terça-feira, 26 de novembro de 2013

O cão e o lobo - Monteiro Lobato



Certo dia, um Lobo só pele e osso encontrou um cão gordo, forte e com o pêlo muito lustroso. Via-se bem que não passava fome. O Lobo, admirado, quis saber onde é que ele conseguia obter tanta comida.
- Se me seguires, ficarás tão forte como eu - respondeu o cão. - O homem dar-te-á restos saborosos.
- Mas o que preciso de fazer em troca? - quis saber o Lobo.
- Muito pouco, na verdade - respondeu o Cão. - Uivar aos intrusos, agradar ao dono e adular os seus amigos. Só por isto receberás carne e outras iguarias muito bem cozinhadas. De vez em quando, receberás também festas no dorso.
O Lobo ficou encantado com a ideia e meteram-se ambos ao caminho. A dada altura, o Lobo reparou que o cão tinha o pescoço esfolado.
- O que tens no pescoço? - perguntou.
- Nada de grave. É da argola com que me prendem - explicou o Cão.
- Preso? Então não podes correr quando queres? - exclamou o Lobo. - Esse é um preço demasiado elevado: não troco a minha liberdade por toda a comida do mundo.
Dito isto, desatou a correr o mais depressa que pode para bem longe dali.

sexta-feira, 22 de novembro de 2013

Televisão para dois - Fernando Sabino




Ao chegar ele via uma luz que se coava por baixo da porta para o corredor às escuras. Era enfiar a chave na fechadura e a luz se apagava. Na sala, punha a mão na televisão, só para se certificar: quente, como desconfiava. Ás vezes ainda pressentia movimento na cozinha:
    
       - Etelvina, é você ?
    
       A preta aparecia, esfregando os olhos:
    
       - Ouvi o senhor chegar... Quer um cafezinho ?

       Um dia ele abriu o jogo:

      - Se você quiser ver televisão quando eu não estou em casa, pode ver à vontade.

      - Não precisa não , doutor. Não gosto de televisão.

      - E eu muito menos.

       Solteirão, morando sozinho, pouco parava em casa. A pobre da cozinheira metida lá no seu quarto o dia inteiro, sozinha também, sem ter muito que fazer...

       Mas a verdade é que ele curtia o seu futebolzinho aos domingos, o noticiário todas as noites e mesmo um ou outro capítulo da novela, “ só para fazer sono”, como costumava dizer:

       - Tenho horror de televisão.
    
       Um dia Etelvina acabou concordando:

       - Já que o senhor não se incomoda...

       Não sabia que ia se arrepender tão cedo: ao chegar da rua, a luz azulada sob a porta já não se apagava quando introduzida a chave na fechadura. A princípio ela ainda se erguia da ponta do sofá onde ousava se sentar erecta:

       - Quer que eu desligue, doutor?

       Com o tempo, ela foi deixando de se incomodar quando o patrão entrava , mal percebia a sua chegada. E ele ia se refugiar no quarto, a que se reduzira seu espaço útil dentro de casa. Se precisava vir até a sala para apanhar um livro, mal ousava acender a luz:

       - Com licença...

       Nem ao menos tinha mais liberdade de circular pelo apartamento em trajes menores, que era o que lhe restara de comodidade, na solidão em que vivia: a cozinheira lá na sala a noite toda, olhos pregados na televisão. Pouco a pouco ela se punha cada vez mais à vontade, já derreada no sofá, e se dando mesmo ao direito de só servir o jantar depois da novela das oito. Às vezes ele vinha para casa mais cedo, especialmente para ver determinado programa que lhe haviam recomendado, ficava sem jeito de estar ali olhando ao lado dela, sentados os dois como amiguinhos. Muito menos ousaria perturbá-la, mudando o canal, se o que lhe interessava estivesse sendo mostrado em outra estação.

       A solução do problema lhe surgiu um dia, quando alguém, muito espantado que ele não tivesse televisão em cores, sugeriu-lhe que comprasse uma:

       - Etelvina , pode levar essa televisão lá para o seu quarto, que hoje vai chegar outra para mim.

       - Não precisava , doutor _ disse ela, mostrando os dentes, toda feliz. Ele passou a ver tranqüilamente o que quisesse na sua sala, em cores, e o que era melhor, de cuecas_ quando não inteiramente nu, se bem o desejasse.

       Até que uma noite teve a surpresa de ver a luz por debaixo da porta, ao chegar. Nem bem entrara e já não havia ninguém na sala, como antes_ a televisão ainda quente. Foi à cozinheira a pretexto de beber um copo d’água, esticou um olho lá pra o quarto na área: a luz azulada, a preta entretida com a televisão certamente recém-ligada.

       - Não pensa que me engana, minha velha - resmungou ele.

