segunda-feira, 21 de outubro de 2024

Nem só de pão vive o homem

 


Na padaria, a fila era enorme e eu empunhava – com valentia – pão francês e meia dúzia de cervejas. Esbarrei num daqueles caras que vivem para o trabalho e para guardar dinheiro. Parecia um asno de carga, alto, seco e recurvado, um imbecil de língua afiada. Olhou para minhas compras e anunciou, como quem conta para a multidão uma boa nova:

– Nem só de pão vive o homem!

Com a mesma intensidade, retruquei:

– Vivam os sólidos e – principalmente – os líquidos!

Em seguida, cantei para todos os presentes do respeitadíssimo estabelecimento: 

Bebida é água!/ Comida é pasto! / Você tem sede de quê? / Você tem fome de quê? / A gente não quer só comida / A gente quer comida, diversão e arte / A gente não quer só comida / A gente quer saída para qualquer parte / A gente não quer só comida / A gente quer bebida, diversão, balé / A gente não quer só comida / A gente quer a vida como a vida quer” (Titãs. "Comida").

Podia ficar na minha – claro – e voltar para casa e bolar uma pequena história, meio cômica, a partir do episódio. Mas não. Verbalizei toda a minha empolgação ali mesmo, tendo como plateia umas três ou quatro dúzias de pessoas, dentre elas casais, mulheres com crianças e adolescentes.

Gurizada, será que baixou algum capetinha, ou fui apenas possuído pelo bordão de que tanto simpatizo: “Temos que ser loucos!”?

Como todo mundo ali carregava seus quitutes, doces e salgados, decidi improvisar um singelo banquete verbal, para que se fartassem. Fui então dizendo:

Nem só de pijamas e pantufas e laxantes para prisão de ventre e cremes para hemorroidas e rinite alérgica e remédios para hipertensão vive o homem! Nem só de estimulantes sexuais e fantasias anuais (não quis dizer anais, juro!) vive o homem! Nem só de nome limpo na praça cartão de crédito carteira de identidade CPF carteira do SUS vive o homem! Nem só de orgulho inveja ira avareza luxúria gula e preguiça vive o homem!

O gerente da padaria dirigiu-me um olhar menos de censura e mais de aflição, implorando para que parasse o show. Afinal, na sua concepção, sou um cara legal: todo mês deposito no seu caixa uns 900 reais destinados ao consumo de pão, vinho e cerveja. E trouxe, como brinde, meia dúzia de cervejas artesanais, das melhores, dizendo que serviriam de inspiração quando chegasse em casa.

Com desgosto, improvisou um antídoto para minha embriaguez.

No estacionamento, não localizo o carro. Ué, mas não havia estacionado na vaga imediatamente ao lado da vaga reservada para deficientes? Levanto os olhos e noto um caminhão-guincho rebocando um carro, a uns 500 metros avenida adiante. Caramba, era da mesma cor do meu, um fusca 1961, azul calcinha.

Foda-se. Que fique para outro dia a porra do carro. Ligo para um taxista, meu conhecido. Enquanto o táxi não chegava, vi dois ETs, sim, tive essa nítida impressão, porque eram uns serezinhos do tamanho de anões, de cor marrom, bem antenados, que se esgueiravam pelo muro da rua em frente e rapidamente dobravam a esquina.

Vocês devem estar se perguntando:

– Que drogas ilícitas ingeri?

Ok, ok, vou abrir o jogo. No início daquela tarde o Beiço veio até minha casa e disse que conheceu umas garotas legais numa loja de produtos naturais. Era só ligar pra elas que prontamente viriam beber e se divertir com a gente. Bastava bancarmos o táxi. Foi o que fizemos. Enquanto elas estavam a caminho, o Beiço me alcançou uma coisa, dizendo:

– Experimenta, Cadelão, isso aqui é porreta, vai abrir as portas das tuas percepções!

 E completou:

– Depois dessa experiência tu nunca mais será o mesmo!

 

(B. B. Palermo)


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