sábado, 9 de novembro de 2024

Apenas este instante

 


A prosa daquele senhor impregna o ar.

Ao exalar suas frases, meio que balança a cabeça,

as pernas, dá a impressão de que vai para muitos lugares

ao mesmo tempo.

As opiniões, meio patéticas, despertam-me lembranças

de meus antepassados.

Eram ágeis? Como?

O coração bombeava direitinho sangue por todo o corpo,

ou era fraco?

E os dentes,

e o nervo ciático,

a quantas andava a vitamina D,

e a higiene pessoal,

e as doenças sexualmente transmissíveis?

Quanto % usaram de sua cabeça animal?

Darwin, me ajude:

como cheguei até aqui, em meio a tantos

apetites aleatórios?

Darwin, diga, por favor:

como fui o escolhido, em meio a uma competição

entre milhões de espermatozoides?

Tem dias que olho para trás

e vejo meus ancestrais como uns heróis.

Noutros dias me convenço de que foram uns fodidos.

(Mas que isso não sirva para justificar

esta vidinha miserável, não é mesmo?).

Tem dias que seus corpos despertam

e soltam faíscas das fiações dos postes de minha rua.

Então, furiosos, arrancam pratos e copos de minhas mãos

e os estraçalham no vazio.

Minha estratégia,

como a da maioria de vocês,

é jogá-los no esquecimento –

olvidá-los, ignorá-los –

embarcando no delírio coletivo,

como se tudo o que existe

é este instante.

Este,

apenas

este.

 

(B. B. Palermo)


quarta-feira, 6 de novembro de 2024

Dia de mudança


 

Era um dia especial, então fui cedo pro bar.

Desejava contar pros bacanas a novidade:

depois de alguma espera, deixaria a pensão

pra morar no meu apê.

Ao chegar, vi que o Marcão e o Zé

acompanhavam a Lau, no violão –

cantavam, daquele seu jeito, o “Faroeste Caboclo”.

Depois de um mês mamando alguns tipos de chás,

Marcão baixou a guarda e voltou pro Natu Nobilis.

Fase bem louca, essa dos chás:

ele parecia uma dama inglesa

tagarelando suas incríveis experiências

longe do álcool, amparado

por umas burguesinhas de 70 anos.

Não me encorajei em acompanhá-los.

Faceiro, Marcão se atirava nos palavrões,

rimava “eiro” com “puteiro” e tals.

Não tinha jeito, Lau afastava o violão

e reclamava:

– Tu tá drogado, menino!

 

Quando cheguei na pensão,

dona Juju me aguardava

numa perua importada.

De cara, puxou as orelhas deste palerma:

– Tu anda bebendo com o Zé e o Marcão, não é?

Cuidado! Eles entornam pra caramba

e fumam maconha!

A esse respeito, ela tinha toda a razão –

já que trabalhava com adolescentes

infratores.

 

Minhas mudanças nunca foram grande coisa.

Dessa vez, tinha umas 4 ou 5 caixas com livros

mais alguns badulaques e sacolas com roupas.

Entramos no apê e dona Juju explicou

tintim por tintim como tudo funcionava –

nunca tive forno elétrico, chaleira elétrica,

micro-ondas e etc. e tals.

Me senti em casa quando ela abriu

uma gaveta do armário da cozinha

e explicou como guardava os talheres,

para escapar da presença de certas criaturas.

Maravilha – pensei.

Em todos os lugares em que morei

sempre tive a grata companhia das baratas!

Para brindar o negócio do apê e da nossa amizade,

no dia seguinte fizemos um churrasco.

Convidei alguns andarilhos, parceiros do bar.

Todos apareceram – e foi um senhor porre!

No outro dia, eu mesmo subscrevia

um abaixo-assinado contra a minha presença

no ambiente!

 

(B. B. Palermo)


segunda-feira, 4 de novembro de 2024

Pobrezinho do B. B. Palermo

 


Uma amiga – hoje – me falou:

– Américo, você trata muito mal

o B. B. Palermo!

Fiquei paralisado.

Confesso que tenho algumas dificuldades –

nesse trabalho de imaginar e criar

histórias e poemas –

para identificar ou diferenciar autor

de personagem.

Cheguei a acreditar, juro,

que é o Palermo

quem dá as cartas!

O mais legal é feedback da galera.

 

Obrigado, Rosane!