       Aquilo se repetiu algumas vezes, antes que ele resolvesse acabar com o abuso: afinal, ela já tinha a dela, que diabo.Entrou uma noite de supetão e flagrou a cozinheira às gargalhadas com um programa humorístico.

       - Qual é, Etelvina? A sua quebrou?

       Ela não teve jeito senão confessar, com um sorriso encabulado:

       - Colorido é tão mais bonito...

       Desde então a dúvida se instalou no seu espírito: não sabe se despede a empregada, se lhe confia o novo aparelho e traz de volta para a sala o antigo, se deixa que ela assista a seu lado aos programas em cores. O que significa praticamente casar-se com ela, pois , segundo a mais nova concepção de casamento, a verdadeira felicidade conjugal consiste em ver televisão a dois.

quarta-feira, 20 de novembro de 2013

A primavera da lagarta - Ruth Rocha



- Grande comício na floresta! Bem no meio da clareira, debaixo da bananeira!
 Dona formiga convocou a reunião. _Isso não pode continuar!
_Não pode não! Apoiava o camaleão.
_É um desaforo. A formiga gritava. _É um desaforo!
_É mesmo. O camaleão concordava.
A joaninha que vinha chegando naquele instante perguntava: Qual é o desaforo, hein?
_É um desaforo o que a lagarta faz!
_Come tudo o que é folha! Reclamava o Louva-a-deus.
_Não há comida que chegue!
A lagartixa não concordava: _Por isso não que as senhoras formigas também comem.
_È isso mesmo! Apoiou o camaleão que vivia mudando de opinião.
_É muito diferente, depois a lagarta é uma grande preguiçosa, vive lagarteando por aí.
_Vai ver que a lagartixa é parente da lagarta. Disse o camaleão que já tinha mudado de opinião.
_Parente não! Falou a lagartixa. _É só uma coincidência de nome!
_Então não se meta!
_Abaixo a lagarta! Disse o gafanhoto. _Vamos acabar com ela!
_Vamos sim! Gritou a libélula. Ela é muito feia!
O Senhor Caracol ainda quis fazer um discurso: _É, minhas senhoras e meus senhores, como é para o bem geral e para a felicidade nacional, em meu nome e em nome de todo mundo interessado, como diria o conselheiro Furtado, quero deixar consignado que está tudo errado. Mas como o caracol era muito enrolado, ninguém prestava atenção no coitado.
Já estavam todos se preparando para caçar a lagarta.
_Abaixo a feiúra! Gritava aranha como se ela fosse muito bonita.
_Morra comilona! Exclamava o Louva-a-deus como se ele não fosse comilão também.
_Vamos acabar com a preguiçosa! Berrava a cigarra esquecendo a sua fama de boa vida.
E lá se foram eles, cantando e marchando:
_Um, dois, feijão com arroz, três, quatro, feijão no prato.
_Um, dois, feijão com arroz, três, quatro, feijão no prato.
Mas, a primavera havia chegado, por toda a parte havia flores na floresta, até parecia festa. Os passarinhos cantavam e as borboletas, quantas borboletas de todas as cores, de todos os tamanhos borboletearam pela mata. E os caçadores procuravam pela lagarta:
_Um, dois, feijão com arroz, três, quatro, feijão no prato.
_Um, dois, feijão com arroz, três, quatro, feijão no prato.
E perguntavam para as borboletas que passavam:
_Vocês viram a lagarta que morava na amoreira? Aquela preguiçosa, comilona, horrorosa.
As borboletas riam, riam, iam passando e nem respondiam. Até que veio chegando uma linda borboleta.
_Estão procurando a lagarta da amoreira?
_Estamos sim. Aquela horrorosa, comilona.
E a borboleta bateu as asas e falou:
_Pois, sou eu.
_Não é possível! Não pode ser verdade! Você é linda!
E a borboleta sorrindo explicou:
_Toda lagarta tem seu dia de borboleta, é só esperar pela primavera.
_Não é possível, só acredito vendo!
_Venha ver! Isso acontece com todas as lagartas. Eu tenho uma irmã que está acabando de virar borboleta.
Todos correram para ver. E ficaram quietinhos espiando. E a lagarta foi se transformando, se transformando até que de dentro do casulo nasceu uma borboleta.
Os inimigos da lagarta ficaram admirados
_É um milagre!
_Bem que eu falei. Disse o camaleão que já tinha mudado de opinião.
E a borboleta falou: _É preciso ter paciência com as lagartas se quisermos conhecer as borboletas.

