quinta-feira, 2 de abril de 2020

Reflexão num boteco, onde uma cachorra preta enorme me observa com olhos tristes

A cadela já envelhecida

pode não reter na memória
as coisas boas ou más que viveu.
Tenho muita coisa represada,
experiências desagradáveis
que espreitam,
mesmo reprimidas.
Creio que a literatura é válvula de escape,
uma saída de emergência pra essa viagem
que é existir.
Uma viagem catastrófica e, também,
tantas vezes maravilhosa,
com surpresas tais que fazem 
com que a vida valha a pena.

(B. B. Palermo)

quarta-feira, 1 de abril de 2020

Velho, os vídeos são picantes



Cara, o que faço
com essas senhoras
que todo dia mandam
mensagens idênticas
pra cima e do bem,
no começo do dia
e no fim do dia...
Eu poderia vazar do grupo de Whatsapp
mas sei que elas acordarão chateadas
e com razão, afinal,
sou bom garoto
e de meia idade
e elas acenam mundos loucos
naqueles espaços e lugares
que chamamos de "conversas privadas".
Meu, tu sabe, a falta de sexo 
em casa,
algo normal, ou quase natural,
a temperatura desce 
o gelo se faz.

Ninguém está morto.
Rapaz, há muita fantasia,
elas estão na área,
basta conferir os vídeos
que recebo...
Velho, são picantes,
muito picantes.

(B. B. Palermo)

terça-feira, 31 de março de 2020

Ele se chamava Apparício Júnior



Estava na boate da Janete. Circulavam por lá as garotas de sempre, desejando o de sempre, papos e música de sempre, e então algo surgiu e passou a fermentar no meu cérebro, tipo uma ideia fixa. Vagamente eu recordo que tinha a ver com prostituição e dinheiro. Outras ideias volteavam no meu cérebro. Eu devia montar um animal, creio que algum ser mitológico, e executar minha missão. Fiquei excitado só de imaginar a glória, isso, alcançar a fama, ser reconhecido por essa grande descoberta. Velho, concentrei tanto nessa ideia fixa, que apaguei.
- E aí...
Cara, tu sabe que gosto de voltar para casa a pé, de madrugada, pelo menos algumas vezes. Adoro caminhar enquanto a cidade dorme. Na rua, sozinho, as imagens e ideias se multiplicam, miro à vontade pra todos os lados, e até danço no meio da rua.
Da boate não lembro mais nada. Quando dei por mim, eu vinha pela avenida Só Nós Dois e divisei algo, um quadrúpede, bem maior do que um cachorro e menor do que um cavalo. Flanava em minha direção. Bah, tareco, pisquei os olhos, já começava a clarear o dia. A criatura se aproximava cabisbaixa, num roinc roinc, devia pesar uns 300 quilos. Cor branca, focinho rosado, rabo não enroscado, e aquelas bolas. Beiço, Beiço...
- Nem vem, Cadelão. Tu andou delirando. O que foi que tu cheirou... ou fumou?
- Nananá, cara. É sério. Se em vez de porco eu dissesse que cruzei por um hipopótamo, aí pode ser. Mas tu sabe, por essas bandas não existem zoológicos e, portanto, não existem hipopótamos.
- Kkkkk. Que viagem, cara.
- Tá, se tu não quer acreditar, não acredita.
- Diz aí... O que rolou depois?