 


quinta-feira, 31 de outubro de 2024

Viagem ao fim da noite




O cachorro passa mancando...

não me percebe.

Compreendo: a vida é busca, é movimento.

Quem prova isso é o motoboy e sua descarga barulhenta

e as dezenas de vezes que passou pela rua, hoje,

como um trator levantando vôo.

O cretino não sabe ou não quer saber

da tal da “poluição sonora”.

Alguém aí se importa?

Vou à praia no entardecer.

A natureza 

NATUREZA 

me chama.

Eis que me deparo com um trator

puxando vaga/metódica/mente uma rede

e – sei lá... – fiquei triste, como a personagem da Clarice

em “Paixão segundo GH”, que devorou uma barata.

Eis uma tristeza que ninguém sabe explicar.

Assim que a rede saiu do mar em direção à praia,

fui encarado por um peixe-espada,

e seus olhos me fuzilaram:

 

– EU NÃO DESEJAVA MORRER!

 

Eis que surgem lembranças de porres e fiascos

nas noites boêmias,

num tempo em que meus olhos estavam

em melhor estado de conservação

do que o pobre diabo do peixe enroscado

naquela rede.

Mais cedo ou mais tarde,

e que isso sirva de consolo,

estaremos todos enredados –  alegres ou faceiros –

a uma rede que chamam de viagem

ao fim da noite.

 

(B. B. Palermo)

 

segunda-feira, 28 de outubro de 2024

Ovelha desgarrada

 


Manhã de domingo, Beiço deu as caras:

– Velho. Andei pensando. Está na hora do Cadelão parar de cair nas sarjetas próximas a bares para cair na sarjeta da alma. Comece assim: "Naquele bar, bem ali, o tédio me serviu um copo de angústias, do qual bebi de um só gole".

Digo pro filho da p*ta:

– Hein, Beiço, tu acha que sou ovelha desgarrada ou desgraçada?

– Por que, Cadelão?

– Senhoras de uma igreja me chamaram aqui no portão de casa. Queriam ler pra mim passagens da Bíblia. Aí, falei pra elas:

“Podemos ler sim, mas tenho livros de montão por aqui... Que tal lermos um pouco do livro sagrado, e um pouco do Dostoievski e alguns parágrafos da ‘Madame Bovary?’”.

Cara, em segundos me peguei falando sozinho. Acho que sou o tipo de ovelha que não tem salvação!

Aí, Beiço veio com tudo:

– Véio, não gaste munição com essas almas que servem de “mulas” aos pastores das igrejas, correndo atrás de ridículas ovelhas. O que tu precisa mesmo é ser uma ovelha desgarrada de uma literatura escrota que fazem por aí!

– Hum... O que dizes talvez seja um pouco do que andei pensando.

– fala.

– Quando estou mais pra lá do que pra cá, quer dizer, mais pra loucura do que pra razão, parece que surge uma outra pessoa pra me zoar. Aí, já não sei se estou falando sozinho e em alto e bom som, ao caminhar pelas ruas. Não sei se falo para dentro ou para fora. Esse Outro prega umas peças, tem linguagem própria – e o mais louco, Beiço: ele é o poeta, ou pelo menos é o que tem coragem de botar a boca no mundo. E é muito levado no trato com a linguagem. Dia desses, comentou:

ESTOU A QUATRO BANHOS SEM TOMAR DIAS!

Tu acha, Beiço, que nessas horas estou delirando? Ele parece desarranjar a vida cotidiana, aquela vida mansa e de m**da onde todos seguem as regras, cabisbaixos. Se mergulho num pântano de irrealidade – que seriam os momentos criativos –, o Cara! entra em cena, debochando, tirando sarro, dando conselho. Me confunde, a ponto de trocar o dia pela noite, o amanhecer pelo anoitecer. O que me deixa feliz é que, nessas horas, sinto que nasce uma poesia que talvez tenha algum valor. Meu, o que me veio agora é uma relação dessas NOIAS com alguma poesia e alguns poetas nos anos sessenta e setenta aqui no Brasil. Fizeram o que pode ser chamada de “literatura do lixo”, onde o palavrão foi revalorizado e as relações eróticas foram descritas com natural realismo, sem se preocuparem com o que a sociedade ia dizer. Fazem parte de um movimento chamado “poesia marginal”, que valoriza o sujo, o lixo, e os poetas eram chamados de “poetas sórdidos”. Já em 1948 Manuel Bandeira chamou isso de “Nova poética”:


Vou lançar a teoria do poeta sórdido.
Poeta sórdido:
Aquele em cuja poesia há a marca suja da vida.
Vai um sujeito,
Saí um sujeito de casa com a roupa de brim branco muito bem engomada, e na primeira esquina passa um caminhão, salpica-lhe o paletó ou a calça de uma nódoa de lama:
É a vida.