terça-feira, 19 de novembro de 2013

Lugar fora do comum


Tinha engatilhada a frase que espantava as colegas (bem intencionadas) que propunham resolver o seu problema de falta de namorada. Dizia assim: “Quem eu quero não me quer, quem me quer mandei embora”.
As amigas e colegas pingavam conselhos em delicadas prestações (e sem a necessidade de entrada). Uma delas dizia: “Depois de quase trinta anos com o meu Nico, estamos tão acostumados... Não me imagino vivendo sem ele!”.
Sem aparente pressa, ele não quer arriscar se envolver com amores encomendados. Desconfia do bom gosto das amigas-cupido. Nem se sensibiliza com os punhados de qualidades que possuem as candidatas. Aposta nos momentos inesperados, mágicos, quando poderá surgir o grande amor: nem jovem, nem velho demais, alma de muitas qualidades e cumplicidades.
O argumento-míssil, que o deixava desnorteado, vinha de uma colega que estava beirando-os-sessenta: “Você não é mais um guri! Logo logo estará velhinho. Olha só a judiaria, aqueles velhos abandonados nos asilos, sem ninguém para os cuidar. Você quer terminar assim?”
Com esta sentença zum-bi-zan-do na cachola, entrou num sebo, na feira do livro de sua cidade. Tinha a esperança de garimpar algo valioso nestes lugares onde se junta tanta variedade. Livros que antes despertaram a paixão em tantos lares...
Centenas de livros que fizeram companhia, amenizaram a solidão de seus conterrâneos. Ali naquelas estantes exibia-se parte do conhecimento (ideias, crenças, valores, verdades) que interagiu com seu povo...
Espantou-se. Depois de mais de uma hora de pesquisa, apenas dois livros chamaram a sua atenção.
Boa parte dos livros era sobre religião e autoajuda.
Sentiu-se em-pa-ra-fu-sa-do. Como levar a sério conselhos de pessoas com noventa e nove por cento de “verdades” padronizadas e, como aqueles livros todos, necessitando ser recicladas?
Grande parte dos livros do sebo não o interessavam. Foram desejados, adquiridos e, depois, dispensados pelas pessoas. Claro! Tudo era óbvio. Clichê. Lugar comum. A felicidade, a prosperidade, a saúde perfeita, etc., etc., anunciadas por dezenas, centenas de livros, todos são lugares comuns!
Tinha pavor de clichês, do tipo: “Tenha uma vida em grande estilo”. “Pare de chover no molhado”. “fuja da raia”. “Seja um divisor de águas”. Para ele, estas são fórmulas previsíveis que, de tanto serem usadas, já não dizem mais nada.
Os noventa e nove por cento dos livros do sebo que as pessoas da cidade passaram adiante, e que agora ele rejeitou, parecem lugares comuns. Da mesma maneira os conselhos das colegas e amigas sobre a importância de se ter alguém. Conclusão óbvia: ser um herói da resistência deve-se à sua postura teimosa. Fugir do lugar comum, e adotar o “lugar nenhum” ou, até, o “lugar fora do comum”.
Enquanto não encontra o amor que ninguém escolheu, trata todas as gurias como um príncipe: como suas namoradas! É gentil, cavalheiro, porque as mulheres são deusas. Ou melhor, tem certeza: Deus é mulher.

