Foi ela quem o
recebeu. Mas, em vez de ela abrir seu coração, antes abriu o seu. Atrevida, deu
palpites, como se tivesse a chave dos seus enigmas. Cartomante? Amiga? Amante?
Sozinho há algum
tempo, queria muito impressionar. Incrível como a lógica se inverteu. No
início, frustrou-se: ela foi pouco amante e muito falante. Mas tinha um jeito
galante de falar, roubando toda a sua atenção.
Olhou
demoradamente seus lindos olhos azuis (que por sinal estavam bem vermelhos
devido à noite mal dormida) e exclamou:
- Que lindos
olhos!
E emendou:
- Nossa, como
eles são tristes!
Ficou matutando:
será que seus olhos são tristes porque realmente são, ou porque ela assim viu?
Lembrou de uma frase do Rubem Alves: “O paraíso mora dentro dos olhos”. E Angelus
Silesius: “Quem não tem o paraíso dentro jamais o encontrará fora”. Claro que
desconfiou da ousadia dela em falar assim de sua pessoa.
Então ela quis
que ele falasse por que seus lindos olhos eram tão tristes.
Inventou. Disse
que sofreu muito na infância. Mamãe abandonou, a ele e a seus irmãozinhos.
Ela se contorceu
no sofá, e ele continuou:
- Mamãe era esquizofrênica.
Tinha muito ciúme do meu pai, e esquecia de cuidar de nós. Tinha vergonha dela.
Não queria que ela fosse na escola falar com meus professores e diretores. Queria
que minha mãe fosse igual à mãe de meus colegas, em vez de usar aquelas roupas
exóticas quando saía de casa.
Foi então que
ela o abraçou, acariciou e disse:
- Meu anjo, alguma
coisa sufoca o teu peito. Sinto que você sofre da influência negativa de algo
ou de alguém.
Ficou matutando.
Mas que atrevimento! No primeiro encontro, e já sente pena dele? Depois dessa,
afundou no sofá, e delirou:
- É que eu tenho
um amigo que vive pegando no meu pé!
- Mas como?
- Ele diz pra
todo mundo que tenho uns trejeitos. Ele até me imita, diante dos amigos.
- Afaste-se
dele, querido! Ignore! Ele é um falso amigo, e tem muita energia negativa, que
faz muito mal a você! Por isso teu coração anda tão aflito.
Seu nome era
Luli 2341. Criou o perfil num site de relacionamentos porque foi na conversa de
uma amiga, que disse que uma outra sua amiga conheceu sua alma gêmea num desses
sites. Estão juntos há mais de dez anos. Parece que nasceram um para o outro!
Como esses sites de namoro cruzam dados, como profissão, gostos, filhos,
signos, etc., a probabilidade de você encontrar sua alma gêmea é bem maior - disse
ela.
Ao traçar o
perfil, adicionou umas fotos sugerindo um leve ar de sensualidade. Dois dias
depois uma garota mandou uma mensagem, dizendo que tinha gostado dele, e que
tinham muita coisa em comum, etc. e tal. Chamava-se Dorinha 4321, e morava numa
cidade próxima.
No item
profissão, aparecia administradora rural. No caminho, no ônibus, ele sonhava
com os mil hectares que ela arrendava. Uma bela casa, imóveis, um escritório
cheio de livros, um clima perfeito para baixar a inspiração e, finalmente, escrever
um grande romance. Imaginava-se
dirigindo uma Hilux 4x4, zerinho, roupa de cowboy, e não se importava de ouvir sertanejo
universitário. Seria seu guarda-costas (como no filme), seu conselheiro, seu
amante. Sonhava pescar todas as tardinhas no rio que corta aquelas terras que a
vista não alcança.
Se antes ela
parecia psicanalista, agora estava mais para cartomante. Acendia incensos, para
combinar com os DVDs que ouvia: Bruno & Marrone, Reginaldo Manzoti, Fábio
Melo. O diabo é que ela não lidava direito com o controle remoto, e a música
ficava a toda.