O poema deve ser como a nódoa no brim:
Fazer o leitor satisfeito de si dar o desespero (...).


Resumindo, Beiço, acho que a coisa se intensificou ao ler este poema e tomar contato com a poesia marginal. Essa visão sobre a poesia e a vida me impressionou a tal ponto que procuro, além de escrever assim, viver assim.

– faz sentido, Cadelão. Uma dica: dá uma olhada na opinião do Bukowski a respeito da sua poesia e a poesia que criticava, feita pelos poetas de sua época. Leia o livro “Escrever para não enlouquecer”. Lá, tu vai encontrar muita preciosidade.

 

(B. B. Palermo)


sexta-feira, 25 de outubro de 2024

Nas mãos de uma caneta

 

e se contorce e me tortura
e diz que não sobreviveremos
aos ataques da maresia.
Falha muito mais do que os meus
raciocínios
per
versos.
Ideias seguem no mesmo rumo:
assopram, na cara deste sujeito
e sua cutis tostada pelo sol,
que eu/ele poderia estar
numa centena de lugares
ao mesmo tempo.
As unhas dos dedos crescem
enquanto me distraio
com as velhas amenidades
e também com a ponta desta caneta
que nunca foi de confiança.
Poderia cravar no papel
uma dúzia de frases
que jogassem luz nessas noites
que andam mais perdidas do que eu,
e me comunicassem do milagre
da imortalidade.
Mas não, sou boicotado
por uma
terrível
caneta!
(B. B. Palermo)

quinta-feira, 24 de outubro de 2024

Pobres

 

Os pobres pensam em grana

e negócios e crediários e bolsa de valores.

Não sabem de poesia – ou não ligam pra isso.

Pobres não sabem o que é alma,

são putos que emporcalham o mundo,

um divertido bando de vermes!

Senti a nova fase

quando pássaros madrugadores

conversaram comigo na entrada da noite, na praia.

O instinto embaralhou os dados,

choveu no Saara, nevou no Nordeste,

quero-queros dançaram umas valsas

algemando a palma de minha mão

em busca de uns farelos.

Delirei, eu sou o pão, o Maná,

mas as vozes já não me alcançavam,

anciões de minha rua

estão de-fi

ni

ti

va

men-te

surdos.

Pisei fundo nos fatos e descobri

que o ego me sequestra do mundo.

O que é essencial para você? – perguntamos

uns aos outros...

A esse respeito,

o mundo respira

em silêncio.

 

(B. B. Palermo)


segunda-feira, 21 de outubro de 2024

Nem só de pão vive o homem

 


Na padaria, a fila era enorme e eu empunhava – com valentia – pão francês e meia dúzia de cervejas. Esbarrei num daqueles caras que vivem para o trabalho e para guardar dinheiro. Parecia um asno de carga, alto, seco e recurvado, um imbecil de língua afiada. Olhou para minhas compras e anunciou, como quem conta para a multidão uma boa nova:

– Nem só de pão vive o homem!

Com a mesma intensidade, retruquei:

– Vivam os sólidos e – principalmente – os líquidos!

Em seguida, cantei para todos os presentes do respeitadíssimo estabelecimento: 

Bebida é água!/ Comida é pasto! / Você tem sede de quê? / Você tem fome de quê? / A gente não quer só comida / A gente quer comida, diversão e arte / A gente não quer só comida / A gente quer saída para qualquer parte / A gente não quer só comida / A gente quer bebida, diversão, balé / A gente não quer só comida / A gente quer a vida como a vida quer” (Titãs. "Comida").

Podia ficar na minha – claro – e voltar para casa e bolar uma pequena história, meio cômica, a partir do episódio. Mas não. Verbalizei toda a minha empolgação ali mesmo, tendo como plateia umas três ou quatro dúzias de pessoas, dentre elas casais, mulheres com crianças e adolescentes.