terça-feira, 12 de novembro de 2013

Aqui é meu lugar


Guri de uns cinco ou seis anos. Pés descalços, montado num cavalo enorme. Cruzou diante de minha casa. Ao me ver boquiaberto, disse:
- Vou dar a volta e subir correndo!
Parecia um bonequinho montado num dinossauro. Poderia cair. Preocupei-me.
Que nada. Deu de rédeas no cavalo e subiu a rua num trote medonho. 
Isso me alegrou, uma cena incomum num final de sexta-feira. Aplaudi, “bravo!!”, e o guri disse que ia trotar de novo... Eu falei:
- Não precisa, você é demais!
Estas cenas enchem meus olhos, e me fazem cravar raízes por aqui. Pouco tempo atrás desejei ir embora de Ijuí, apesar dos fortes laços com esta cidade. Não nasci aqui, vim para cá há uns vinte e poucos anos. Mas me considero ijuiense. Outra perspectiva de trabalho, outros amigos, tive a oportunidade de mudar para o norte do país.
Na ocasião, rabisquei um poema para enviar aos amigos, como justificativa e despedida. Um trecho dizia mais ou menos assim:
"Não quero ser camponês
apegado ao velho chão
quero ser é marinheiro 
e explorar outros mares, 
marejar triaventuras
e respirar novos ares...
Talvez as linhas da mão
e uma bela cartomante
mostrem a melhor trilha
pra fugir de minha ilha
e mudar meu horizonte...
Sentirei falta do mate
da companhia do meu filhote
compartilhar histórias e livros
com todos os meus amigos.
Meu consolo é assim:
Vou, querendo ficar
Fico, querendo ir...
Estudei o mapa do país
dos rincões até as praias.
Preciso encontrar meu norte
antes que a casa caia!"
Foram vários os motivos que me fizeram fincar pé por aqui. Alguns eu tinha consciência na véspera. Outros eu percebo agora. Um dos grandes motivos que amarram meu cavalo em Ijuí são estas cenas urbanas, como a do guri, no começo desta história, que certamente não verei em nenhum outro lugar. 
Minha vinda a Ijuí deu-se, principalmente, para fazer um curso superior. Na época a Unijuí há pouco iniciava seu percurso como universidade. Porém, a Fidene já tinha uma bela trajetória (desde a década de 1950) como Faculdade de filosofia. Nestas décadas todas a Unijuí formou professores do noroeste gaúcho, oeste catarinense e sudoeste do Paraná. Nestas regiões, hoje se situa a Universidade Federal da Fronteira Sul. Regiões que antes não haviam sido adotas pelo Estado. Temos que reconhecer o esforço que a comunidade fez, com a instalação do Ensino Superior em Ijuí e região. Sabemos, hoje, como na época Ijuí estava à frente de seu tempo. 
Falando nisso, hoje, em nossa região, ainda estamos à frente ou poderemos ser deixados para trás, por outros municípios?
A criação de um campos da UFFS significa colocar Ijuí como um polo cultural, acadêmico e científico, no mesmo nível como temos em saúde. Penso que uma Universidade Federal em Ijuí, em vez enfraquecer, vai fortalecer ainda mais as universidades particulares, como ocorre em Chapecó, Erechim, Passo Fundo e Santa Maria. Em vez de tantos e tantos jovens (do sul do Brasil e até de outras regiões) se deslocarem para outras cidades em busca de Universidade Pública, poderemos atraí-los para Ijuí. Isso efetiva ainda mais aquela ideia de universalidade, o que é a “essência” da universidade. E isso vai se somar a tantos outros investimentos em outras áreas, que colocam Ijuí com um privilegiado Índice de Desenvolvimento Humano.

segunda-feira, 4 de novembro de 2013

Se enlouqueci, me avisem!


De onde vem essa vontade tardia de cuidar de cada plantinha da horta? De olhar para o céu, percorrer as previsões do tempo na internet, ansioso para que chova e a semente venha a brotar? 
E essa noia zen de de relaxar olhos e pés, pisar na grama contemplativo diante dos canteiros? De fazer planos, vinte pés de alface crespa aqui, no canto próximo ao muro transplantar as mudinhas de pimenta que trouxe do pomar do professor Helio, adubar as covas para os chás, salsa e cebolinha... de onde vêm essas picuinhas?
Saudoso, cheguei a plantar sementes de melancia, como se fosse agricultor de verdade – urbano doido, disponho apenas de um pedaço de terra, nos fundos do terreno! Tenho redobrado a atenção, em cada quintal que me deparo, em cada rua que passo, a geometria dos canteiros, a disposição dos ventos, a porcentagem de sol que doura o chão... E pesquiso sobre sucos, as propriedades curativas de abacaxis e morangos, enfim, vasculho tintim por tintim  os sites especializados...
De onde vem essa atitude ridícula de negociar com pombos, sabiás e joões de barro, para que cisquem por todo canto, menos na terra que preparei? E já tenho insônia com as invasões imaginárias da formiga-cortadeira – Deus me livre!
Minha farmácia doméstica, o pé de limoeiro, parece indeciso sobre ficar ou crescer... Nesses anos todos, dei a mínima para isso, e agora sofro por não vê-lo adulto, carregado de flores e frutos. Então, desfilo uma ladainha de perguntas sobre cuidados com o solo, para amigos engenheiros agrônomos, e encaro minhas dúvidas como as mais importantes do mundo, mais do que o aquecimento global. Que metamorfose ocorreu, se durante anos apenas fiz recuar o mato, aparando a grama só quando os olhares dos vizinhos o imploravam?
Que bizarrice é esta para, de uma hora para outra, eu me preocupar com inseticidas, herbicidas e transgênicos? Que insanidade me faz agora olhar para o bife ou o peito do frango e sofrer com o bicho, como se fosse eu mesmo?
Acho que adivinho um pouco o que se passa comigo. Deve ser uma reação a essa pressa moderna, de nos afastarmos dos outros e mergulharmos no mundo virtual, atrofiando nossos bons e velhos sentidos!
Devolvam-me o que perdi com essa solidão urbana. A horta representa o oxigênio necessário aos meus sentidos – depois de anos e anos afastado da terra, do pomar e da cozinha, quero ver, ouvir, cheirar, tocar e, mais do que tudo, sentir!
Acompanhar o nascimento, crescimento e maturação das frutas, legumes e verduras significa ganhar mais vida, e renascer.
Irônico, meu amigo Monstro desconfia que minha cabeça aterrissou em outro planeta, e lá estou escrevendo e cultivando abobrinhas. Não o repreendo. Ele se criou no mundo urbano. Nunca vai compreender que quem nasceu e se criou na roça vai carregar terra debaixo das unhas pelo resto da vida.
Se é verdade que enlouqueci, por favor, me avisem!

