meu uísque. Tomo um gole. Vou ficar alegrinho no final, já sei. Minha letra estará desleixada. Comecei tão bem. A caneta é boa, desliza, não é daquelas que falham e deixam Suely com o ‘ipsilone’ final apagado. 
Elizabeth pede para alguém tirar uma foto. Tenho certeza de que ela faz chifrinhos, paranóia que começou quando Pânico na TV lançou a campanha Faça Um Chifrinho na Celebridade. Todos que me fotografavam, presumi, colocavam chifrinhos. 
Um cara se aproxima. Já fazendo pose pra foto. Não fala nada. De birra, também não falo. Me encara. Aproveito a pausa e bebo. Tem leitor que fica parado, mudo. Como se eu soubesse seu nome. Confundiu a noite de autógrafos: acha que sou Chico Xavier. Então, quebro o gelo.
“O autógrafo é para você?”
“É.”
E continua o silêncio.
“E como é o seu nome?”
“Põe aí qualquer coisa.”
Já fiz isso, já escrevi “Ao qualquer coisa, um abraço, Marcelo”.
“Não prefere que eu coloque o seu nome?”
“Põe aí... Para Hélio, com afeto.”
Tem cara que é assim, que especifica a dedicatória.
“Hélio com ‘agá’ e acento?”
Então, medito sobre a minha incapacidade de criar boas dedicatórias. Para as mulheres, um beijo. Para os homens, um abraço. Eventualmente, alguém pede um autógrafo especial, e dedico: “Um beijo especial”. Outra diz que quer algo diferente do da amiga, para quem escrevi “Um beijo especial”. Escrevo: “Um beijo diferente”. 
Já não me angustia a falta de criatividade. São pessoas que nunca vi na vida. No passado, eu jogava com os nomes: “Para Rosa do sorriso colorido...” Nem sei por que querem um rabisco no livro. Logo logo o venderão para um sebo. Como fez minha avó Olga. Na verdade, fizeram. Quando a levaram para a casa de repouso, venderam tudo o que era seu. Encontrei num sebo meu segundo livro, Blecaute, primeira edição, rara, autografado “para a minha avó querida...”
Surge aquele amigo, e dá um branco? Surpreendentemente esqueci o nome, apesar do rosto familiar. Ele sorri esperando, como um sádico. Você já foi a um lançamento. As vendedoras escrevem seu nome num papelzinho, porque brancos acontecem. Tem gente que se irrita com as vendedoras: “Ele sabe meu nome!” Não pega o papelzinho. São justamente os que a gente esquece. Eu tenho um truque infalível: “Como é mesmo o seu nome completo?”
Cadê o Jango, fugiu pro Uruguai? Estou ficando alto. A letra cresce. Acho incrível rabiscar na primeira folha de um livro novinho em folha, uma pretensão escrever meu nome com letras grandes, rabiscos exagerados. Quem sou eu, afinal? Eles pagam, me entregam, e estrago com trinta. E ficam felizes com isso. Estou bêbado. Tenho que tomar cuidado, pois é quando mando abraços para as leitoras e beijos para os leitores: “Maurão, beijo, Marcelo”. Ou quando começo a autografar com a minha assinatura pessoal. Podem me passar a perna, um contrato em branco, tomarem meus bens. Cadê Jango?
Quando a fila diminui, engato uma conversa com o leitor. Para a fila voltar a crescer. Tática velha. Não vou dar chances para um cara entrar na livraria e ver um escritor numa mesinha com pilhas de livros e três gatos-pingados na fila. 
Jânio me serve outra. Aproxima-se a parte enfadonha (por isso, bebo). Porque a galera da intimidade fica pro final. Aquela que fala de meus personagens como se fossem seus melhores amigos. Que conhece de cor meus livros. Que pergunta detalhes da trama e quer me levar pro barzinho. Odeio a palavra barzinho. Eles falam assim: “E aí, já tá doidão, vamos pro barzinho com a gente, aqui só tem careta...” Mas quero mais ir pro meu hotel, jantar e dormir. Sou um careta. Meus personagens que são doidões.
Depois da galera da intimidade, tem a turma da organização, com pilhas de livros e a lista de nomes dos que não puderam comparecer e dos que trabalharam nos bastidores. Graças ao Jânio, a letra sai fácil, o pulso nem dói. E enrolo, pra galera do barzinho, que está na porta, desistir. É fácil ser escritor?


Do livro Crônicas para ler na escola.

Viagem ao fim da noite

O cachorro passa mancando... não me percebe. Compreendo: a vida é busca, é movimento. Quem prova isso é o motoboy e sua descarga barul...