Algo tinha que ser feito. Sei lá, interceptar o irmãozinho, antes que houvesse trânsito. Me aproximei, inseguro, balbuciando um butch butch butch e fazendo assim com os dedos. Nisso um sujeito de uns 50 anos, com cara de eletrotécnico, estacionou seu Del Rey e trouxe uma corda. Aos poucos começou a juntar gente. O miserável falou "Deixa comigo, eu sei como laçar o bicho". "Tá". "Cresci no interior. Minha família criava chiqueiradas de porcos. Esse daqui é Landrace... Mazá, bicho bonito!". "Calma, devagar". "Que nada, é só distrair o bichinho e passar a corda no pescoço".
Velho, fiquei impressionado com a habilidade do cara e com a calma do porco. Simplesmente deixou-se prender. Pensei no seu nome e, na hora, tive certeza de que se chamava Apparício Júnior. Alguém da plateia sugeriu amarrar o bicho numa árvore, ali perto. Outro comentou: "Já pensaram que carneada? Bah, olhem a quantidade de salame e toucinho e morcilha que pode sair daí."
Meu, passava um monte de gente, a pé, de bicicleta. Diminuíam a velocidade, comentavam "Eita que hoje a churrascada vai ser grande!". Cara, o trânsito aumentava, buzinadas, eu naquela ressaca, louco pra sugar uma cerveja e tentando me colocar no lugar do Apparício Júnior.
Sete da manhã, mais ou menos, estacionou uma Fiorino caindo aos pedaços. Desceu um sujeito de bigode, vestindo bermuda, camisa de botões, aberta, barrigudo, cara rosada e testa franzida. Soube pelo rádio do "estranho acontecimento, na avenida tal um suíno de cor branca, pesando em torno de meia tonelada, foi interceptado por transeuntes. Fomos informados de que dezenas de pessoas estavam prestes a abater o indefeso animal, e fazer uma churrascada ali mesmo na avenida, em pleno início de sábado. Caros ouvintes, logo mais traremos outras informações".
Para provar que era sócio-proprietário do animal, o cara da Fiorino informou o nome do mamífero. Beiço, chamava-se Apparício Armando Bronca. Sério, cara! O bicho morava na Vila Sossego, com mais 7 companheiros, e fugiu enfeitiçado por uma porca da vizinhança que estava no cio. O tempo, quando prometia chuva, deixava os suínos em polvorosa, principalmente o Apparício, um indivíduo quase virgem e portanto com um baita tesão vertendo pelos poros.
A plateia ali, de piadinhas e opiniões e preocupações ensandecidas. Não chegavam a um consenso a respeito da qualidade da carne do reprodutor. Até que um senhor, ar grave de açougueiro profissional com 40 anos de experiência, disse que a carne de cachaço não prestava para consumo humano. Foi o suficiente pra multidão se dispersar.
Bem, meu amigo, chegara o momento da operação de guerra: embarcar o Apparício na Fiorino. As pessoas ali por perto não moveram um dedo. O sócio-proprietário estava indignado com a falta de solidariedade desse povo. E o Apparício agora mostrava os dentes e babava.
Meu cérebro voltou a remexer e assoprou as brasas das ideias fixas que me nocautearam lá na boate. Tive uns flachs. Isso, era o momento de flanar em direção de casa. Agora eu só pensava em como me libertar dos meus delírios e me purificar dessa vidinha porca que levo.