sexta-feira, 1 de novembro de 2013

Odisseia - Carlos Drummond de Andrade

O amor foi à função, bebeu, cantou e bailou, estava muito excitado, tiveram de levá-lo para casa e prendê-lo no quarto para que repousasse. No dia seguinte, o amor cantou e bailou sem beber, e era sempre primavera nos seus modos e falas. O amor viajou, voltou, fazia piruetas, trocadilhos, esculturas, criava línguas e ensinava-as de graça. Todos o queiram para companheiro, paravam de guerrear para abraçá-lo, jogavam-lhe moedas que ele não apanhava, gerânios que ele oferecia às crianças e às mulheres. O amor não adoecia nem ficava mais velho, resplandecia sempre, havia quem o invejasse, quem inventasse calúnias a seu respeito, o amor nem ligava. Cercaram sua casa de madrugada, meteram-lhe a cabeça num saco preto, conduziram-no a um morro que dava para o abismo, interrogaram-no, bateram-lhe, ameaçaram jogá-lo no precipício, jogaram. O amor caiu lá embaixo aos pedaços, mas se recompôs e foi preso outra vez, aplicaram-lhe choques elétricos, arrancaram-lhe as unhas, os dedos, o amor sorria e quando não podia mais sorrir gritava numa de suas línguas novas, que não era entendida. E desfalecendo voltava a consciência, e torturado outra vez, era como se não fosse com ele. Quebraram o amor em mil partículas, e ninguém pôde ver as partículas. Foi sepultado normalmente no fim do mundo, que é para lá da memória. Ninguém o localizou, mas todos falavam nele, o amor virou um sonho, uma constelação, uma rima, e todos falavam nele, e ressuscitou ao terceiro dia.

quinta-feira, 24 de outubro de 2013

Futebol de rua - Luis Fernando Verissimo


Pelada é o futebol de campinho, de terreno baldio. Mas existe um tipo de futebol ainda mais rudimentar do que a pelada. É o futebol de rua. Perto do futebol de rua qualquer pelada é luxo e qualquer terreno baldio é o Maracanã em jogo noturno. Se você é homem, brasileiro e criado em cidade, sabe do que eu estou falando. Futebol de rua é tão humilde que chama pelada de senhora.

Não sei se alguém, algum dia, por farra ou nostalgia, botou num papel as regras do futebol de rua. Elas seriam mais ou menos assim:

DA BOLA - A bola pode ser qualquer coisa remotamente esférica. Até uma bola de futebol serve. No desespero, usa-se qualquer coisa que role, como uma pedra, uma lata vazia ou a merendeira do seu irmão menor, que sairá correndo para se queixar em casa. No caso de usar uma pedra, lata ou outro objeto contundente, recomenda-se jogar de sapatos. De preferência os novos, do colégio. Quem jogar descalço deve cuidar para chutar sempre com aquela unha do dedão que estava precisando ser aparada mesmo. Também é permitido o uso de frutas ou legumes em vez de bola, recomendando-se nestes casos a laranja, a maçã, o chuchu e a pêra. Desaconselha-se o uso de tomates, melancias e, claro, ovos. O abacaxi pode ser utilizado, mas aí ninguém quer ficar no golo.

DAS GOLEIRAS - As goleiras podem ser feitas com, literalmente, o que estiver à mão. Tijolos, paralelepípedos, camisas emboladas, os livros da escola, a merendeira do seu irmão menor e até o seu irmão menor, apesar dos seus protestos. Quando o jogo é importante, recomenda-se o uso de latas de lixo. Cheias, para agüentarem o impacto. A distância regulamentar entre uma goleira e outra dependerá de discussão prévia entre os jogadores. Às vezes esta discussão demora tanto que quando a distância fica acertada está na hora de ir jantar. Lata de lixo virada é meio golo.

DO CAMPO - O campo pode ser só até o fio da calçada, calçada e rua, rua e a calçada do outro lado e - nos clássicos - o quarteirão inteiro. O mais comum é jogar-se só no meio da rua.

DA DURAÇÃO DO JOGO - Até a mãe chamar ou escurecer, o que vier primeiro. Nos jogos noturnos, até alguém da vizinhança ameaçar chamar a polícia.

DA FORMAÇÃO DOS TIMES - O número de jogadores em cada equipe varia, de um a 70 para cada lado. Algumas convenções devem ser respeitadas. Ruim vai para o golo. Perneta joga na ponta, a esquerda ou a direita dependendo da perna que faltar. De óculos é meia-armador, para evitar os choques. Gordo é beque.

DO JUIZ - Não tem juiz.

