“No
princípio, antes que qualquer coisa existisse,
antes
que houvesse o Universo,
o
que havia era poesia.
Deus
era poesia.
A
poesia era Deus.
Deus
e a poesia eram a mesma coisa.
e
Deus criou as estrelas para, com elas,
escrever
seus poemas nos céus...”
(Rubem Alves. IN: Prólogo do Evangelho
de João, paráfrase)
Logo pela manhã
espio sabiás no ninho, junto de casa. À noite, felinos circularam pelos
arredores. Com insônia, escrevi páginas e páginas incompreensíveis, com medo de que o instinto selvagem desses gatos despertasse.
Nem preciso
cultivar minhocas e outras comidinhas para alimentar esses pequenos seres que
aqui fizeram seu habitat. Aprecio vê-los crescerem no quintal do meu olhar. Todo
o dia observo curioso, responsável, como faz um bom padrinho. Logo aprenderão a
voar, e ganharão o céu, e então os acompanharei, colado ao chão, tendo apenas o
recurso do voo raso do imaginário.
Senhoras, de
olhares duros como feras, cabelos longos e muitas certezas a respeito do
sentido da vida e da morte, vêm até minha casa para me convencer a adorar Deus,
no interior da igreja. Agradeço. Não precisa tanto sacrifício. Tenho o sol e o
ar que respiro, um coração e seus canais no compasso da vida, dançando a mesma valsa do
universo.
Todo dia Deus
vem me visitar.
Mostra-se nas
singelas cenas que provocam meus sentidos. Uma das cenas, hoje, foi a da mãe
colocando comidinhas na boca de seus filhotes, no ninho. Desconfio que Deus, na
sua pureza e simplicidade, é uma criança poeta.
Como os amigos
que não vejo há tempos, por ter simplesmente me afastado, sinto a falta de Deus
quando estou enrolado até o pescoço com migalhas, como o ciúme, a inveja, a
arrogância e o ódio. Mas Deus não se apresenta para me julgar. Afasta-me da
insignificância ao me deixar de frente com a beleza da vida, a qual ELE é.
É difícil libertar-se
da catequização. Do medo de um Deus severo, que desde a infância cortava as
asas e aprisionava. Temente a esse Deus, deixei de ser criança poeta, desconfiando
da vida ao redor. Saíam de cena as coisas belas, simples, como o nascer e o
pôr-do-sol, ou a água límpida da fonte, lambiscada com a concha das mãos.
O Deus ensinado
desempenha o papel de pai protetor. Nas estórias contadas, ele afugenta os
demônios, protegendo-nos de criaturas ameaçadoras que poderão nos sequestrar
do aconchego do útero familiar.
Mas o Deus da
catequese é um Deus pouco poético. Em vez de enriquecer nosso imaginário, nos
encheu de medo. Em vez de colorir nosso coração, nos embruteceu.
Não faz nenhuma
diferença Jesus ter sido casado ou não. Ter filhos ou não. Não muda nada saber
se os escritos bíblicos são história com H, de fatos que realmente aconteceram,
ou se são estórias – relatos míticos, lendas e fábulas.
Da mesma
maneira, de pouco adianta engarrafar Deus e seu filho nessa ou naquela
religião, se não captamos sua presença nos singelos (e belos) acontecimentos
cotidianos.
Deus é criança.
Deus brinca conosco. E “os que brincam são incapazes de fazer maldade”. Aqui,
Rubem Alves cita Alberto Caeiro, heterônomo de Fernando Pessoa:
Num meio dia de fim de primavera
Tive um sonho como uma fotografia
Vi Jesus Cristo descer à terra,
Tornado outra vez menino.
Tinha fugido do céu.
No céu era tudo falso, tudo em desacordo
Com flores e árvores e pedras.
Hoje
vive na minha aldeia comigo.Tive um sonho como uma fotografia
Vi Jesus Cristo descer à terra,
Tornado outra vez menino.
Tinha fugido do céu.
No céu era tudo falso, tudo em desacordo
Com flores e árvores e pedras.
A mim ensinou-me tudo.
Ensinou-me a olhar para as cousas,
Aponta-me todas as cousas que há nas flores.
Mostra-me como as pedras são engraçadas
Quando a gente as tem na mão
E olha devagar para elas.
Ele é a Eterna Criança, o deus que faltava.
Ele é o humano que é natural,
Ele é o divino que sorri e que brinca.
Ao fim do dia eu conto-lhe histórias das cousas só dos homens
E ele sorri, porque tudo é incrível.
Porque ele sabe que tudo isso falta àquela verdade
Que uma flor tem ao florescer.
Ele dorme dentro da minha alma
E às vezes acorda de noite
E brinca com os meus sonhos.
Vira uns de pernas para o ar,
Põe uns em cima dos outros
E bate as palmas sozinho
Sorrindo para o meu sono.
Quando eu morrer, filhinho,
Seja eu a criança, o mais pequeno.
Pega-me tu no colo
E leva-me para dentro da tua casa.
Despe o meu ser cansado e humano
E deita-me na tua cama.
E conta-me histórias, caso eu acorde,
Para eu tornar a adormecer.
E dá-me sonhos teus para eu brincar
Até que nasça qualquer dia
Que tu sabes qual é.
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