(B. B. Palermo)


sábado, 28 de março de 2020

Daytripper - Leitura da semana


Daytripper, uma lição sobre a vida


Quais são os dias mais importantes da sua vida?


Todo dia acordamos sem saber se ele será o último. Muitas vezes nem pensamos nisso e deixamos a vida passar diante de nossos olhos sem fazer nada, sem rir nem chorar, sem aprender nem ensinar, sem viver, só a existir.
É a nossa vivência que nos permite experimentar coisas que jamais teríamos a oportunidade se caso simplesmente ficássemos isolados delas. É vivendo que aprendemos, não só sobre a vida, mas também sobre nós.
É sobre tudo isso que essa maravilhosa graphic novel vai nos mostrar, mas sobre a vida (e a morte) de Brás de Oliveira Domingos, um escritor de obituários que, a primeiro momento, tem 32 anos e também tenta escrever seu livro de romance, igual a seu pai. Isso é só uma iniciativa para toda a história por trás. Todas as reflexões e todas as lições da vida em todos os momentos, seja na infância, na juventude, na velhice e até na morte de Brás.

Antes de começar a ler essa maravilhosa história, talvez seja importante ressaltar o significado de Day-tripper: um viajante de um dia só, um turista que vai a algum lugar e no mesmo dia volta à sua origem.
Ao começar a ler, tenha paciência. É normal você se perder ou não entender logo de cara, mas não feche o livro, não ache que Daytripper será mais uma história qualquer que ficará jogada na sua estante. Ela será muito mais que isso, será uma reflexão, uma pequena visão da vida.
Logo no primeiro capítulo, nos deparamos com a morte do protagonista, estranho não? Pois se acostume, já que veremos todas as suas mortes em diferentes momentos da vida. E não, isso não é um spoiler, é a base do livro.
No decorrer do livro, dividido em 10 capítulos, nos envolvemos cada vez mais com Brás, tornando suas mortes cada vez mais tristes, mesmo sabendo que ele estará vivo no próximo capítulo.
Levamos um choque na sua primeira morte, na segunda ficamos confusos e daí em diante ficamos tristes. Vemos o auge da vida de Brás a cada capítulo, mas também vemos seu fim.
“A vida é como um livro, filho. E todo livro tem um fim. Não importa o quanto você goste do livro, você vai chegar na última página e ele vai terminar. Nenhum livro é completo sem o fim. E somente quando você lê as últimas palavras, você vê como o livro é bom.”
Como já disse para alguns que me perguntaram sobre, Daytripper não é uma história feita para ser explicada, mas sim uma história feita para ser sentida, vivida e explorada em seus mínimos detalhes.
Como disse Fábio Moon (um dos escritores): “Com o pé calçado na realidade, o mais difícil não seria criar algo que PARECESSE real. Não, o difícil foi criar um mundo que você se SENTISSE real.”
Ao ler o livro, nos parece que eles não tiveram dificuldade alguma. Cada cor, cada personagem, cada referência e até expressões foram inseridas de forma a reproduzir um sentimento. E conseguiram, nos passaram todas as emoções de Brás e dos personagens a volta em cada detalhe. Acredito sem sombra de dúvidas que, mesmo sem o texto, entenderíamos a história.
Fábio Moon e Gabriel Bá são irmãos gêmeos nascidos em São Paulo, onde vivem até hoje. Eles vêm contando histórias de quadrinhos há quase 15 anos, e seu trabalho já foi publicado em diversos lugares do mundo além do Brasil, bem como França, Itália, Espanha, Grécia, Japão, Alemanha e Estados Unidos.
Segundo o livro, gostam de café bem preto, sem açúcar, com sabor forte e memorável. Acreditam que as histórias devam ser igualmente fortes e memoráveis. E conseguiram. Daytripper passou a ser meu livro preferido exatamente por isso, pela história inesquecível e pela reflexão mais ainda.
Em suma, Daytripper me fez questionar sobre o quanto a vida é efêmera, dando-me uma visão diferente do mundo. Quando você percebe isso, seus dias mudam, você passa a querer aproveita-los da sua maneira, tonando-os especiais e únicos. Não deixe a vida passar diante dos seus olhos, abuse do verbo viver, viva cada dia como se fosse os último, porque um dia será.

Não vou mais ler obituário de jornal


Montar a asa delta dos pulmões,
percorrer outros lugares, sonhar
avistar novo amor, novo lar,
novo pet, e repelir, com sofrimento,
velhos sonhos e vomitar 
em banheiros fétidos dos botecos 
aqueles medos. 
(Ah, diriam vocês,
lá vem ele com Nietzsche
 e o velho eterno retorno...).
Fodam-se, todos.

Deixei de lado papel e caneta
e poemas e caminhadas,
tive atração por flores e
garotas de maquiagem farta e,
nessas bebedeiras,
uma recaída romântica
levou-me de encontro
ao impulso automático
do imbecil Cadelão.

Restou o previsível,
o de sempre,
e agora as mãos se atrapalham
e tremem
na companhia agitada
de etílicos baratos.
Foi o suficiente pra dama
literatura
se afastar e me trair e apostar
noutros boyzinhos.

Ideias em quarentena,
pé fora do lugar,
coração despido,
num misto de fome e sede,
vou pela avenida
e me deparo com esse carnaval
fora de época,
isso depois de grampear e
lacrar minha pobre arte
nuns envelopes
e entupir a caixa do correio.

Homem que ultrapassa as nuvens.
Asas coladas com cera
o conduzem até pertinho do sol
para então despencar.
Nenhuma linha, nem cartas
para amigos ou editores
ou leitores imaginários.
Nenhuma inspiração,
a imaginação já era.

É o que dá não suportar o verdadeiro
e relativo amor e o medo de morrer
sem realizar o que não sei ao certo.

Não posso parar
vou parar de morrer
não vou mais ler
obituário de jornal.

Belchior não morreu,
e estou vazio de ideias.
Neste momento estou morto,
não passo de prédio em construção.
Sou todo tijolos e ferro e massa e
som e movimento e...
um radinho pendurado
num guindaste, no sétimo andar,
desse prédio qualquer, me chama.
A música toca e embarco num sonho.

Sigo meu caminho,
porém, em sua alucinação,
Belchior grita de lá:
"Você não sente nem vê
mas eu não posso deixar de dizer,
meu amigo, que uma nova mudança
em breve vai acontecer..."

