terça-feira, 18 de novembro de 2014

Deus e os sabiás


“No princípio, antes que qualquer coisa existisse,
antes que houvesse o Universo,
o que havia era poesia.
Deus era poesia.
A poesia era Deus.
Deus e a poesia eram a mesma coisa.
e Deus criou as estrelas para, com elas,
escrever seus poemas nos céus...”
(Rubem Alves. IN: Prólogo do Evangelho de João, paráfrase)

Logo pela manhã espio sabiás no ninho, junto de casa. À noite, felinos circularam pelos arredores. Com insônia, escrevi páginas e páginas incompreensíveis, com medo de que o instinto selvagem desses gatos despertasse.
Nem preciso cultivar minhocas e outras comidinhas para alimentar esses pequenos seres que aqui fizeram seu habitat. Aprecio vê-los crescerem no quintal do meu olhar. Todo o dia observo curioso, responsável, como faz um bom padrinho. Logo aprenderão a voar, e ganharão o céu, e então os acompanharei, colado ao chão, tendo apenas o recurso do voo raso do imaginário.
Senhoras, de olhares duros como feras, cabelos longos e muitas certezas a respeito do sentido da vida e da morte, vêm até minha casa para me convencer a adorar Deus, no interior da igreja. Agradeço. Não precisa tanto sacrifício. Tenho o sol e o ar que respiro, um coração e seus canais no compasso da vida, dançando a mesma valsa do universo.
Todo dia Deus vem me visitar.
Mostra-se nas singelas cenas que provocam meus sentidos. Uma das cenas, hoje, foi a da mãe colocando comidinhas na boca de seus filhotes, no ninho. Desconfio que Deus, na sua pureza e simplicidade, é uma criança poeta.
Como os amigos que não vejo há tempos, por ter simplesmente me afastado, sinto a falta de Deus quando estou enrolado até o pescoço com migalhas, como o ciúme, a inveja, a arrogância e o ódio. Mas Deus não se apresenta para me julgar. Afasta-me da insignificância ao me deixar de frente com a beleza da vida, a qual ELE é.
É difícil libertar-se da catequização. Do medo de um Deus severo, que desde a infância cortava as asas e aprisionava. Temente a esse Deus, deixei de ser criança poeta, desconfiando da vida ao redor. Saíam de cena as coisas belas, simples, como o nascer e o pôr-do-sol, ou a água límpida da fonte, lambiscada com a concha das mãos.
O Deus ensinado desempenha o papel de pai protetor. Nas estórias contadas, ele afugenta os demônios, protegendo-nos de criaturas ameaçadoras que poderão nos sequestrar do aconchego do útero familiar.
Mas o Deus da catequese é um Deus pouco poético. Em vez de enriquecer nosso imaginário, nos encheu de medo. Em vez de colorir nosso coração, nos embruteceu.
Não faz nenhuma diferença Jesus ter sido casado ou não. Ter filhos ou não. Não muda nada saber se os escritos bíblicos são história com H, de fatos que realmente aconteceram, ou se são estórias – relatos míticos, lendas e fábulas.
Da mesma maneira, de pouco adianta engarrafar Deus e seu filho nessa ou naquela religião, se não captamos sua presença nos singelos (e belos) acontecimentos cotidianos.
Deus é criança. Deus brinca conosco. E “os que brincam são incapazes de fazer maldade”. Aqui, Rubem Alves cita Alberto Caeiro, heterônomo de Fernando Pessoa:

Num meio dia de fim de primavera
Tive um sonho como uma fotografia
Vi Jesus Cristo descer à terra,
Tornado outra vez menino.

Tinha fugido do céu.
No céu era tudo falso, tudo em desacordo
Com flores e árvores e pedras.
Hoje vive na minha aldeia comigo.

A mim ensinou-me tudo.
Ensinou-me a olhar para as cousas,
Aponta-me todas as cousas que há nas flores.
Mostra-me como as pedras são engraçadas
Quando a gente as tem na mão
E olha devagar para elas.



Ele é a Eterna Criança, o deus que faltava.
Ele é o humano que é natural,
Ele é o divino que sorri e que brinca.

Ao fim do dia eu conto-lhe histórias das cousas só dos homens
E ele sorri, porque tudo é incrível.
Porque ele sabe que tudo isso falta àquela verdade
Que uma flor tem ao florescer.

Ele dorme dentro da minha alma
E às vezes acorda de noite
E brinca com os meus sonhos.
Vira uns de pernas para o ar,
Põe uns em cima dos outros
E bate as palmas sozinho
Sorrindo para o meu sono.

Quando eu morrer, filhinho,
Seja eu a criança, o mais pequeno.
Pega-me tu no colo
E leva-me para dentro da tua casa.
Despe o meu ser cansado e humano
E deita-me na tua cama.
E conta-me histórias, caso eu acorde,
Para eu tornar a adormecer.
E dá-me sonhos teus para eu brincar
Até que nasça qualquer dia
Que tu sabes qual é.

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