Como ela era
rica, premeditou uma estratégia para conquistá-la de vez. Iria impressioná-la com
sua bagagem cultural - sim, agora seria o cara mais culto da cidade. Viajariam
pelo mundo, visitariam museus, aprenderiam outras línguas, conheceriam o maior
número de praias possíveis. Mostraria para ela bons filmes e também a
introduziria à MPB, ao jazz, blues. Comentaria as tirinhas da Mafalda, falaria
de Capitu e de madame Bovary. Apresentaria a ela o mundo da literatura, da
poesia e da ficção científica. Mas, aqui, ele fui um reles ingênuo: foi ela
quem o impressionou com seu jeito decidido de lidar com a metafísica e o
sobrenatural – com a vida e a morte, e os seus mistérios.
Essa viagem toda
faiscava na sua cabeça quando ela o sacudiu, ao dizer que tinha poderes mediúnicos.
Psicografou várias vezes. E falou de montão sobre a vida dos espíritos. Dos
menos aos mais evoluídos. Ia perguntar como era o dele, e se ela sabia de quem
era reencarnado. Claro que curtiu ouvir isso. Quer ser escritor, imagina só ela
psicografar a obra ditada por um grande espírito genial.
Foi então que
ela colocou a mão no seu peito, acreditando desatar os nós que o oprimiam.
Enredado, desabafou. Inventou outra história. Como se umas fantasias que tinha
se realizaram de verdade. Não chegava a ser incesto ou algo monstruoso. Era
apenas a inveja que tinha do seu irmão, com sua namorada maravilhosa, que ele
chamava de fofa (e que de fofa não tinha nada). Falou de uma longa história de
traição, etc. etc. Foi lembrando da história de Shakespeare, Hamlet, do tio que mata o pai pra ficar
com sua mãe. De novo inventou de sua mãe, da depressão pós-parto, não o deixou
mamar no peito, e de que até hoje é inseguro e tem um sentimento de rejeição.
Ela o abraçou
demoradamente e começou a lhe ensinar a “arte do desapego”. Citou evangelhos, Paulo
Coelho, Augusto Cury, tudo para que ele começasse a se libertar dos pecados que
pesavam no peito.
- Essa culpa – ela
disse – faz muito mal, se a gente carregar pela vida afora.
Quase cedeu às
lágrimas, mas aguentou no osso do peito, macho que era.
Caro leitor, nessas
alturas você deve estar perguntando: “E daí, o cara encontrou seu par perfeito,
ou não?”.
Desconfio de que
a maioria dos perfis nesses sites são ou exagerados (as pessoas dizem que têm
mais qualidades do que defeitos), ou camuflam informações. Elas se descrevem do
jeito como se imaginam como gostariam de ser - quase perfeitos.
Uma (boa) parte
do que falamos e acreditamos sobre nós é invenção. E continuamos inventando
também nas redes sociais. Mas isso não é nenhum pecado. Por que não transformar
tudo isso em poesia, literatura, enfim, em algo que se pareça com uma obra de
arte?
Responda você,
meu amigo: descobrimos nosso par perfeito quando a pedimos em namoro e a pessoa
diz sim? Ela se torna o amor de nossa vida depois que “rachamos” pela primeira
vez a conta no restaurante? Ela é meu par perfeito porque tenho vontade de
dizer “gosto de você”? Ou quando tenho vontade de apresentar a pessoa fofa como
“minha namorada” em vez de “minha amiga”? (desconfio que isso é muita vontade
para pouca realidade).
São muitos os
riscos de o namoro não dar certo. Talvez a única certeza é aquela do poeta
Vinicius de Morais, quando diz sobre o amor: “Que seja infinito enquanto dure”.
O amor perfeito vai durar o tempo que as pessoas ainda tiverem vontade de se
ver. Ok. Ele a pediu em namoro, e ela disse sim.
Mas o próximo
encontro o preocupa. Se ela continua a acreditar que tem a chave que abre o
cofre dos seus sentimentos, não sabe como vai inventar tantas histórias para
responder às perguntas dela, e deixá-la feliz.
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