DAS INTERRUPÇÕES - No futebol de rua, a partida só pode ser paralisada numa destas eventualidades:

a) Se a bola for para baixo de um carro estacionado e ninguém conseguir tirá-la. Mande o seu irmão menor.

b) Se a bola entrar por uma janela. Neste caso os jogadores devem esperar não mais de 10 minutos pela devolução voluntária da bola. Se isso não ocorrer, os jogadores devem designar voluntários para bater na porta da casa ou apartamento e solicitar a devolução, primeiro com bons modos e depois com ameaças de depredação. Se o apartamento ou casa for de militar reformado com cachorro, deve-se providenciar outra bola. Se a janela atravessada pela bola estiver com o vidro fechado na ocasião, os dois times devem reunir-se rapidamente para deliberar o que fazer. A alguns quarteirões de distância.

c) Quando passarem pela calçada:

1) Pessoas idosas ou com defeitos físicos.

2) Senhoras grávidas ou com crianças de colo.

3) Aquele mulherão do 701 que nunca usa sutiã.

Se o jogo estiver empatado em 20 a 20 e quase no fim, esta regra pode ser ignorada e se alguém estiver no caminho do time atacante, azar. Ninguém mandou invadir o campo.

d) Quando passarem veículos pesados pela rua. De ônibus para cima. Bicicletas e Volkswagen, por exemplo, podem ser chutados junto com a bola e se entrar é golo.

DAS SUBSTITUIÇÕES - Só são permitidas substituições:

a) No caso de um jogador ser carregado para casa pela orelha para fazer a lição.

b) Em caso de atropelamento.

DO INTERVALO PARA DESCANSO - Você deve estar brincando.

DA TÁTICA - Joga-se o futebol de rua mais ou menos como o Futebol de Verdade (que é como, na rua, com reverência, chamam a pelada), mas com algumas importantes variações. O goleiro só é intocável dentro da sua casa, para onde fugiu gritando por socorro. É permitido entrar na área adversária tabelando com uma Kombi. Se a bola dobrar a esquina, é córner.

DAS PENALIDADES - A única falta prevista nas regras do futebol de rua é atirar um adversário dentro do bueiro. É considerada atitude antiesportiva e punida com tiro indireto.

DA JUSTIÇA ESPORTIVA - Os casos de litígio serão resolvidos no tapa.

terça-feira, 22 de outubro de 2013

O Ministério da Saúde adverte





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Vou tentar descrever uma cara de sofrimento. Ele passava na rua, fumando. O cigarro entre os dedos vinha acompanhado da expressão do rosto e do restante do corpo, de atração e rejeição. Jogá-lo fora, embora estivesse pela metade, para daí a pouco acender outro. Sinto sua relação conflituosa com o cigarro, de prazer e doença, perdas e ganhos - eu vi - fazia sentir-se um monstro, um bandido, mesmo que estivesse ao ar livre.
Então, desliguei o piloto automático e passei a observar os transeuntes fumantes que cruzavam por mim. “Transeunte” é uma palavra horrível, eu odeio me imaginar assim quando saio para caminhar. Outra palavra que considero feia é “pedestre”, lembra “terrestre” e “rastejante” que, embora forçado, associo com tristeza e sofrimento. Quanto à alegria, não vi em nenhum daqueles transeuntes fumantes qualquer centelha disso. Não exibiam uma expressão de prazer, que todo vício deveria proporcionar. Isso, em parte, parece que tem a ver com as campanhas antitabagismo, sendo que a moral dos fumantes, a cada “Ministério da Saúde adverte...” despenca no abismo.
Quando criança, meu convívio com o cigarro não é como hoje: via meu pai fumar o palheiro e também aqueles cigarros ainda sem filtro (meu pai fumava a marca Tufuma). Junto com o ato de fumar, tenho a lembrança das conversas com o vizinhos, acompanhadas pela roda do mate. Cigarro na infância, portanto, lembra relaxamento, descontração, encontro com os amigos. Recordo também as mãos de meu pai preparando o palheiro. Era um artesão, confeccionava seu “objeto” com muito carinho. Eram as mesmas mãos (calejadas) que preparavam a terra para o plantio, que faziam a colheita, que confortavam os filhos e, inclusive, que tapavam o rosto em pranto solitário.
Sei o sofrimento que é se afastar de certos hábitos. Mas não embarco, no mais, no discurso do “politicamente correto”. Meus amigos, fumantes ou não: estamos juntos nesta “odisséia”. Não vamos nos auto-flagelar. Não somos os responsáveis pelos testes nucleares, que podem botar o planetinha pelos ares. Não somos os responsáveis pela fome mundial, nem pela má distribuição de renda... Ou somos?
O vício não pode ser motivo para andarmos cabisbaixos, considerando-nos merecedores da pena capital. Por outro lado, há um horizonte, chamado “bom senso”, que vale à pena não perder de vista. Visar um meio termo, entre o demais e o de menos, o excesso e a falta. Quem sabe consigamos um equilíbrio entre nossos impulsos de prazer e de dor. (Um desconfiômetro que acenda a luzinha quando descambamos rumo ao excesso).
Se tivesse o talento e o direito de dar conselhos, diria: Amigos, nos preocupemos, principalmente, com as crianças. Como? Com nosso exemplo de vida, o cultivo de valores, a tal da honestidade. Também, não deixemos de contar histórias. Sim, contemos as nossas e outras histórias, inclusive o namoro, casamento e o difícil divórcio com o cigarro. Falemos, e muito, que nos sentiremos mais leves, para constatarmos que não estamos sozinhos com estes problemas. De um jeito ou de outro, compartilhamos tantas angústias com tantos irmãos. Ao falarmos sobre, percebemos que o monstro não é tudo o que parece.
Porém, cuidado para não nos repetirmos. Igual ao vício, é chato ouvir e ouvir sempre a mesma história, e ter a impressão de que são todas parecidas. Por essas é que vale o esforço para deixar de fumar. Se conseguirmos, estaremos criando uma nova história.