Estou sóbrio e trêmulo e,
portanto, de mau humor,
então grito de cá:
"Foda-se, Belchior,
deixe-me respirar e silenciar e
me afastar desses vermes e vírus e
imagens e vozes que despencam
desses abismos de concreto...".

Eis que o FDP grita de volta:
"Relaxa, Cadelão,
aprenda comigo,
'tenho sangrado demais,
tenho chorado pra cachorro,
ano passado eu morri,
mas esse ano eu não morro'".

(B. B. Palermo)

quinta-feira, 26 de março de 2020

O desespero do Cadelão



Ela disse
"Tu é uma jóia rara
e um anjo me enviou pra te cuidar".
Suas mensagens no whatsHapp
passeiam numa gramática particular.
"Nada acontece por acaso,
tudo tem uma 'rasão' de ser".
Ando tonto, meio crente no sobrenatural,
meio cético com humanos,
sabendo que vai ter merda no final.
Cadelão, o guloso de aventuras
agora tem pesadelos
e acorda de madrugada suando frio
e morre de medo dos fantasmas
que ela enviou pra me vigiar.
"Escreve um poema pra mim?",
pede, "ingênua", enquanto mapeia
as prováveis rivais
que se exibem em meu perfil no Facebook.
Estou agitado e cheio de medo
de virar peixinho dourado
a ser exibido em nobre horário
nessas vilas gulosas
por trágicas aventuras.
Sua crença
virou-me do avesso,
acho que estou no radar
das forças ocultas.

Senhor, o que eu faço com essas mulheres?
Tende piedade de minha pessoa, senhor!
Vinicius, ó grande poetinha, por favor, me ajude.

Tende piedade, Senhor, de todas as mulheres
Que ninguém mais merece tanto amor e amizade
Que ninguém mais deseja tanto poesia e sinceridade
Que ninguém mais precisa tanto de alegria e serenidade.

Tende infinita piedade delas, Senhor, que são puras
Que são crianças e são trágicas e são belas
Que caminham ao sopro dos ventos e que pecam
E que têm a única emoção da vida nelas.

Tende piedade delas, Senhor, que uma me disse
Ter piedade de si mesma e de sua louca mocidade
E outra, à simples emoção do amor piedoso
Delirava e se desfazia em gozos de amor de carne.

Tende piedade delas, Senhor, que dentro delas
A vida fere mais fundo e mais fecundo
E o sexo está nelas, e o mundo está nelas
E a loucura reside nesse mundo.

terça-feira, 24 de março de 2020

Vira-vira



No tempo dos Mamonas, 
adorávamos a banda 
e jogávamos 
coronas 
uns nos outros. 
A banda se foi, 
e hoje os vírus nos assombram.

(B. B. Palermo)

domingo, 22 de março de 2020

Em época de vírus, aprenda a usar as mãos


- Velho, fiquei especialista em lavar as mãos.
- Bah, nem me fala. Com as orientações de não levar as mãos ao rosto, tô me livrando daqueles gestos mecânicos, tipo tirar a cera dos ouvidos com o indicador.
- Beee... Eu tiro a cera das orelhas com o mindinho. O indicador eu uso pra caçar tatu.
- Cadelão, descobri que ainda há esperança. Sério, potencializei meu prazer. Basta  bater uma com a mão trocada.
- Caramba!... e eu tenho um sonho que se repete... ou é pesadelo, não sei. Estou sempre palitando os dentes depois do jantar. Quando acordo fico refletindo, tipo... Sou mamífero privilegiado, tenho o telencéfalo altamente desenvolvido, além do polegar opositor. Entendeu, maluco? Meu sonho é mensageiro, diz que estou no topo da evolução!
- Kkkk... seu débil mental!  Te conheço. Sabes que eu sei das tuas milongas... Tu tá plagiando o filme "Ilha das flores", do Jorge Furtado. Essa fala tá toda lá. Tu acha que eu sou bocó?
- Tá, esquece... Mas agora é sério. Quando chego da rua e abro a porta de casa, tenho a sensação de que fui sequestrado por um exército daqueles Coronavírus. Meu, corro lavar as mãos com água e sabão e depois vou pra debaixo do chuveiro, me esfrego todo com aquela água quentíssima. Beiço, adivinha pra onde minhas mãos se movem...
- Vai tomar no cu!


