terça-feira, 11 de novembro de 2014

Par perfeito



Foi ela quem o recebeu. Mas, em vez de ela abrir seu coração, antes abriu o seu. Atrevida, deu palpites, como se tivesse a chave dos seus enigmas. Cartomante? Amiga? Amante?
Sozinho há algum tempo, queria muito impressionar. Incrível como a lógica se inverteu. No início, frustrou-se: ela foi pouco amante e muito falante. Mas tinha um jeito galante de falar, roubando toda a sua atenção.
Olhou demoradamente seus lindos olhos azuis (que por sinal estavam bem vermelhos devido à noite mal dormida) e exclamou:
- Que lindos olhos!
E emendou:
- Nossa, como eles são tristes!
Ficou matutando: será que seus olhos são tristes porque realmente são, ou porque ela assim viu? Lembrou de uma frase do Rubem Alves: “O paraíso mora dentro dos olhos”. E Angelus Silesius: “Quem não tem o paraíso dentro jamais o encontrará fora”. Claro que desconfiou da ousadia dela em falar assim de sua pessoa.
Então ela quis que ele falasse por que seus lindos olhos eram tão tristes.
Inventou. Disse que sofreu muito na infância. Mamãe abandonou, a ele e a seus irmãozinhos.
Ela se contorceu no sofá, e ele continuou:
- Mamãe era esquizofrênica. Tinha muito ciúme do meu pai, e esquecia de cuidar de nós. Tinha vergonha dela. Não queria que ela fosse na escola falar com meus professores e diretores. Queria que minha mãe fosse igual à mãe de meus colegas, em vez de usar aquelas roupas exóticas quando saía de casa.
Foi então que ela o abraçou, acariciou e disse:
- Meu anjo, alguma coisa sufoca o teu peito. Sinto que você sofre da influência negativa de algo ou de alguém.
Ficou matutando. Mas que atrevimento! No primeiro encontro, e já sente pena dele? Depois dessa, afundou no sofá, e delirou:
- É que eu tenho um amigo que vive pegando no meu pé!
- Mas como?
- Ele diz pra todo mundo que tenho uns trejeitos. Ele até me imita, diante dos amigos.
- Afaste-se dele, querido! Ignore! Ele é um falso amigo, e tem muita energia negativa, que faz muito mal a você! Por isso teu coração anda tão aflito.
Seu nome era Luli 2341. Criou o perfil num site de relacionamentos porque foi na conversa de uma amiga, que disse que uma outra sua amiga conheceu sua alma gêmea num desses sites. Estão juntos há mais de dez anos. Parece que nasceram um para o outro! Como esses sites de namoro cruzam dados, como profissão, gostos, filhos, signos, etc., a probabilidade de você encontrar sua alma gêmea é bem maior - disse ela.
Ao traçar o perfil, adicionou umas fotos sugerindo um leve ar de sensualidade. Dois dias depois uma garota mandou uma mensagem, dizendo que tinha gostado dele, e que tinham muita coisa em comum, etc. e tal. Chamava-se Dorinha 4321, e morava numa cidade próxima.
No item profissão, aparecia administradora rural. No caminho, no ônibus, ele sonhava com os mil hectares que ela arrendava. Uma bela casa, imóveis, um escritório cheio de livros, um clima perfeito para baixar a inspiração e, finalmente, escrever um grande romance.  Imaginava-se dirigindo uma Hilux 4x4, zerinho, roupa de cowboy, e não se importava de ouvir sertanejo universitário. Seria seu guarda-costas (como no filme), seu conselheiro, seu amante. Sonhava pescar todas as tardinhas no rio que corta aquelas terras que a vista não alcança.
Se antes ela parecia psicanalista, agora estava mais para cartomante. Acendia incensos, para combinar com os DVDs que ouvia: Bruno & Marrone, Reginaldo Manzoti, Fábio Melo. O diabo é que ela não lidava direito com o controle remoto, e a música ficava a toda.