Gurizada, será que baixou algum capetinha, ou fui apenas possuído pelo bordão de que tanto simpatizo: “Temos que ser loucos!”?

Como todo mundo ali carregava seus quitutes, doces e salgados, decidi improvisar um singelo banquete verbal, para que se fartassem. Fui então dizendo:

Nem só de pijamas e pantufas e laxantes para prisão de ventre e cremes para hemorroidas e rinite alérgica e remédios para hipertensão vive o homem! Nem só de estimulantes sexuais e fantasias anuais (não quis dizer anais, juro!) vive o homem! Nem só de nome limpo na praça cartão de crédito carteira de identidade CPF carteira do SUS vive o homem! Nem só de orgulho inveja ira avareza luxúria gula e preguiça vive o homem!

O gerente da padaria dirigiu-me um olhar menos de censura e mais de aflição, implorando para que parasse o show. Afinal, na sua concepção, sou um cara legal: todo mês deposito no seu caixa uns 900 reais destinados ao consumo de pão, vinho e cerveja. E trouxe, como brinde, meia dúzia de cervejas artesanais, das melhores, dizendo que serviriam de inspiração quando chegasse em casa.

Com desgosto, improvisou um antídoto para minha embriaguez.

No estacionamento, não localizo o carro. Ué, mas não havia estacionado na vaga imediatamente ao lado da vaga reservada para deficientes? Levanto os olhos e noto um caminhão-guincho rebocando um carro, a uns 500 metros avenida adiante. Caramba, era da mesma cor do meu, um fusca 1961, azul calcinha.

Foda-se. Que fique para outro dia a porra do carro. Ligo para um taxista, meu conhecido. Enquanto o táxi não chegava, vi dois ETs, sim, tive essa nítida impressão, porque eram uns serezinhos do tamanho de anões, de cor marrom, bem antenados, que se esgueiravam pelo muro da rua em frente e rapidamente dobravam a esquina.

Vocês devem estar se perguntando:

– Que drogas ilícitas ingeri?

Ok, ok, vou abrir o jogo. No início daquela tarde o Beiço veio até minha casa e disse que conheceu umas garotas legais numa loja de produtos naturais. Era só ligar pra elas que prontamente viriam beber e se divertir com a gente. Bastava bancarmos o táxi. Foi o que fizemos. Enquanto elas estavam a caminho, o Beiço me alcançou uma coisa, dizendo:

– Experimenta, Cadelão, isso aqui é porreta, vai abrir as portas das tuas percepções!

 E completou:

– Depois dessa experiência tu nunca mais será o mesmo!

 

(B. B. Palermo)


quinta-feira, 17 de outubro de 2024

Sputnik

Venham,

corram,

emoções

delirantes!

Tentei contato com a musa

literária do momento,

nada mais nada menos

que a curadora da FLIP.

Não estou nem aí se ela

nunca ficar sabendo

que eu existo – dane-se o “penso, logo existo” cartesiano,

o que rola, hoje, é o aparecer!

Qual o problema dela se debruçar

por 2 minutos

nos meus escritos?

O combustível que impulsiona meu Sputnik

é correr atrás de histórias improváveis

e rir depois, mesmo que

o foguete

exploda

ao subir.

 

(B. B. Palermo) 

Agora

 


O perigo está
em nos confundirmos
nessas estações
que prometem,
mas que embaralham
nossos planos
pro futuro.
O perigo ainda maior,
garotada,
é esquecer
(de novo?)
que só abraçamos

o agora.

(B. B. Palermo)

terça-feira, 15 de outubro de 2024

Viagens


 


– E aí, Cadelão, novidades?

– Sim. Estou grávido do terceiro filho.

– Kkkkk. Que viagem, maluco!

– Tu não entendeu, Beiço. Estou gestando o terceiro livro.

– E qual vai ser o nome dessa p**ra?

– Pensei num título, e tenho umas 4 dezenas de histórias

que precisam de muita poda, desbaste e replantio,

tu sabe como é.

– Título??

– Ah, talvez VIAGEM A PALERMO.

Só não sei como vou juntar grana

pra botar isso em prática hehehe.

– Simples, Cadelão: investe tudo

nas tuas viagens

imaginárias!

 

(B. B. Palermo)


Ele já estava lá

  As pessoas por perto pareciam murchas, daquele jeito, de ideias, uns sonâmbulos, e cansei também de trocar confidências com os cães ...