(B. B. Palermo)

sábado, 21 de março de 2020

Jack Kerouac e a fome por viagens


“Os únicos que me interessam são os loucos, aqueles que são loucos por viver, loucos por falar, desejosos de tudo ao mesmo tempo, os que nunca bocejam nem dizem coisas de lugar-comum… mas queimam, queimam, queimam como velas romanas pela noite”
Jack Kerouac – Pé na Estrada: Manuscrito Original


 “Porque, no final, você não vai se lembrar do tempo que passou trabalhando no escritório ou aparando a grama. Escale aquela maldita montanha”
Jack Kerouac – Os vagabundos iluminados

sexta-feira, 20 de março de 2020

Tu não precisa se comportar como um suíno


Vejam só, Beiço e eu sentados numa mesinha da padaria que fica na esquina da Quinze com a avenida São José. O criativo entortava a asa pros lados de uma senhora que ele teve a coragem de elevar ao panteão das balzaquianas.
Essa coisa de ficar tomando café e comendo fatias de bolo faz minhas tripas princesas tramarem greves de cinco dias longe do trono. O pior é que meu amigo resolveu jogar no ataque. Atacar não a balzaquiana, até porque a tal não pintou no ambiente. Eu é que estava na retranca, e o Beiço de marcação alta, e eu no sufoco, dando chutão pra todo lado.
Então me saí com essa:
- Meu, tu já não tem tanta vida pra ficar aí se esforçando em ser sujeito decente. Solta essa louca vertiginosa que rebate e respinga feito cascata dentro do teu ser.
Beiço veio com mais pressão na minha saída de bola.  
- Tu não fica ansioso quando vê aquelas roupas lindas te acenando das vitrines das lojas?
- Sim. O incrível é que elas acenam e dizem Vem cá, Sr. Palermo, viemos ao mundo para servi-lo.
Sei, irmãozinhos, que acontece o contrário: sou eu quem serve de boneco das roupagens que visto ou deixo de vestir, por falta de grana. Essa é a merda de aceitar uma imagem que a cultura impõe.
Beiço e sua boca escancarada e aparelho ortodôntico, e que se libertou daquele menino povoado por nuvens neuróticas e que chegou a ter uma boca acolhedora de dentaduras postiças. Sente-se agora um pavão no meio das garotas, e comenta:
- Aquela e aquela e aquela estão no papo.
Não estou nem aí, se continuar assim meio solitário e carente de roseiras encaminho um saravá pra limpar meu terreiro e também fazer chover princesas "estão no papo".
A inveja que sinto de meu amigo se quadruplica suave e definitiva, basta garotinhas quase virgens se exibirem pra ele e não notarem minha esforçada presença.
Nessas horas me coço e quase deixo escapar: "Cara, tu não precisa se comportar como um suíno".
- Podes rir da minha cara, mas acho que não sou débil mental satisfeito com o saco de pão dormido que me servem dia após dia.
- Te liga, Cadelão, veja como essas garotinhas semivirgens e pobres sonham o dia todo em ser românticas. Basta alguns carinhos e umas promessas e já pensam no amor.
- Beiço, tu é um bobo, e elas sabem tudo. É, tudo o que acontece do nascer ao por do sol. Quem ficou com quem, quem comeu quem, quem é um caco, quem não é de confiança... Meu, tu precisa se reinventar, seu... escrotinho. Precisa de repertório, fingir, gemer, pedir aos céus com fé convulsiva. Olha só, elas dizem que não têm perfil no Facebook, só que em menos de 2 horas mapearam teus contatos, cruzaram informações. Velho, vai por mim, o melhor é se isolar, ser algo como um hippie tardio e estranho, e jorrar na face dessa sociedade careta tua ureia colorida e fedorenta.

Agora em casa, 2 da manhã, copo cheio, penso na razão de ser desse big brother, enquanto aponto o chinelo pro íntimo de uma barata. Seres pré-históricos atravessam a sala e riem de meu ser metafísico. O mundo material é a alternativa, então apanho o chinelo e dou o corretivo, como se estivesse preparando mais um funeral do governo.
Paz e amor. Todos de quarentena. Resta-nos o mundo virtual e um bom e diversificado estoque de bebida. Uma queda de braço entre o tempo necessário de isolamento e a grana e as bebidas e as intenções duvidosas desses vírus petulantes.

(B. B. Palermo)

Pílulas diárias de fofoca

  – Em Canela, ninguém cumprimenta ninguém! Em Capão, todo mundo diz “bom dia!”, “tudo bem?”. Aqui tu anda de bermuda e chinelos e ningu...