Como ela era rica, premeditou uma estratégia para conquistá-la de vez. Iria impressioná-la com sua bagagem cultural - sim, agora seria o cara mais culto da cidade. Viajariam pelo mundo, visitariam museus, aprenderiam outras línguas, conheceriam o maior número de praias possíveis. Mostraria para ela bons filmes e também a introduziria à MPB, ao jazz, blues. Comentaria as tirinhas da Mafalda, falaria de Capitu e de madame Bovary. Apresentaria a ela o mundo da literatura, da poesia e da ficção científica. Mas, aqui, ele fui um reles ingênuo: foi ela quem o impressionou com seu jeito decidido de lidar com a metafísica e o sobrenatural – com a vida e a morte, e os seus mistérios.
Essa viagem toda faiscava na sua cabeça quando ela o sacudiu, ao dizer que tinha poderes mediúnicos. Psicografou várias vezes. E falou de montão sobre a vida dos espíritos. Dos menos aos mais evoluídos. Ia perguntar como era o dele, e se ela sabia de quem era reencarnado. Claro que curtiu ouvir isso. Quer ser escritor, imagina só ela psicografar a obra ditada por um grande espírito genial.
Foi então que ela colocou a mão no seu peito, acreditando desatar os nós que o oprimiam. Enredado, desabafou. Inventou outra história. Como se umas fantasias que tinha se realizaram de verdade. Não chegava a ser incesto ou algo monstruoso. Era apenas a inveja que tinha do seu irmão, com sua namorada maravilhosa, que ele chamava de fofa (e que de fofa não tinha nada). Falou de uma longa história de traição, etc. etc. Foi lembrando da história de Shakespeare, Hamlet, do tio que mata o pai pra ficar com sua mãe. De novo inventou de sua mãe, da depressão pós-parto, não o deixou mamar no peito, e de que até hoje é inseguro e tem um sentimento de rejeição.
Ela o abraçou demoradamente e começou a lhe ensinar a “arte do desapego”. Citou evangelhos, Paulo Coelho, Augusto Cury, tudo para que ele começasse a se libertar dos pecados que pesavam no peito.
- Essa culpa – ela disse – faz muito mal, se a gente carregar pela vida afora.
Quase cedeu às lágrimas, mas aguentou no osso do peito, macho que era.
Caro leitor, nessas alturas você deve estar perguntando: “E daí, o cara encontrou seu par perfeito, ou não?”.
Desconfio de que a maioria dos perfis nesses sites são ou exagerados (as pessoas dizem que têm mais qualidades do que defeitos), ou camuflam informações. Elas se descrevem do jeito como se imaginam como gostariam de ser - quase perfeitos.
Uma (boa) parte do que falamos e acreditamos sobre nós é invenção. E continuamos inventando também nas redes sociais. Mas isso não é nenhum pecado. Por que não transformar tudo isso em poesia, literatura, enfim, em algo que se pareça com uma obra de arte?
Responda você, meu amigo: descobrimos nosso par perfeito quando a pedimos em namoro e a pessoa diz sim? Ela se torna o amor de nossa vida depois que “rachamos” pela primeira vez a conta no restaurante? Ela é meu par perfeito porque tenho vontade de dizer “gosto de você”? Ou quando tenho vontade de apresentar a pessoa fofa como “minha namorada” em vez de “minha amiga”? (desconfio que isso é muita vontade para pouca realidade).
São muitos os riscos de o namoro não dar certo. Talvez a única certeza é aquela do poeta Vinicius de Morais, quando diz sobre o amor: “Que seja infinito enquanto dure”. O amor perfeito vai durar o tempo que as pessoas ainda tiverem vontade de se ver. Ok. Ele a pediu em namoro, e ela disse sim.

Mas o próximo encontro o preocupa. Se ela continua a acreditar que tem a chave que abre o cofre dos seus sentimentos, não sabe como vai inventar tantas histórias para responder às perguntas dela, e deixá-la feliz.

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