sexta-feira, 18 de outubro de 2013

Para uma garota de quinze anos - Lourenço Diaféria


Nós a trouxemos para casa logo nos primeiros dias do mês de novembro, faz quinze anos. Tinha o rosto miúdo, um tufo enroladinho de cabelos pretos, e os olhos já prometiam ser o que são hoje: janelas escancaradas sob cílios longos. Chorava nas horas certas. Costumava tomar a última mamadeira da noite, ou largar o peito da mãe, já adormecida, e assim varava a madrugada até as primeiras luzes do dia.
Aprendeu a sorrir com a precocidade das crianças que vão ser alegres, e ficamos surpresos ao ver que o bebê descia do berço e ensaiava os passos na direção dos braços que o aguardavam. Cresceu com jeito de carneirinho: um carneirinho macio que gostávamos de carregar no colo, até que seus pés se desprenderam de todo e buscaram o contato com o chão de cimento, conquistando a gloriosa sujeira da infância.
Depois do banho, penteada, perfume de sabonete, se encolhia junto às minhas mãos e me aquecia com o calor de seu pijama de flanela.
Vejo-a de lancheira cor-de-rosa descobrindo a primeira tarde na escola, jardim onde se reuniam outras crianças de sua idade.
Um dia me trouxe um desenho pintado com todos os lápis de cor que eu lhe havia dado. Eu disse: "Está muito bonito!".
E era verdade.
Ganhou cartilha. Descobriu a música que as letras fazem quando se misturam a outras letras. Fez a primeira composição com tinta, ficou com receio de tirar nota baixa, roeu as unhas, freqüentou uma escola-modelo no Bexiga (magnífico projeto de ensino depois reduzido à expressão mais simples de uma escola como outra qualquer).
Nós a criamos com simplicidade e ternura.
No íntimo, me recuso a aceitar que todas essas coisas levaram apenas quinze anos para acontecer e transformá-la na mocinha morena que misturou no tecido de seu temperamento uma densa compreensão pelas pessoas e principalmente pelas crianças ainda bem pequenas, que se agarram a ela como se tivesse visgo: compreensão e carinho misturados a uma pitada de timidez muito mal disfarçada pela garra com que se atira às decisões que aprendeu a tomar sozinha, senhora de seu nariz - aliás desafiante e arrebitado.
Quinze anos.
Imaginava eu que nessa idade as meninas morenas e loiras sonham sempre com longas festas, onde sempre aparece um cara que, além de tocar uma baita bateria, consegue um equipamento de luz negra, e tem um conjunto que faz um som da pesada, ou então chega com duas caixas e um amplificador, e tudo fica muito louco até o momento solene da valsa, com as meninas portando velas acesas e os rapazes com flores, enfim, a zorra dos quinze anos que os pais curtem com tremor dentro do peito, isso quando não se cotizam para o grande baile das debutantes, rigorosamente lindas, apresentadas geralmente por um compenetrado colunista social ou por um artista que, "... como anunciamos ao distinto público", acedeu ao convite da cidade, mesmo tendo de abandonar compromissos profissionais já assumidos, como a filmagem dos vinte últimos capítulos da novela em que é personagem principal.
Quinze anos.
Onde terei errado na minha função de pai?
Pois a menina de quinze anos que carreguei no colo e que admirei através do vidro da maternidade na noite de novembro em que a lâmpada cor-de-rosa se acendeu recusa com um sorriso provocador qualquer coisa que lembre essa festa de aniversário. E apenas deposita um beijo na minha testa, como se esse gesto bastasse para ela provar que acaba de completar quinze anos.
Não sei onde foi buscar esse despojamento e essa indiferença pela vaidade frágil que dura o tempo do spray no ar.
Chego a me atemorizar. Penso que, por desleixo ou falta de prática, falhei nalgum ponto - e criei a filha de um operário, de um ferroviário, de um lutador de boxe que perdeu por pontos, de um balconista das Casas Pernambucanas, de um lanterninha de cinema, ou - para pensar o pior - criei a filha de um mero Cronista da Cidade.

Que Deus me perdoe se falhei. E que Deus me abençoe se minha filha de quinze anos pensa exatamente como deve pensar uma garota morena de quinze anos, sem os cacoetes e sem os falsetes que nós, os adultos, gostamos de emprestar a essa idade própria das decisões pessoais, quando se aprende a usar o dom - hoje raro e falsificado - chamado: a liberdade de ser.

segunda-feira, 14 de outubro de 2013

As manchetes do Dalton



Dalton é um personagem que eu criei. Pseudônimo ou heterônomo, não sei. Esses dias Dalton propôs escrevermos outro tipo de texto. A partir de manchetes de jornais e revistas, isolando-as do texto que elas anunciam. Segundo ele, ao serem inseridas num outro contexto, as palavras ganham um novo significado. Isso talvez ajude a colorirmos um pouco nossa realidade. Disse-lhe:
- Pra você, o mundo tem sentido ou é um arco-íris total? Eu me preocupo com o leitor. Para ser compreensível, a escrita necessita de uma lógica. Que tenha início, meio e fim...
Dalton não me ouvia. Prosseguiu na sua viagem lendo algumas manchetes de jornais e revistas, que ele compilou:
"Marina enrola-se na própria rede." "Marina chora, Dilma comemora." "Linda, perigosa e degradada." "Nada vai desaparecer, tudo vai se interligar." "Ataque a museu não combina com professor." "No mundo, uma em cada oito crianças passa fome." "Quando Dilma beijará a cruz?" "Como aproximar meninos e meninas." "Obama pôs a mão na colmeia." "Nossos genes não têm dono." "Existem gays no Vaticano." " Meretrizes felizes e outros deslizes." "O mar é um lixo." "Moralidade total flex."
Após sua leitura, óbvio, eu estava intrigado. As frases tocavam em diversos assuntos, alguns próximos, outros totalmente distintos. Disse a Dalton que, a cada dia, novas manchetes, novos ou velhos assuntos. Diante disso, nossa tarefa é a de buscar uma ordem. E ele retrucou:
- Que tal exercitarmos nossa criatividade, criando um novo texto ao interrelacionar as manchetes que eu separei? É possível fazer um ensaio literário.
E leu mais frases:
"Pague um mico por aqui." "Ter filhos traz intelectualidade." "Idosos gordinhos morrem menos." "Por que a gente sente vergonha alheia?" "Urso polar tem colesterol alto?" "Quem sabe faz ao vivo." “Nada se cria, tudo se copia”. “Interino também sonha.”
Perdi a paciência...
    - Pare! Isso é uma confusão total!
    - Calma... Só você não enxerga que as frases podem ser relacionadas. Deixa eu ler mais algumas.
    "Com dinheiro não se brinca." "Como ler um livrão numa sentada." "E se a gente parasse de comer carne?" "Da série ninguém consegue entender." "Fechei as portas para o diálogo."
    - Dalton, pegas tuas frases e enfia no ... Nosso mundo não tem nada a ver com isso. Ele segue uma lógica, uma determinação. E acrescentei:
    - Observe a maneira como se ensina redação, para o ENEM, a esses garotos e garotas do Ensino Médio. Você vem com literatura, quando o país quer qualificar seus jovens para o mercado de trabalho? Ninguém vai ligar para tuas malucas viagens literárias! O Brasil com urgência para dar um lugar ao sol a um bando de jovens, e você quer provocá-los com literatura? Ora bolas! Se você quer se divertir, pesquisando frases soltas, faça como eu: uma professora, amiga minha, fez uma prova de ciências para seus alunos de Ensino Fundamental. Escuta só as respostas de um aluno para duas questões:

    Pergunta: defina o núcleo da célula.
    Resposta do aluno: “É a parte redondinha do meio.”
    Pergunta: Quais as principais características dos seres vivos?
    Resposta do aluno: “Alto, baixo, gordo e magro.”
    Ao ouvir isso, Dalton abriu um sorriso de empolgação:
    - Cara, isso rende um texto divertido. Já tenho sua manchete: “ Humor volta às aulas”.

Pílulas diárias de fofoca

  – Em Canela, ninguém cumprimenta ninguém! Em Capão, todo mundo diz “bom dia!”, “tudo bem?”. Aqui tu anda de bermuda e chinelos e ningu...